Nota: Esta peça de ficção foi elaborada há já mais de um ano, muito embora creia que a antecipação da evolução da situação militar no Iraque a tenha conseguido manter actual.
Esta é uma história que só muito improvavelmente poderia ou poderá vir a passar-se. Para a desencadear, nos seus preâmbulos, nem sequer é necessário ter muita imaginação: pense-se num pequeno país africano (a Guiné-Bissau, para que nos seja mais familiar), que seja governado por um Presidente autoritário e onde todo o aparelho de estado colapsou, mostrando-se incapaz de assumir as suas responsabilidades para com a população.
Continuemos a imaginar que a doutrina das Relações Internacionais já se havia começado a tornar mais tolerante a que certos países da comunidade internacional, perante determinadas circunstâncias e com a devida caução da ONU, pudessem ser passíveis de intervenções do exterior invocando razões humanitárias ou perante a constatação evidente do desaparecimento das funções administrativas do estado.
Se o país em questão fosse a Guiné-Bissau, é natural que, como forma de contrariar a abafante influência francesa na África Ocidental, Portugal se tivesse sentido na obrigação de ser ele a patrocinar e liderar a task-force que interviria na Guiné-Bissau suportada por uma resolução da ONU. Também será conveniente para os nossos pressupostos iniciais que os traumas do passado colonial já houvessem sido quase ultrapassados e que o envolvimento da antiga potência colonizadora até fosse considerado como um aspecto vantajoso nas tarefas de reconstrução da administração do país intervencionado.
Importa também referir que as resoluções da ONU desta outra incarnação autorizam a deposição das autoridades existentes e a criação de uma autoridade multinacional de transição que ficasse encarregue do restabelecimento das estruturas administrativas, à semelhança da que vigorou, por exemplo, em Timor-Leste.
Os exemplos actuais do que está acontecer na Somália, na Libéria ou na Costa do Marfim demonstram que este esforço imaginativo foi maior na criação de uma nova doutrina de direito internacional do que na descrição das condições em que encontram alguns países africanos. Já agora, para o retrato do hipotético Presidente despótico a figura de Robert Mugabe, do Zimbabwé, poderá servir de referência.
Num esforço ainda mais empenhado de imaginação, vamos admitir que Portugal dispõe naquela altura de umas forças armadas profissionalizadas onde, nos últimos anos, se havia procedido a um programa bem sucedido de reequipamento, à medida das unidades de 1ª linha do exército norte-americano. É preciso não esquecer que quaisquer outros compromissos militares no exterior onde Portugal estivesse envolvido já tinham sido ultrapassados (Kosovo, Bósnia, Timor, Afeganistão) e que, estando completamente desobrigado de qualquer outro compromisso, pôde destacar um corpo expedicionário para a Guiné-Bissau rondando os 9.000 homens.
Desnecessário será dizer que o presidente guineense se oporia frontalmente à missão da ONU, só que a capacidade militar das suas forças armadas[1] para se opor ao desembarque do corpo expedicionário seria praticamente nula. No cais do Pijiguiti as equipas de reportagem da SIC e da TVI apareceram vestidas com os seus melhores camuflados, comprados nas lojas do Coronel Tapioca, para uma operação militar cujas maiores dificuldades couberam à engenharia e consistiram em repor em funcionamento os guindastes de descarga do material.
Outros colegas de profissão que optaram pela reportagem no aeroporto de Bissalanca também não tiveram muito mais sorte, transmitindo imagens de helicópteros pesados de transporte de pessoal largando soldados encarregados de criar um perímetro de segurança. Comentando desde Lisboa, e à falta de acontecimentos relevantes, Nuno Rogeiro falaria dos méritos da nova arma individual recém-adquirida pelo Exército português bem como da autonomia e da capacidade dos novos helicópteros da Força Aérea.
Nem a ocupação dos quartéis por parte das tropas portuguesas se tornou motivo de reportagem, a não ser pelo aspecto caricato. Os elementos mais activos que restaram dentro dos quartéis eram as aves das capoeiras, como que restos de um exército onde as praças já não recebiam há três anos e os graduados há dois. Armamento haveria com certeza, disperso e escondido pela cidade, o material que lá restava era aquele estava inoperacional.
A UNAMGB (United Nations Assistance Mission – Guinea Bissau) conjugava duas vertentes: por um lado o corpo expedicionário português estaria encarregado de assegurar as condições de segurança para que um outro corpo de funcionários civis da ONU (sendo a maioria deles de países pertencentes à CPLP, por causa do domínio da língua portuguesa) procedesse à formação de quadros visando a reinstalação de uma administração operacional na República da Guiné-Bissau. No âmbito desta última vertente contava-se também as negociações com os partidos políticos guineenses.
