31 março 2008

LIÇÕES DO ZIMBABUÉ

Durante mais de uma década, o Zimbabué conseguiu ser um exemplo de que a propaganda britânica se utilizava para demonstrar como a sua diplomacia geria os conflitos africanos de uma forma diferente. Nem sempre com sucesso (os europeus da Rodésia, antecessora do Zimbabué, fugiram-lhes ao controlo e proclamaram em 1965 unilateralmente a sua independência…), mas de uma forma diferente, que impedia que se verificassem os êxodos maciços dos europeus, como aqueles que vitimaram os residentes de origem europeia das colónias francesas (Argélia) ou portuguesas (Angola e Moçambique).
A urbanidade do processo (Acordos de Lancaster House) que conduziu à independência do Zimbabué em 1980 convenceu-me do fundamento das razões apresentadas pela diplomacia britânica. Também houvera um prolongado conflito de guerrilha, mas a potência colonial regressara a tempo de pôr as coisas em ordem… Desde o principio, o Zimbabué independente não tinha nada que se assemelhasse à Argélia de 1962, à Angola ou a Moçambique de 1975, onde os serviços elementares de uma sociedade como a saúde, a educação, a água, a electricidade, o saneamento e até a prosaica recolha do lixo, quase desapareceram…
E contudo, progressivamente vim-me apercebendo como as transições suaves não são, só por si, a garantia de um fim feliz para a história. Num livro como Quando um Crocodilo come o Sol, do zimbabueano (branco) Peter Godwin podemos acompanhar, através da história da sua família, a desdita dos seus compatriotas da mesma etnia que, depois da independência se aferraram àquele país e que, por muito que tivessem contemporizado, acabaram quase todos na mesma situação dos proprietários dos caixotes da fotografia lá de cima*. De todo aquele edifício legislativo democrático de 1980, desmentido pelos factos, resta agora apenas uma dúvida:
Será ainda possível uma transição política pacífica baseada nos resultados de um acto eleitoral?

* Apesar de manterem a nacionalidade zimbabueana, o autor vive nos Estados Unidos e a sua irmã no Reino Unido.

AS PERGUNTAS A PODGORNY e AS ESCOLHAS DE MARCELO

Nikolay Podgorny (1903-1983 - embaixo) foi um daqueles típicos apparatchiks soviéticos, protagonista, com Leonid Brejnev e Aleksei Kossygin, do golpe palaciano que derrubou em Outubro de 1964 Nikita Khrushchev. Na partilha dos cargos que se seguiu, sempre temerosos da acumulação excessiva de poder num só individuo, Brejnev ficou com o partido (secretário-geral do PCUS), Kossygin com o governo (presidente do Conselho de Ministros) e Podgorny como o Chefe de Estado da União (presidente do Presidium do Soviete Supremo).
Mesmo tendo apenas funções protocolares, o rústico Podgorny (que era de origem ucraniana) conseguia ser um verdadeiro embaraço quando se deslocava ao estrangeiro. Quando em visita ao Ocidente, ficaram lembradas as suas respostas aos pedidos de entrevistas, onde punha a condição prévia que os entrevistadores fornecessem antecipadamente a lista com todas as perguntas que iam colocar… É um método mais praticado do que se possa pensar, mas é embaraçoso para entrevistado ou entrevistador assumirem-no. Lembrei-me dele, ontem à noite…
Ontem à noite, o programa das escolhas de Marcelo da RTP1 começou pelas primárias democráticas nos Estados Unidos, onde o professor conseguiu a proeza (que considero meritória) de abordar os embaraços da campanha de Barack Obama, sem aflorar sequer os recíprocos da campanha de Hillary Clinton. Foi demasiado flagrante, mas até nem me surpreendeu que Marcelo o tenha tentado fazer. O que me surpreendeu deveras foi que o tivesse conseguido fazer: é que eu supunha que Maria Flor Pedroso estava ali para evitar precisamente aquilo…
Logo pelo protagonista, seria ingenuidade esperar dali um programa de análise política a sério. E é obvio que a jornalista e o comentador se acertam sobre os temas a tratar, nem poderia ser de outro modo. Agora, ter conseguido a proeza de passar mesmo a rasar o episódio da patranha de Hillary Clinton sobre a Bósnia é indicativo como os critérios de rigor jornalístico por que Maria Flor Pedroso se deveria bater são mesmo subalternos naquele programa. Assim, ela corre o risco sério de ser considerada pela assistência como (mais) uma mera assistente do mágico

30 março 2008

A INVESTIGAÇÃO E A MEMÓRIA

Faço minhas as questões da Sofia, no Defender o Quadrado, a CAA, do Blasfémias, a respeito do resultado das investigações prometidas há já um mês sobre a eventual personalidade múltipla de Miguel Abrantes, o pseudónimo do autor do blogue Câmara Corporativa. Até posso tornar extensível as mesmas questões a outros assertivos defensores passados dessa mesma tese dos assessores encapotados por detrás de um mesmo pseudónimo, entre os quais FAL, do Corta-Fitas, que me pareceu ter sido o mais entusiasmado de todos.
Lembrem-se esses defensores que, por vezes (como se comprova neste episódio), até se pode sair por cima apenas por reconhecer que se fez uma asneira flagrante. E depois, episódios destes esvaziam de moralidade quem pretenda vir a acusar genericamente os políticos portugueses de falta de palavra… É que assim vê-se que não é uma questão dos políticos que nós temos, mas antes dos valores da nossa cultura, que tendem a desresponsabilizar, por esquecimento, as declarações do passado, tanto dos políticos como de todos os outros…
Para que o tempo passe sem se dar por nada, não há nada melhor como as técnicas de assobiar para o ar, ou ir passando entre os pingos da chuva, como suspeito esteja a acontecer com CAA, deixando-nos tranquilos à espera que deixe de ter as suas celebradas dúvidas - Não há pressa! Há que reconhecer que é processo que tem provas dadas: alguém se lembra ainda desta pouco graciosa dançarina, mas dos tempos (10 anos atrás) em que ela julgava que era a única leitora da The New Yorker em Portugal?...

