Na continuidade da análise que me levou ontem a considerar a nomeação de um ministro árabe israelita para o governo do seu pais como um daqueles gestos de pouco alcance político e demasiado tardio para o quadro onde se insere, lembrei-me de um outro episódio, onde a posição assumida por parte daqueles que poderiam ser a terceira via moderada no conflito profetizou como o regime do apartheid estava condenado e que nada havia para negociar.
Convém recordar como, para o regime sul-africano, era indispensável a identificação do grupo racial a que pertencia cada cidadão. Juridicamente havia quatro grupos. Por peso representativo: negros, brancos, mestiços e asiáticos. Por ordem de importância social e política, os negros transitavam de primeiro para quarto lugar, permanecendo o resto igual. E, em quaisquer estatísticas demográficas sul-africanas, a inserção da classificação das raças era quase obrigatória.
Assim, nos finais da década de 1940, por altura da implantação do regime do apartheid, com a ascensão ao poder do Partido Nacional (1948), 68,6% da população sul-africana era negra, 20,2% branca, 8,1% mestiça, 2,5% asiática e 0,6% não estava classificada. Esta última foi um dos primeiros problemas caricatos do apartheid com as instruções administrativas para que os funcionários locais procedessem à classificação racial daqueles que a não possuíam, envolvendo testes como o do lápis no cabelo (para ver se caía ou não…).
Entre outros problemas, na comunidade mestiça (na fotografia acima e designada oficialmente por coloured) havia, dentro da mesma família, quem segurasse o lápis e quem não o fizesse, dada a sua ascendência misturada, que incluía europeus, população local (com uma tez de pele nitidamente mais clara do que os restantes habitantes nativos da África subsahariana) e também contribuições de asiáticos de origem indiana e malaia. Enquanto nos classificados por asiáticos, a esmagadora maioria era de origem indiana – e aí era raro o lápis que se aguentava na cabeça…
Sobretudo a classificação escondia dentro de cada grupo uma enorme diversidade interna. Era de esperar que isso acontecesse entre a população negra desdobrada em vários grupos linguísticos: a actual constituição sul-africana contempla 11 línguas nacionais, incluindo o xhosa, o zulu, o setswana, o sesotho, o xitsonga, o tshivenda ou o ndebele. Contudo as duas línguas principais da África do Sul moderna pertencem às suas duas tribos brancas, o africânder e o inglês. Entre os brancos também não existia homogeneidade.
Normalmente, poucos se apercebem quão numericamente pequeno – mas quão militante! - foi o núcleo duro de apoio ao regime do apartheid. Simplificadamente, era a tribo branca africânder que, representando cerca de 60% da comunidade branca (a única que votava) que ganhava as eleições à oposição anglófona e esta ficava a constituir a oposição parlamentar. Mas, ao longo da década de 1970 a disputa política e a oposição ao regime acabaram por sair do parlamento.
Entretanto, o peso demográfico da minoria branca estava progressivamente a diminuir (17,3% de brancos versus 70,4% de negros nos recenseamentos de 1970) e tornou-se necessário proceder a reformas para contrariar essa tendência para que o conjunto das tribos negras não se tornasse uma maioria demográfica esmagadora na população sul-africana. A ideia para contrariar directamente isso foi a criação de países independentes que vieram a ser conhecidos bantustões.
Assim, as autoridades sul-africanas retalharam dentro do seu próprio país, pedaços do seu território onde se viriam a constituir os estados nacionais de cada uma das tribos. A configuração desses estados chegava a ser cómica de tão patética: o Bophuthatswana (em cima, a castanho) tinha 44.000 Km2, repartido por sete (!) regiões distintas e descontínuas, com uma população residente de cerca 2 milhões de habitantes a que havia que adicionar outro milhão e meio que estava emigrada na África do Sul*…
Politicamente, em 1983 procedeu-se a uma profunda alteração constitucional, com a formação de três Câmaras (daí o título deste poste), com o requinte adicional de cada uma ter um novo distinto (o que sempre me intrigou): Câmara da Assembleia (178 membros), Câmara dos Representantes (85 membros) e Câmara dos Delegados (45 membros). A primeira era para brancos, a segunda para mestiços (coloured) e a terceira para asiáticos (indianos). Submetida a referendo (com o voto exclusivo dos brancos…) a reforma passou.
Demasiado tarde. Os mestiços (coloured) que, por uma ampla maioria até têm por língua materna o africânder e, não lhes tivessem retirado os direitos políticos quando da instauração do apartheid, poderiam ter sido uns aliados preferenciais dos africânderes brancos, reagiram a esta concessão tardia do direito de voto para a sua comunidade com boicote na afluência às urnas. Os resultados da participação da comunidade asiática naquelas eleições chegaram mesmo a ser embaraçosos: 16%...
Esta história até pode ser daquelas que tem um final semi-feliz. O direito de voto foi estendido a todos em 1994 e, a consequência disso foi a de que o espectro político actual da África do Sul pode ser explicado em linhas étnicas. Os negros votam quase todos no ANC, que obtém vitórias esmagadoras de 70%, com excepção dos zulus que votam Inkatha (com 7%), enquanto o maior partido da oposição se chama Aliança Democrática (com 12,5%), aliando, entre outros, os africânderes brancos e os coloured que eles outrora tanto desdenharam…
* Qualquer semelhança entre a configuração dispersa do Bophuthatswana (acima) e o prometido (mas não cumprido...) Estado palestiniano que os israelitas estão dispostos a conceder ao abrigo dos acordos de Oslo de 1994 (em baixo) será uma mera coincidência… O Estado palestiniano - na sua máxima extensão - serão as partes alaranjadas do mapa...