A descrição da situação política da Guiné-Bissau era, como também é o caso da sua distribuição étnica, complexa. O partido do presidente, o histórico PAIGC, baseava a sua implantação junto da população mandinga e manjaco (a adição das duas etnias representaria um pouco mais do que 25% da população total da Guiné-Bissau); os balantas (que seriam cerca de 30% da população) davam a sua aliança ao PRS; entre os dois blocos, como os fieis da balança nas raras ocasiões em que, no passado, a posse do poder se decidira pela via eleitoral, estavam os fulas (uns 20% da população), que eram considerados como antigos apoiantes da potência colonial e que ainda eram episodicamente estigmatizados por isso. O restante desdobrava-se por outras etnias com menor representatividade (os papéis, por exemplo, estimava-se que seriam uns 7% da população[2]), por uma pequeníssima elite urbana de grande visibilidade junto das potências externas mas de escassa influência efectiva junto das populações rurais e por uma crescente população urbana cada vez mais desenraizada das suas filiações étnicas de origem.
Competia ao corpo expedicionário português, assumindo o carácter benigno de que se revestiria a intervenção na Guiné-Bissau, montar um dispositivo, com base nos seis batalhões que o constituíam, que assegurasse as condições de segurança à estrutura civil da UNAMGB e à nova estrutura administrativa emergente.
Havia quem, entre os portugueses, se mostrasse apreensivo quanto à exiguidade dos efectivos do corpo expedicionário, recordando o período colonial, quando o dispositivo português chegara a atingir os 18 batalhões[3] em quadrícula (o triplo do que aconteceria agora) e onde os efectivos chegaram aos 42.000[4], contando com as próprias tropas de recrutamento local. Para os portugueses, a Guiné havia sido um Teatro de Operações traumático, com vários episódios menos felizes, onde o poder de fogo das unidades da guerrilha podia superar o das unidades equivalentes do seu próprio exército.
Só que os tempos e as condições haviam mudado substancialmente em relação àquele período. Desta vez quase tudo era diferente. As diferenças podiam agrupar-se entre aquelas que eram de carácter geral e as de carácter estritamente militar. De entre as mencionadas em primeiro:
a) A missão era explícita e estaria limitada no tempo. Embora o calendário fosse flexível, não se correria o perigo de ficar atascado numa situação para cuja solução não se tinha um fim à vista, como ocorrera previamente.
b) Podia contar-se com a boa vontade das populações. As informações recolhidas apontavam para um mau estar geral devido ao impasse da situação política. Desta vez, não haveria necessidade de classificar as etnias entre as mais ou menos permeáveis à subversão. Ir-se-ia desalojar um pequeno grupo dirigente que não tinha qualquer apoio popular.
E de entre os aspectos militares convém salientar:
c) As forças militares eram agora compostas totalmente por profissionais. Na eventualidade de se tornar necessário empenhar as forças em acções de baixa ou mesmo de média intensidade, a sua preparação e a sua motivação eram incomensuravelmente superiores às das unidades de conscritos da época colonial.
d) Ainda por cima dispunham de um poder de fogo e de uma mobilidade que teriam sido impensáveis nos idos anos de 60 e 70. Desta vez seria preciso que o inimigo dispusesse de material bem mais sofisticado do que mísseis SA-7 para alterar as condições tácticas. Para mais, a mobilidade e o poder de fogo confeririam às unidades a capacidade de serem simultaneamente unidade de quadrícula e de intervenção, contornando o problema aparente da escassez de efectivos.
Mas estes seriam cenários que se colocariam muito remotamente. Antecipando outras hipóteses de conflito e como factor de dissuasão para alguma ameaça de carácter mais convencional por parte das forças armadas dos estados vizinhos também houve o cuidado de estacionar uma esquadrilha dos finalmente remodelados F-16 em Bissalanca. Ao seu lado na base, o Exército podia finalmente estrear em condições operacionais o seu Grupo de Aviação Ligeira.
[1] Com uns efectivos totais estimados de 7.250 em 2005 (6.800 no Exército, 350 na Marinha, 100 na Força Aérea) (L´État du Monde 2005)
[2] Dados sobre as etnias extraídos de Quid 2004, p. 1143. Outras publicações estimam valores ligeiramente diferentes (Atlas dos Povos de África, Jean Sellier, Campo da Comunicação 2004, p. 102). Mas todos são unânimes a reconhecer a complexidade étnica existente na Guiné-Bissau.
(Continua)
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