29 março 2008

AS GRANDES MANOBRAS

A prática dos exércitos se dedicarem a grandes manobras militares, numa espécie de ensaio geral das guerras futuras, deve ser bastante antiga: há relatos que já os romanos a aplicavam. Mas desde sempre, como acontece também com aqueles jogos de cartas que se jogam a sós, chamados paciências, o sucesso das lições que se podem extrair dessas manobras depende muito se o próprio organizador se permite ou não fazer batota durante o jogo. É que, se se condicionar o comportamento do inimigo (o IN, normalmente assinalado a vermelho) àquilo que dele esperamos, então as nossas tropas (NT, normalmente assinaladas a azul) prevalecerão.
E nessas condições, normalmente descobrem-se uma data de imperfeições de pormenor, na coordenação entre as unidades envolvidas, por exemplo, que acabam por justificar a realização das próprias manobras, mas o cerne da questão, os possíveis cenários em que as guerras futuras podem vir a ser travadas acabam por vir a não ser verdadeiramente testados. Por exemplo, ao longo da década de 1930, o exército francês realizou consecutivas manobras militares alargadas, que foram consideradas muito bem sucedidas, utilizando a Linha Maginot como núcleo defensivo do seu território contra uma potencial invasão alemã.

Depois veio a Segunda Guerra Mundial e aconteceu o que aconteceu: nem o exército francês tinha o treino ofensivo para que pudesse colocar o exército alemão entre duas frentes logo em Setembro de 1939, nem a flexibilidade defensiva suficiente para reagir a uma ruptura da frente como a que aconteceu em Maio de 1940. Para quem pense que a lição foi aprendida, note-se que, apesar das manobras militares da NATO na Alemanha, em 1968, por ocasião da invasão da Checoslováquia, mesmo que os decisores políticos ocidentais tivessem querido decidir de outro modo, não havia quaisquer solução militar para aquelas circunstâncias…
Há certos textos que, pretendendo-se fazer passar aparentemente por contributos para um grande debate elevado, me fazem lembrar antes essas encenações das grandes manobras militares, mas em todo o seu verdadeiro mau sentido: ou porque a discussão é lançada numa base viciada ou então porque o âmbito do contraditório é seleccionado pelos argumentos mais absurdos empregues pela outra parte. Ao longo texto de José Pacheco Pereira a respeito da invasão do Iraque, que foi publicado em duas metades, neste e no Sábado transacto no jornal Público, creio que esta descrição assenta como uma luva.

É um texto extenso (mais de oito mil caracteres na primeira parte, outro tanto na segunda), será descabido rebatê-lo em extensão num poste. Em compreensão, a primeira parte tem um início que o afecta irremediavelmente na sua credibilidade, com um preâmbulo a referir-se a uma quase perseguição por delito de opinião aos que apoiam a decisão da invasão, a fazer lembrar os saudosos sound bites de Paulo Portas, por acaso, um seu inimigo de estimação… E, se o terreno escolhido para as manobras é o da hostilidade ao redor do autor, o inimigo escolhido parece ser a extrema esquerda, onde há normalmente muito mais folclore ideológico do que substância…
O próprio José Pacheco Pereira reconhece que os interlocutores sérios são a excepção, mas que há aqueles que foram capazes de apontar erros reais da actuação dos americanos, em particular os que vinham quer da ignorância da dimensão daquilo em que se estavam a meter, quer da sua impreparação para o fazer e das suas erradas prioridades. Muitos deles, arriscarei eu, foram apoiantes iniciais da invasão e terão mudado de opinião à medida que o conflito ia evoluindo. E, contudo, a estas questões, onde me revejo em muitas das minhas críticas à decisão norte-americana, ele dedicou sensivelmente 400 caracteres, ou seja 5% do total da primeira parte da sua prosa…

A continuação do texto, publicada hoje, dedica-se, por sua vez, à questão da existência das armas. Usando a síntese escolhida pelo próprio jornal: Não houve mentiras porque Bush e Blair estavam convencidos de que as armas de destruição maciça existiam no Iraque. Tomo a liberdade de admitir que José Pacheco Pereira nem se tenha apercebido dos limites que pode atingir uma argumentação que se baseie nos convencimentos dos protagonistas da História. Ironicamente, poderá o Holocausto receber alguma espécie de justificação se se considerar que Hitler e Himmler estavam convencidos que os judeus eram uma raça inferior?...
É evidente que, para empregar uma frase que costuma ser considerada como emblemática do próprio José Pacheco Pereira: Não é essa a questão!... É cada vez mais indiferente se foi ou não uma mentira deliberada, ainda mais para dedicar uma página de jornal inteira a isso, como o fez hoje. Recordo que os episódios que desencadearam a Segunda Guerra Mundial ou a participação norte-americana na Guerra do Vietname foram-no (mentiras deliberadas) e hoje são ambas notas de rodapé na História dos dois conflitos. Debater a Guerra do Iraque agarrando-se aos pormenores ou rebatendo a argumentação do Bloco foi uma desilusão… Uma daquelas Grandes Manobras

28 março 2008

JAN HUSS, O HERÓI NACIONAL CHECO

Poderá haver muitos outros traços distintivos mas a religião também distingue os dois povos eslavos mais ocidentais: se os polacos são um povo que se revela intrinsecamente fiel ao catolicismo romano, com os checos isso não acontece. É um mistério passear por Praga e vê-la polvilhada de igrejas e deitarmo-nos a adivinhar para quem será que elas foram construídas, já que ninguém (à excepção dos turistas) as frequenta.
E no entanto, o problema geográfico e político com que os polacos e os checos se defrontaram desde o principio das suas histórias (acima, um mapa do Século X) é muito semelhante, estando ambos entalados entre a expansão germânica em direcção a Leste e a russa orientada para Oeste. Mas foi a reacção distinta aos processos de aculturação que levou a que se acentuassem as distinções entre os dois povos, checo e polaco.