Convém recordar como, para o regime sul-africano, era indispensável a identificação do grupo racial a que pertencia cada cidadão. Juridicamente havia quatro grupos. Por peso representativo: negros, brancos, mestiços e asiáticos. Por ordem de importância social e política, os negros transitavam de primeiro para quarto lugar, permanecendo o resto igual. E, em quaisquer estatísticas demográficas sul-africanas, a inserção da classificação das raças era quase obrigatória.
Assim, nos finais da década de 1940, por altura da implantação do regime do apartheid, com a ascensão ao poder do Partido Nacional (1948), 68,6% da população sul-africana era negra, 20,2% branca, 8,1% mestiça, 2,5% asiática e 0,6% não estava classificada. Esta última foi um dos primeiros problemas caricatos do apartheid com as instruções administrativas para que os funcionários locais procedessem à classificação racial daqueles que a não possuíam, envolvendo testes como o do lápis no cabelo (para ver se caía ou não…).
Entre outros problemas, na comunidade mestiça (na fotografia acima e designada oficialmente por coloured) havia, dentro da mesma família, quem segurasse o lápis e quem não o fizesse, dada a sua ascendência misturada, que incluía europeus, população local (com uma tez de pele nitidamente mais clara do que os restantes habitantes nativos da África subsahariana) e também contribuições de asiáticos de origem indiana e malaia. Enquanto nos classificados por asiáticos, a esmagadora maioria era de origem indiana – e aí era raro o lápis que se aguentava na cabeça…
Sobretudo a classificação escondia dentro de cada grupo uma enorme diversidade interna. Era de esperar que isso acontecesse entre a população negra desdobrada em vários grupos linguísticos: a actual constituição sul-africana contempla 11 línguas nacionais, incluindo o xhosa, o zulu, o setswana, o sesotho, o xitsonga, o tshivenda ou o ndebele. Contudo as duas línguas principais da África do Sul moderna pertencem às suas duas tribos brancas, o africânder e o inglês. Entre os brancos também não existia homogeneidade.
Normalmente, poucos se apercebem quão numericamente pequeno – mas quão militante! - foi o núcleo duro de apoio ao regime do apartheid. Simplificadamente, era a tribo branca africânder que, representando cerca de 60% da comunidade branca (a única que votava) que ganhava as eleições à oposição anglófona e esta ficava a constituir a oposição parlamentar. Mas, ao longo da década de 1970 a disputa política e a oposição ao regime acabaram por sair do parlamento.
Entretanto, o peso demográfico da minoria branca estava progressivamente a diminuir (17,3% de brancos versus 70,4% de negros nos recenseamentos de 1970) e tornou-se necessário proceder a reformas para contrariar essa tendência para que o conjunto das tribos negras não se tornasse uma maioria demográfica esmagadora na população sul-africana. A ideia para contrariar directamente isso foi a criação de países independentes que vieram a ser conhecidos bantustões.
Assim, as autoridades sul-africanas retalharam dentro do seu próprio país, pedaços do seu território onde se viriam a constituir os estados nacionais de cada uma das tribos. A configuração desses estados chegava a ser cómica de tão patética: o Bophuthatswana (em cima, a castanho) tinha 44.000 Km2, repartido por sete (!) regiões distintas e descontínuas, com uma população residente de cerca 2 milhões de habitantes a que havia que adicionar outro milhão e meio que estava emigrada na África do Sul*…
Politicamente, em 1983 procedeu-se a uma profunda alteração constitucional, com a formação de três Câmaras (daí o título deste poste), com o requinte adicional de cada uma ter um novo distinto (o que sempre me intrigou): Câmara da Assembleia (178 membros), Câmara dos Representantes (85 membros) e Câmara dos Delegados (45 membros). A primeira era para brancos, a segunda para mestiços (coloured) e a terceira para asiáticos (indianos). Submetida a referendo (com o voto exclusivo dos brancos…) a reforma passou.
Demasiado tarde. Os mestiços (coloured) que, por uma ampla maioria até têm por língua materna o africânder e, não lhes tivessem retirado os direitos políticos quando da instauração do apartheid, poderiam ter sido uns aliados preferenciais dos africânderes brancos, reagiram a esta concessão tardia do direito de voto para a sua comunidade com boicote na afluência às urnas. Os resultados da participação da comunidade asiática naquelas eleições chegaram mesmo a ser embaraçosos: 16%...
Esta história até pode ser daquelas que tem um final semi-feliz. O direito de voto foi estendido a todos em 1994 e, a consequência disso foi a de que o espectro político actual da África do Sul pode ser explicado em linhas étnicas. Os negros votam quase todos no ANC, que obtém vitórias esmagadoras de 70%, com excepção dos zulus que votam Inkatha (com 7%), enquanto o maior partido da oposição se chama Aliança Democrática (com 12,5%), aliando, entre outros, os africânderes brancos e os coloured que eles outrora tanto desdenharam…
* Qualquer semelhança entre a configuração dispersa do Bophuthatswana (acima) e o prometido (mas não cumprido...) Estado palestiniano que os israelitas estão dispostos a conceder ao abrigo dos acordos de Oslo de 1994 (em baixo) será uma mera coincidência… O Estado palestiniano - na sua máxima extensão - serão as partes alaranjadas do mapa...
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