17 março 2008

O OUTRO PAPA PORTUGUÊS

Patriotismos à parte, para um Papa que teve um pontificado de uns escassos oito meses no já longínquo Século XIII, e que pouca influência teve no curso da grande ou da pequena História da Igreja, a avenida lisboeta que recebeu o nome de João XXI tem uma dimensão descomunal. Na História, os Papas que tivessem tido uma origem extra-italiana costumam ser muito raros: a Inglaterra, por exemplo, teve um (Adriano IV), a Holanda teve outro (Adriano VI), a Espanha (embora fosse mais correcto escrever a Catalunha) teve dois (Calixto III e Alexandre VI). De Portugal poder-se-á dizer que teve um e meio

O meio, para além da já citada pessoa de João XXI, chamou-se Dâmaso I, e foi um Papa do Século IV (de 366 a 384), que embora nascido em local incerto*, muito provavelmente isso terá acontecido em território que hoje faz parte de Portugal. Dâmaso I, além de ter sido um português antes do conceito moderno do termo, também foi um Papa antes do conceito moderno do termo. É que as regras para a eleição dos bispos, especialmente quando se tratava de uma diocese cobiçada como era Roma, tinham estranhas semelhanças com as disputas sucessórias que se desencadeiam por morte de um padrinho da Máfia…

Segundo fontes consideradas bastante fiáveis**, a disputa entre Dâmaso I e o seu rival Ursino teria custado a vida a 137 fiéis, até que as autoridades, sob indicação imperial, puseram fim à animada disputa teológica depondo e deportando o rival de Dâmaso. Em importância, a Roma do Século IV já não era a Cidade imperial que fora no passado mas ainda não era a Cidade papal que viria a ser no futuro. Os Imperadores do Ocidente, Valentiniano I (364-375) e seu filho Graciano (375-383) estavam normalmente em deslocação de uma fronteira para outra, mas quando em Itália, preferiam residir no Norte, em Milão.

É por isso que a notoriedade de Santo Ambrósio para a História da Igreja no Ocidente supera em muito a do seu contemporâneo Dâmaso I. Santo Ambrósio, recorde-se, era um francês que se havia tornado bispo de Milão (374-397). Não se questiona a eloquência de Ambrósio em defesa da ortodoxia de Niceia contra a ameaça representada pela doutrina do arianismo adoptada pelos povos bárbaros, mas a proximidade da Corte imperial deve ter dado uma certa ajuda à formação dessa reputação de Ambrósio. E também convém esclarecer o leitor como o cristianismo daquela época ainda era uma religião predominantemente oriental.

É que todas as grandes figuras do Segundo Concílio Ecuménico, Constantinopla I (em 381 – e que paradoxalmente foi convocado por um Imperador espanhol, Teodósio I) eram todas orientais como o egípcio Timóteo de Alexandria, o sírio Melécio de Antioquia ou os turcos Gregório Nanzianzeno e Nectário de Constantinopla (na realidade todos eles pertenciam culturalmente ao mundo grego). Mas é nesse enquadramento que temos de perceber o alcance da decisão de Dâmaso, oriundo de uma das regiões mais latinizadas do Império, de estabelecer – com a ajuda de São Jerónimo – uma versão definitiva da Bíblia em língua latina.

Há muitos factos associados ao período do pontificado de Dâmaso I que ficarão sempre por esclarecer: Porque razão preferiu não comparecer ele no Concílio de Constantinopla de 381? Quais eram as suas intenções (e também as de Ambrósio de Milão) ao convocar um Concílio alternativo em Roma com os bispos do Ocidente, logo no ano seguinte? Quais foram as decisões desse Concílio? Nitidamente, com Dâmaso I percebe-se como o bispo de Roma pretendia ter ambições superiores às de um mero primado cerimonial que os titulares das, então provavelmente muito mais ricas, dioceses do Oriente estariam dispostas a conceder-lhe.

É engraçado que entre os quatro Doutores da Igreja originais, dois sejam contemporâneos e próximos de Dâmaso I: Santo Ambrósio de Milão e São Jerónimo***. Destinada a destacar os méritos da produção teórica, aceita-se que a qualificação não assente bem em Dâmaso I, um político determinado, improvável candidato à canonização – afinal não se vence uma disputa eleitoral com 137 mortos à custa de boas obras e orações… Agora, quanto à toponímia, suponho que eu veria de mais bom grado aquela Avenida como Dâmaso I do que como João XXI. O pontificado de João XXI é apenas uma epopeia à construção civil defeituosa****

* Pode ter sido na diocese da Egitânia (sensivelmente a região entre o Douro e o Tejo) ou na actual região minhota da antiga província da Galécia (que abrangia todo o Norte do Douro).
** Amiano Marcelino, um dos principais historiadores daquele período cujos textos sobreviveram até ao nosso tempo.
*** Os outros dois são Santo Agostinho de Hippo (Século V) e o Papa São Gregório I Magno (século VI).
**** João XXI morreu na sequência de uma derrocada no palácio que recentemente mandara construir.

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