Fundada em 1348 (a mais antiga da Europa Central), a composição das quatro unidades constituintes (designadas por nações) da Universidade Carlos em Praga, dá uma ideia mais precisa das culturas então em confronto na região: bávaros, boémios, polacos e saxões. A Boémia – que era então um reino pertencente ao Sacro Império Romano Germânico – atravessava um processo de colonização germânica.
Por causa das ambições do Rei da Boémia Venceslau IV (1361-1419), para vir a tornar-se Imperador, este resolveu reforçar em 1409 o poder da nação do seu reino dentro da Universidade. Um efeito colateral, mas inesperado, desse reforço foi que, na pessoa de Jan Huss (c.1369-1415), o deão checo de então da Faculdade de Filosofia, o problema deixou de ser apenas cultural para passar também para o foro teológico.

Teologicamente, toda a estrutura da Igreja Católica Romana estava então muito frágil, imersa na sua maior crise de sempre, que veio a ser designada como o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), onde havia dois Papas (um residente em Roma, o outro em Avinhão) a disputarem a supremacia. Pior que isso, em 1409 foi ainda eleito em Concílio (abaixo) um terceiro pontífice, como um Papa de concórdia, num gesto que se veio a revelar um fiasco*.
Na Boémia, as teses de Huss, inspiradas nas do inglês John Wycliffe (c.1320-1384), vieram a ganhar cada vez mais adeptos entre a comunidade eslava, como se as teses que contestavam a forma como o poder da Igreja era exercido se tratassem – e, em certa medida, eram-no… – de uma forma sublimada da resistência da cultura checa contra a cultura germânica As nações germânicas abandonaram a Universidade de Praga**.

Dando mostras de muita ingenuidade política***, Jan Huss, veio a ser convocado e a comparecer no Concílio de Constança (1414-1418), onde foi condenado como herético e executado na fogueira (1415 - abaixo). Só depois disso, é que começaram as Guerras Hussitas (1419-1434), com o teólogo transformado num Santo e num mártir da causa checa, contra a própria Igreja Católica. A causa hussita (e checa) foi reprimida e extinta.Na globalidade, o nacionalismo checo acabou por optar por uma certa neutralidade durante o gigantesco conflito intra-germânico da Reforma protestante e da Contra-Reforma católica durante os Séculos XVI e XVII. Enquanto para os polacos manterem-se católicos era uma característica distintiva face aos vizinhos prussianos e russos, para os checos isso era indiferente, situados entre uma Áustria católica e uma Prússia protestante...

O nacionalismo checo tornou-se laico. Mesmo assim, a influência de Jan Huss ainda era suficiente para que, com a independência da Checoslováquia (1920), cerca de 700 mil checos tivessem abandonado o catolicismo e fundado a Igreja Hussita Checa. Mas o laicismo predominou: mesmo durante a era soviética (1948-89), nunca apareceu um Cardeal checo que protagonizasse a resistência, como o húngaro Mindszenty ou o polaco Wyszyński

* Esse Papa, que adoptou o nome de João XXIII veio posteriormente a ser considerado um anti-papa. Em 1958, quando o Cardeal Ângelo Roncalli foi eleito Papa e adoptou o nome de João pela primeira vez em 540 anos, ao escolher novamente o ordinal XXIII definiu-lhe o estatuto, duvidoso até então.
** Em consequência disso, veio-se a fundar a Universidade de Leipzig (1409) na Saxónia.
*** Ingenuidade que o alemão Martinho Lutero, no século seguinte, nunca teve.

27 março 2008

…COM MUITA VIDA E SAÚDE ou APESAR DAS AJUDAS DE VITAL

É nestes momentos políticos que me lembro que existe aquela história antiga, uma pequena peça de sabedoria política, que coloca um ancião a saudar um rei déspota de um reino antigo e distante com um Deus o conserve com muita vida e saúde, votos que fizeram o monarca, consciente da sua impopularidade, a parar e interrogar o ancião sobre a causa de tal cumprimento. Este explicou ao rei que vivera os tempos de seu avô, monarca mau, mas que deixara saudades ao ser substituído por seu pai, ainda pior, até se chegar ao reinado actual, ao mais insuportável de todos, mas que o deixava ainda mais receoso do que estaria para vir…

A sabedoria política ali inclusa é que a escolha política é sempre relativa, há que comparar os que se apresentam com possibilidades reais de chegar ao poder e, na dúvida, Deus conserve o rei com muita vida e saúde. Ontem, depois do anúncio por José Sócrates da redução da taxa do IVA de 21 para 20%, Luís Filipe Menezes, pegando nas declarações do próprio primeiro-ministro de há duas semanas, teve a sua oportunidade, gravação das ditas ao lado, de ir para a cara do touro e pegá-lo, com sucesso, ajudas e rabejador, demonstrando que Sócrates é um tangas igual a ele: uns dias diz umas coisas, na quinzena seguinte já não é bem assim...

Mas, insatisfeito, Luís Filipe Menezes ainda quis aproveitar para pegar o touro de cernelha, e aí estragou tudo, ao considerar a descida do IVA irrelevante e casuística, sentando Miguel Frasquilho perto de si e preconizando uma versão recauchutada do famoso choque fiscal, aquela coisa – relembre-se – que se preconizou quando na oposição e que, uma vez no poder, se verificou que não se podia fazer… Esta incapacidade de Menezes de se conter para que se pudesse explorar devidamente a asneira do adversário é emblemática da razão porque adquiriu tão rapidamente a reputação de ser a segurança para que Sócrates permaneça no poder.

Tirando Menezes, a cena salda-se por mais um episódio cómico, com os serventes do costume a tentar retocar e esclarecer as declarações de José Sócrates. E é preciso ser-se intelectualmente abjecto, como Vital Moreira, para se vir entregar a esse exercício de escolástica, mas em medíocre, procurando refutar o que todos já compreenderam… A diferença toda, para a argumentação de Vital, está na segunda parte da frase que transcreve: José Sócrates afirmou hoje em Bruxelas que é leviano e irresponsável falar em baixar os impostos, sem se conhecer ainda os dados da economia portuguesa do ano passado e os indicadores dos primeiros meses deste ano. Não percebo o que ele pretende refutar.

Por um lado, os factos posteriores vieram comprovar indiscutivelmente como o governo também equacionava a descida dos impostos, tal qual o falatório que Sócrates acusava de leviano e irresponsável da oposição… Por outro, quanto ao texto omisso referido por Vital Moreira, constituído pelo condocionamento devido ao conhecimento prévio dos dados da economia portuguesa, mesmo ele deveria saber que esses números não aparecem subitamente numa Sexta-Feira à noite, qual sorteio do totoloto na TV. Existem tendências, estimativas, previsões… E que há um certo hiato de tempo entre o seu apuramento e a sua divulgação pública… Ou Vital quer-nos-á fazer crer que, conhecidos ontem, foi apenas preciso que Sócrates olhasse para eles e dissesse logo:

- Porreiro, Pá! Porreiro! Com estes números vou já baixar o IVA em 1%...

Há momentos em que a vida política portuguesa tem laivos que parecem do domínio da psicopatologia, com um primeiro-ministro a ter a vida facilitada por quem se propõe derrubá-lo e, ao mesmo tempo, a mesma dificultada por quem põe tanta devoção em ajudá-lo

26 março 2008

JAWOHL, FRAU DE SOUZA!*

Teresa de Sousa, cada vez mais em vias de se assinar Theresia von Souza, intitula o seu artigo de hoje no Público "Sarko", o anglo-saxónico?, sintetizando-o da seguinte forma: Nicholas Sarkozy terá aprendido a sua primeira lição: que não consegue fazer grande coisa sem a boa vontade de Berlim. É a perspectiva de quem parece que mora paredes-meias com a Porta de Brandeburgo e tem uma amnésia histórica e geoestratégica notável.
Se Sarkozy aprendeu a sua primeira lição e está em vias de reconstituir uma aliança anglo-francesa, então Ângela Merkel tem duas valiosas lições do passado para aprender: uma dada por um antecessor com os bigodes compridos e ondulados (acima), outra por um outro antecessor seu, mas com o bigode mais curtinho (abaixo). A hegemonia germânica na Europa torna-se mais difícil de impor sem a boa vontade conjugada de Londres e Paris...
* Claro, Senhora de Sousa!

O VERDADEIRO FRANCHISE

Suponho que ainda se lembrem de um Concurso da SIC chamado Ídolos, especialmente da melhor parte, que era a fase de selecção prévia dos concorrentes, ocasião em que lá apareciam uns cromos inacreditáveis, perante a estupefacção do júri (abaixo).
Outro dia, enviaram-me uma dessas cenas inacreditáveis, via You Tube, mas agora no concurso homólogo que se realizou na Bulgária. Descobri que em terras eslavas há quem assassine a língua de Shakespeare com tanta ou mais eficácia do que os espanhóis…
Embora o gozo seja todo feito à custa da concorrente, o que eu não estava à espera, prestem bem atenção ao vídeo, é à extraordinária semelhança física entre os vários membros do júri búlgaro e os seus homólogos que haviam sido escolhidos em Portugal.
Parece óbvio que nestes formatos televisivos transnacionais o franchise é de rigor e, neste caso, mais do que o discernimento do julgador, parece ser a aparência de jurado que mais conta. Pelos vistos, além dos concorrentes, houve ali mais gente a fazer figuras tristes

Adenda: Descobri, através deste vídeo, que a artista da audição anterior, a búlgara Valentina Hasan, afinal vive em Espanha e que deve ter sido lá que aprendeu a falar inglês… Só mesmo em Espanha é que Valentina conseguiria convencer-se que falava inglês…

25 março 2008

A OPERAÇÃO FÉLIX

Ainda hoje, quase 68 anos passados sobre os acontecimentos, permanecem controversas as conclusões que se podem extrair do encontro efectuado entre Adolfo Hitler e Francisco Franco que teve lugar na gare da estação de caminhos-de-ferro de Hendaye em 23 de Outubro de 1940. Hendaye é uma cidade que fica na fronteira entre a Espanha e a França, Hitler fez a maioria do caminho, era por isso ele que vinha à procura de qualquer coisa ao encontrar-se com Franco. A conclusão de que Hitler não obteve o que queria da forma que esperava será presumivelmente verdadeira, as razões pelas quais isso aconteceu, especialmente as que foram postas a circular pelos espanhóis depois da Segunda Guerra Mundial é que talvez não…

É curioso como nas narrativas da Segunda Guerra Mundial se costumam perder os compassos de espera, os momentos de hesitação, como o que afectava Adolfo Hitler e o Alto Comando Alemão no Outono de 1940. Por um lado, a Alemanha havia vencido e conquistado a França em Junho desse ano, por outro, as conclusões que se extraíam da batalha aérea que se estava a travar desde o princípio do Verão sobre os céus de Inglaterra, apontavam para que a Alemanha não conseguisse desgastar as defesas britânicas a um ponto tal que permitisse realizar ali um desembarque com sucesso – foi esse o teor de um Relatório que o Alto Comando alemão virá a entregar a Hitler em 12 de Novembro. Impunha-se adoptar uma estratégia indirecta contra a Inglaterra.
O conteúdo da sua Directiva Nº 18 é esclarecedor quanto à inflexão que Hitler pretende dar à guerra em curso: O objectivo da minha política para com a França é cooperar com este país para a continuação da guerra contra a Inglaterra. (…) A tarefa mais urgente dos franceses é a protecção defensiva e ofensiva das suas possessões coloniais contra a Inglaterra e o movimento gaullista. Partindo desta tarefa inicial, a participação da França na guerra contra a Inglaterra poderá desenvolver-se plenamente. É no quadro da preparação desta cooperação franco-alemã que Hitler, na mesma viagem (a 24 de Outubro) se virá a encontrar noutra estação de caminho de ferro francesa (Montoire) com o Chefe de Estado francês, Philipe Pétain (acima).

Sobre a Espanha, ou mais precisamente sobre Portugal e Espanha, a mesma Directiva 18 estabelece que “O objectivo da intervenção alemã na Península Ibérica (Operação Félix) é expulsar os ingleses do Mediterrâneo Ocidental. Gibraltar será conquistada e o estreito fechado; os ingleses serão impedidos de constituir qualquer testa-de-ponte em qualquer outro local da península ou das ilhas Atlânticas.” Sobre estas últimas existem instruções específicas: Os Comandos da Marinha e da Força Aérea examinarão como pode ser reforçada a defesa espanhola das Canárias e como podem ser ocupadas as ilhas de Cabo Verde. Peço igualmente que a questão da ocupação da Madeira e dos Açores seja avaliada nas suas vantagens e inconvenientes.
Segundo a versão espanhola, o que teria sido uma verdadeira imersão dos dois países ibéricos no caldeirão da Segunda Guerra Mundial acabou por não ter lugar devido às exigências desmesuradas e à habilidade negocial do generalíssimo espanhol. Uma história (provavelmente apócrifa) atribui a Hitler o comentário que mais facilmente arrancaria um dente (ou mais, conforme o autor que a conta…) a repetir a entrevista com Franco. Comentários como este são deliciosos para o nacionalismo espanhol, mas observações mais objectivas e mais sóbrias, fazem notar que podem ter sido as exigências espanholas para a anexação de territórios coloniais franceses do Norte de África que impediram o acordo em Hendaye.

Quando a Segunda Guerra terminou, aquele episódio de ter feito frente a Hitler em Hendaye era, por assim dizer, um dos raros activos a ser explorado diplomaticamente pelo regime franquista perante a nova Ordem internacional. A Espanha, recorde-se, tinha sido muito mais cúmplice com o lado dos vencidos do que o havia sido Portugal, e iria atravessar por isso um período de ostracismo. Mas a história de Hendaye parece ser falsa e é o calendário que assim o demonstra: é que o encontro em que Franco se mostrou renitente teve lugar em 23 de Outubro de 1940, mas que a opinião deste último parece não ter sido nada afectada, confirma-se pelo facto da data da célebre Directiva 18, que estabelece as várias operações, ser de 12 de Novembro…
Ou seja, Adolfo Hitler não se mostrou nada incomodado pelas exigências de Francisco Franco, pelo menos a ponto de alterar a definição das suas prioridades estratégicas naquela altura… A História seguiu um curso diferente, mas Hitler mostrou-se de um autismo completo, mesmo em relação aos aliados que queria cativar. Como os tempos futuros poderão vir a demonstrar cada vez mais, o conceito que uma Alemanha forte tem daquilo que deve ser a actividade diplomática é muito semelhante a uma reunião onde o lado alemão explica a racionalidade da sua maneira de ver as questões, e depois os restantes participantes concordam. E quanto esse trabalho de persuasão é feito por outros, tanto melhor, como aconteceu com o Tratado de LissabonSehr Gut, Pá!

24 março 2008

ALGUMAS REFLEXÕES A PROPÓSITO DE SEPARATISMOS E DO TIBETE

Suponho que ninguém tenha ouvido falar do Movimento pela Soberania Hawaiiana, nem do Partido pela Independência do Alaska, dos defensores da Segunda República do Vermont ou ainda, da organização que se propõe reconstituir os Estados Confederados da América do Século XIX (1861-65), denominada a Liga do Sul (abaixo). Tomadas em conjunto, até parece que os Estados Unidos correm o risco de virem a ser despedaçados por esta profusão de organizações separatistas.
É evidente que ninguém conhece estas organizações porque a grande comunicação social norte-americana também não lhes dá qualquer relevo, o que, por sua vez, lhes dá uma expressão eleitoral irrisória, num ciclo contínuo de importância marginal. Nós próprios, até já nos esquecemos como também possuímos umas organizações do mesmo género, agrupadas numa coligação designada UDA/PDA (símbolo abaixo), proponentes das independências açoriana e madeirense.
Um dos métodos comprovados para que as organizações separatistas marginais saiam desse anonimato consiste em passarem a ser violentas. E às vezes têm imenso sucesso a fazer isso: veja-se o que acontece com a ETA (abaixo) no País Basco. Contudo, o facto de ali vigorar uma democracia eleitoral, permite escutar a opinião popular para além da espectacularidade das acções terroristas: as organizações que defendem eleitoralmente a conduta da ETA nunca obtiveram mais de 20% dos votos.
Pode nem sempre ser assim. Em 1981, o IRA irlandês aproveitou uma eleição intercalar, para fazer concorrer um dos seus militantes que estava aprisionado e que o poder político britânico, para efeitos de propaganda, equiparava a um delinquente comum. Para grande embaraço das autoridades, o delinquente foi eleito deputado, embora não tivesse sido libertado para que pudesse ocupar o seu lugar, e o Parlamento britânico viu-se forçado a aprovar rapidamente legislação que evitasse a repetição da cena…
Como se vê pelo que aconteceu no exemplo britânico, não costuma haver intervenientes ingénuos nestas questões do separatismo, mas suponho que quando não se atinge um limiar mínimo de liberdades reais na luta separatista, acaba por se legitimar o emprego da violência terrorista. Relembre-se que foi sob essas condições que outrora a ETA e o IRA prosperaram e é também nessas mesmas condições que tem de ser apreciada a luta política que recentemente se reacendeu no Tibete.
Muito mais longe dos cabeçalhos dos jornais do que o Tibete, a China tem estado a conquistar posições no outro lado dos Himalaias, no Nepal, onde o Partido Comunista do Nepal (Maoista - acima), que ocupa cerca de 25% da Assembleia Legislativa nepalesa, se tem destacado na transformação do regime ali vigente de uma Monarquia constitucional para uma República. É neste quadro de subtis movimentações geoestratégicas que seria de esperar que houvesse uma reacção do seu rival indiano, cujos efeitos agora observamos.
A fragilidade da presença chinesa no Tibete assenta em características que são próprias ao carácter anti-democrático da sua ocupação. Não fosse assim, e a China poderia vir a retaliar de forma simétrica com efeitos semelhantes, apoiando movimentos separatistas entre os seus rivais, seja no estado indiano de Arunachal Pradesh, seja nos norte-americanos do Hawaii ou do Alaska. Se isso não acontece é porque a expressão eleitoral continua a ser o melhor dissuasor das tendências separatistas mas a China não se atreve a fazê-lo no Tibete.

23 março 2008

O PAÍS DOS SHERLOCK HOLMES

O país que gerou Sherlock Holmes tem, obviamente, uma estranha relação com o crime. Então se o crime estiver associado de algum modo com o estrangeiro, parece que ainda é melhor – lembremo-nos, por exemplo, de O Crime no Expresso do Oriente ou do facto de Hercule Poirot ser um detective belga… É uma fixação tão peculiar que parece que distingue o Reino Unido do resto do Mundo.
Escolhemos um dia como outro (hoje) e um jornal sóbrio (como o Guardian), e especulemos sobre quantos mais países dedicariam a atenção de duas notícias principais ao assassinato de duas nacionais suas no estrangeiro (em Goa e na Jamaica)... É que é capaz de ter sido esta espécie de paranóia nacional a maior responsável pelos problemas aparecidos à volta do desaparecimento de Madeleine McCann*

* Há 464 referências (!) a artigos com esse nome nos arquivos do mesmo jornal

OS TELEMÓVEIS DE NAOMI CAMPBELL

Aconteceu-me ontem ter encalhado num daqueles programas dedicados à vida das celebridades, daquelas que pouco fizeram, são. Uma das celebridades visadas era a modelo Naomi Campbell (abaixo) que, com o decorrer da história, me veio a despertar a minha atenção porque ela veio a revelar como ela tem um impressionante cadastro de agressões às suas empregadas.
Típico da superficialidade deste tipo de notícias, são poucos os que se interessam em questionar como é que várias empregadas vão para o Hospital para serem suturadas com vários pontos na cabeça mas a história judicial é sempre a de que um telemóvel lhes foi arremessado à cabeça por uma impulsiva Naomi. A mulher, além de ter boa pontaria, usa uns telemóveis estranhamente pesados…
Mas, confesso que o que mais me incomodou nem foi esse lado mentecapto da transmissão da notícia, foi sobretudo a condescendência totalmente esvaziada de conteúdo reprovador com que foram narrados aqueles sucessivos episódios de violência excessiva. É que o conjunto parece apontar para alguém profundamente desprezível por detrás da imagem, apesar da qualidade da figura…

22 março 2008

DE TIJOLOS A TELEMÓVEIS?

Há sensiivelmente uma geração atrás, 28 anos mais precisamente, uma música dos Pink Floyd tornou-se imensamente popular, alcançando os primeiros lugares do top da maioria dos países ocidentais, para além de ter sido também um hino de protesto (banida) na África do Sul. Uma canção que, se calhar, muitos dos professores actuais até terão trauteado numa outra encarnação… A letra andava à volta disto:

Nós não precisamos de educação
Não precisamos de controlo do pensamento
Nem de sarcasmos cruéis nas aulas
Professores deixem os miúdos em paz
Hey! Professores! Deixem os miúdos em paz!
Afinal, trata-se apenas de mais um tijolo no muro.
Afinal, também vocês são apenas mais um tijolo no muro.

Anteontem, ao ver o filme dos distúrbios na sala de aula da Secundária do Porto, não deixei de pensar como a ameaça denunciada pelos Pink Floyd parece ser hoje uma coisa de outra galáxia, e como os miúdos já não correm o risco de serem mais um tijolo na parede. Mas, pelo empenho demonstrado pela miúda em bater-se pelo que considerava ser a essência de si, pergunto-me também se as novas ambições também não passaram a ser apenas a de ser mais um telemóvel por aí?…

21 março 2008

KAISERSCHLACHT

Este blogue não é dado a efemérides, é uma mera coincidência, mas engraçada, que se assinalem hoje precisamente 90 anos (21 de Março de 1918) que se desencadeou a primeira das três últimas Grandes Ofensivas alemãs da Primeira Guerra Mundial, que se destinavam a romper o impasse que se havia instalado entre os exércitos instalados nas trincheiras da Frente Ocidental. Erich Ludendorff, o general que era o cérebro por detrás da estratégia e do esforço de guerra dos alemães, reconhecera que, depois da entrada dos Estados Unidos na Guerra (Abril de 1917), mesmo contando com o abandono da Rússia (Novembro de 1917), o tempo passara a favorecer os seus inimigos.
Esta primeira ofensiva, baptizada Operação Michael, está muito bem descrita num livro (The Kaiser´s Battle – acima) de um reputado historiador militar britânico, Martin Middlebrook. A descrição é detalhada e, como acontece com outros livros do mesmo autor (como acontece com o mais conhecido The First Day on the Somme) baseia-se nos depoimentos e procura reproduzir a perspectiva daqueles que participaram na batalha. Sobre ela, em síntese, pode dizer-se que os alemães conseguiram romper as linhas britânicas pelo efeito de surpresa do seu ataque e progrediram cerca de 60 quilómetros até os dois exércitos se encontrarem num novo impasse de novas trincheiras, criando uma bolsa.

O V Exército Britânico, comandado pelo General Gough, ficou momentaneamente feito em estilhaços (ele foi demitido) e foi preciso deslocar unidades que estavam em reserva noutras frentes (incluindo francesas). Estima-se que os atacantes alemães sofreram cerca de 250.000 baixas, os britânicos, que sofreram o impacto inicial da ofensiva, 163.000 e os franceses, que os vieram apoiar, umas adicionais 77.000. Contrariamente ao que se costuma escrever, o impasse táctico que se vivia na Frente Ocidental na época, já não tinha a ver com a questão técnica como ultrapassar o sistema das trincheiras inimigo, nem o problema que existia veio a ser resolvido com o emprego dos blindados (como se sugere abaixo).
Os britânicos já haviam empregue os seus blindados durante a Batalha de Cambrai em Novembro de 1917 e, tirando a ruptura do sistema de trincheiras alemão, pouco mais tinham progredido no terreno. Em contrapartida, os alemães nesta Operação Michael também tinham rompido logo de início o sistema de trincheiras britânico e não haviam precisado de nenhum blindado… Na verdade, o que esgotava as ofensivas era a incapacidade logística de as alimentar apropriadamente em homens, material e munições, através dos terrenos recém-conquistados (e normalmente destruídos), de forma a que não se desse ao inimigo oportunidade de se organizar. Não se conseguia manter a dinâmica da ofensiva.

Uma outra conclusão a retirar daquele livro tem a ver connosco, com o desempenho das tropas portuguesas no conflito, durante a ofensiva seguinte, que foi baptizada Operação Georgette, cuja fase inicial foi conhecida como a Batalha de La Lys (9 de Abril de 1918). É que as descrições contidas no livro de Middlebrook sobre o que aconteceu às unidades britânicas que ocupavam na Frente em 21 de Março (como a 34ª, 36ª, 59ª ou 61ª Divisões britânicas), incluindo o desaparecimento quase total dos efectivos dos batalhões mais avançados* e as recriminações recíprocas entre os Estados-Maiores pela impotência da reacção, são precisamente iguais ao que veio a acontecer posteriormente à 2ª Divisão portuguesa...
Por detrás da severidade de muitas apreciações que se lêem sobre o comportamento das tropas portuguesas (cuja preparação era, indiscutivelmente, inferior à das tropas britânicas) quando do ataque alemão de 9 de Abril, parece haver uma muito maior sensibilidade às acusações políticas que então se trocaram na arena política portuguesa, do que à realidade militar existente na altura. É provável que os alemães tivessem escolhido a 2ª Divisão portuguesa para o alvo principal do seu ataque por ser uma das unidades menos bem preparadas do inimigo; mas também há uma probabilidade superior que, qualquer que tivesse sido a unidade escolhida para o ataque, ela teria sofrido um destino semelhante.

O destino das unidades britânicas atacadas há precisamente 90 anos acaba por corroborar isso. Quanto à Operação Georgette, terminou em 29 de Abril, de uma forma semelhante à da sua antecessora Michael, embora com resultados menos sangrentos: 109.000 baixas entre os atacantes alemães, 76.000 entre os defensores britânicos e 6.000 entre os portugueses e ainda 35.000 francesas, novamente chamados para colmatar as brechas na Frente aliada. Num último esforço, a 27 de Maio os alemães desencadearam ainda a sua derradeira tentativa da Kaiserschlacht (Batalha do Kaiser), numa Operação baptizada de Blücher-Yorck, agora contra um sector da Frente guarnecido por tropas francesas.
O resultado foi, como nos casos anteriores, a criação de uma nova bolsa na configuração da Frente Ocidental (veja-se acima), com mais 130.000 baixas entre os atacantes alemães, 98.000 e 29.000 entre os defensores franceses e britânicos, respectivamente, e o aparecimento na Frente, pela primeira vez em número significativo, das reservas constituídas pelas novas Divisões norte-americanas, recém-chegadas à Europa. Quando esta derradeira Operação foi dada por terminada por Erich Ludendorff, a 15 de Julho de 1918, e embora os beligerantes ainda não o soubessem, o fim da Primeira Guerra Mundial estava finalmente a uns 120 dias de distância…

* Cerca de 20.000 britânicos ter-se-ão rendido nas primeiras horas da Ofensiva.

O PECLEC, O SIGIC, O NUNO E O MELO

Passei ontem de raspão por um programa da RTP 1 chamado Corredor do Poder, onde vi um aplicado Nuno Melo a esforçar-se por ser ouvido e por mostrar que dominava em profundidade os assuntos de saúde, perguntando à esquerda e à direita, se algum dos seus colegas rivais sabiam o que era o PECLEC e o SIGIC*. Alguém já tinha ouvido falar? – acrescentava ainda Nuno Melo, numa tentativa de ironia de erudito, perante os seus rivais de programa que não se mostravam dispostos a devolver-lhe a deixa.

Já por aí li, e não foi assim surpresa, que o Corredor do Poder tinha sido concebido originalmente como um programa em que participariam jovens políticos dos partidos parlamentares, o que faria esperar protagonistas na faixa dos 25 anos, em vez dos jovens presentes, cuja média de idades se aproxima afinal dos 35 anos. O que foi surpresa, desculpar-me-ão os outros convidados que até podem nem ter culpa, é ter ouvido ali um estilo de argumentação, que parece mais própria a quem tenha 15 anos.

Mais do que ser jovem, é ser-se adolescente tentar utilizar a técnica de atirar acrónimos para o ar, para tentar intimidar os oponentes e dar provas de conhecimento dos assuntos que estão em discussão… Não fica bem em qualquer interveniente daquele programa, muito menos em Nuno Melo que, com 42 anos feitos há dias (18 de Março de 1966), já nem para jovem agricultor serviria, mas, pelos vistos, ainda consegue passar por jovem político, com jeito talvez passe mesmo por dois: um de 21 anos em cada perna

* PECLEC – Programa Especial de Combate às Listas de Espera Cirúrgicas. Acabou em 2004 e foi substituído pelo SIGIC – Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia.

20 março 2008

A ENTRONIZAÇÂO E DEPOSIÇÃO DE HELIOGÁBALO

Heliogábalo (acima) foi um instrumento no meio das ambições de três mulheres: da sua avó, Júlia Maesa, da sua mãe, Júlia Soémia e da sua tia, Júlia Mamea. A primeira era irmã da viúva de Septímio Severo, Júlia Domna, que fora imperador romano entre os anos de 193 e 211, e, consequentemente, as suas duas filhas eram primas direitas de Caracala (211-217), o imperador que sucedera a seu pai no trono e que morrera assassinado numa conspiração palaciana e fora substituído pelo argelino Macrino em Abril de 217.

A disputa do trono que se travou entre Abril de 217 e Junho de 218 travou-se na Síria, terra de origem das Júlias e local onde na altura se concentrava o grosso do exército romano em guerra contra os partos. A técnica escolhida pelas conspiradoras foi a de evocar o prestígio de Septímio Severo e a popularidade de Caracala para, realçando os laços familiares que os ligavam a este último, promover a candidatura dos primos de Caracala (os filhos de Soémia – Heliogábalo – e de Mamea – Severo) ao trono.
Heliogábalo, o mais velho tinha precedência sobre o primo. Na história das várias aberrações que ocuparam o trono romano (como Calígula, Nero, ou Cómodo) é difícil escolher alguém que tenha superado Heliogábalo em desajustamento para o desempenho daquelas funções. Heliogábalo, cujo verdadeiro nome era Varius Avitus Bassianus, é descrito como um adolescente (nascera em 204, teria 14 anos na altura da ascensão ao trono) gordo, efeminado, debochado e religioso até ao fanatismo.

A sua instalação em Roma, em Setembro de 219, veio a tornar-se num verdadeiro choque cultural, devido à sua devoção religiosa, que o faz tornar-se conhecido para a História pelo nome do deus que idolatrava – Heliogábalo. A sociedade romana dos inícios do Século III até seria extremamente cosmopolita, habituada a soluções pragmáticas, mas o seu machismo genético não a torna predisposta a aceitar pacificamente o poder feminino assumido de uma forma tão formal como a demonstrada pela moeda abaixo… Pior que isso, só mesmo o hermafroditismo assumido do imperador, chocante, ainda assim, naquele cargo, numa cidade onde já se havia visto quase tudo… Passados uns meros 4 anos (em Março de 222), antecipando a insustentabilidade (e a impopularidade) de Heliogábalo, a avó Maesa e a tia Mamea acabaram por se coligar em favor do seu outro neto e filho Severo contra a mãe Soémia e o imperador, que acabaram executados, decapitados e lançados ao Tibre, depois de uma revolta popular devidamente gerida.

O primo Severo (abaixo), que reinou de 222-235 e que originalmente se chamava Gessius Bassianus Alexianus, mas cujas agências de comunicação da época sugeriram que adoptasse o nome de Severo Alexandre (juntando as referências do nome de família do marido da tia-avó com o do imortal conquistador grego), tornou-se no novo imperador, num regime onde mãe e filha decidiam e portanto não muito distinto do anterior, mas com a vantagem de não ter um monarca a embaraçá-las pelo comportamento e reputação.

19 março 2008

OS MEDICAMENTOS

Sabe-se como a capacidade de síntese conjugada com a necessidade de tornar o conteúdo apelativo pode levar a que os cabeçalhos das primeiras páginas dos jornais contenham gigantescas distorções da realidade. Mas não creio que tenha sido esse o caso do que acontece com o título e subtítulo de uma notícia publicada na primeira página de hoje do Público:

Baixa do preço dos medicamentos não beneficiou os doentes

O Governo cortou nas comparticipações e o Estado é que ficou a ganhar

Esta redacção incorpora-se perfeitamente naquele conceito nacional que o Estado é como se fosse uma entidade alheia a todos nós. Neste caso concreto dos medicamentos, pela redacção dos jornalistas do Público, até parece que há uma espécie de jogo triangular concorrencial entre as farmacêuticas, os consumidores e o Estado. E que o ganho do Estado não representa afinal um ganho dos contribuintes que também são consumidores…

Porque é que me fica a suspeita que, não fossem as farmacêuticas as verdadeiras lesadas de todo o processo, o título não seria aquele, a notícia não seria de primeira página, ou nem haveria notícia sequer?...