07 maio 2015

PELO CENTENÁRIO DE UM DIÁRIO DE UM AUSTRALIANO EM GALÍPOLI

Às primeiras horas da madrugada de Domingo, 25 de Abril de 1915, uma força expedicionária de 70 mil homens constituída por britânicos, franceses, australianos e neozelandeses preparava-se para fazer três desembarques simultâneos e de surpresa nas costas do Estreito dos Dardanelos. As praias de Galípoli, no lado europeu, haviam sido escolhidas para objectivo dos 17 mil australianos e neozelandeses. Entre estes, viajando num dos barcos a remos que silenciosamente procuravam chegar a terra, encontrava-se o cabo George Deane Mitchell (acima), então com 20 anos, de que iremos ler algumas entradas dos próximos três meses no diário que então escreveu.
25 de Abril de 1915
Oh meu Deus, que dia.
Por volta das duas da manhã fomos todos acordados e num silêncio nervoso reunidos no tombadilho. Uma lua esplendorosa iluminava a cena enquanto o nosso navio se deixava estar, motores desligados, num mar chão. Viam-se muitos pares de olhos apontados para os contornos da costa, à distância, elevando-se do horizonte como uma esfinge detentora dos mistérios da vida e da morte. A quebrar o silêncio apenas um imperceptível arrastar de pés, interrompido de quando em vez pelas pragas abafadas de quem tropeçava. Era uma atmosfera estranha.
Comecei a respirar fundo. Tentei analisar o que se estaria a sentir, mas não o consegui. Julgo que era uma complexa mistura de sentimentos de onde se destacava um certo orgulho. Tínhamos vindo do Novo Mundo para a conquista do Velho. Esperávamos que fosse difícil, mas nunca esperávamos que viesse a ser tão difícil quanto o foi. Sabíamos que o preço do fracasso seria a aniquilação e que a vitória seria a sobrevivência. Lembro-me de me ter voltado para o desgraçado do Peter e de lhe perguntar como é que se sentia.
Bem. Foi a última vez que falei com ele.
Hora após hora a nossa procissão prosseguiu metodicamente. O vento frio parecia entranhar-se até aos ossos. E depois começaram a acontecer coisas. Uma luz azulada começou a materializar-se sobre aquelas colinas até aí indistintas. Fomos vistos – ouviu-se num silvo. E então tudo começou.
Knock, knock! A tensão disparou. Enfim - lembro-me de ter pensado - ao menos já não há dúvidas. Klock-klock-klock. Wee-wee-wee. Os sons dos pequenos mensageiros da morte. Então tudo se tornou num coro gigantesco e descobrimos que eles se haviam concentrado à nossa espera.
A chave passara a ser a do cadeado que selava as portas do Inferno. Alguns agacharam-se o mais que puderam no barco já sobrelotado. Outros mantiveram-se sentados afectando despreocupação. Outros faziam o mesmo, mas ostensivamente. A outros ainda, dava-lhes para rir e dizer piadas, enquanto havia aqueles a quem lhes dava para praguejar. Os últimos cem metros até à praia durava uma vida. O barco carregado avançava devagar, se assim se podia dizer. Houve uma altura em que já não dava mais: Saltem pelos lados, pessoal! – gritei enquanto o fazia também.
Quando cheguei a terra chamei a minha secção para que se me reunisse. Durante aqueles preciosos minutos em que em que permanecemos protegidos atrás de um barranco, à espera que todos chegassem saraivadas de balas aterravam na areia à nossa volta. Tive um arrepio quando finalmente me apercebi do significado dos gritos intermitentes que se ouviam à nossa volta.
A origem do fogo parecia predominar do lado esquerdo, onde o declive era mais elevado. Um homem aterrou a meu lado muito bem-disposto, a rir. Dei-lhe a novidade, com a maior gentileza que me foi possível:
Estás metido na maior enrascada da tua vida. Mostrei-lhe a localização do inimigo, disparámos alguns tiros. E uma vez mais ouvi o barulho característico do impacto de uma bala. Olhei para ele horrorizado. A bala tinha-lhe acertado na cara, destruindo-a e deslizando garganta abaixo, devido à sua posição, emudecendo-o. Mas o que os seus olhos transmitiam era assustador de contemplar enquanto agonizava. Não havia nada que lhe pudesse fazer, a não ser rezar que morresse o mais depressa possível. Passaram-se vinte minutos até que isso acontecesse, quando cruzou as pernas numa agonia hirta.
Subitamente, a ritmo compassado sobrepondo-se aos ruídos da batalha, ouvia-se um terrível
Woom-Pah que parecia fazer com que terra, mar e ar se levantassem em uníssono para assentar de novo. Era o Big-Lizzie¹ participando com os seus brinquedos de 15 polegadas. (foto abaixo) Chegou uma ordem para calar baionetas e preparar para atacar. Os sobreviventes do desembarque fixaram as baionetas às espingardas e prepararam-se para saltar simultaneamente à ordem. E que tempestade de chumbo nos acolheu quando os reflexos metálicos do aço se tornaram visíveis por cima dos arbustos que até ali nos haviam protegido! Uns quatro homens caíram instantaneamente. Creio que só um homem em seis daquela linha estava capaz de progredir, os outros estavam mortos ou feridos.
Depois de ter esperado até que o fogo diminuísse de intensidade, preparei-me para saltar dali para fora e correr para uma posição mais adiantada mas mais segura do que aquela linha que agora parecia definida por corpos estendidos. Não sei por quantos passei no meu sprint, mas sei que o ar estava cheio de balas e que eu lhes perdera o medo. Alcançada a posição a quatro metros dali, atirei-me para o chão e rolei até me ver ao lado do Jock:
Atingido? – perguntou-me. Não sei – respondi - Vou ver. Mas não encontrei nenhum buraco de bala. E por ali nos deixámos estar até à noite chegar e pudemos sair dali para fora, cavando um buraco para nos protegermos.
O desembarque fora um fracasso estratégico e tornara-se um embaraço táctico. As tropas nem sequer haviam desembarcado no local originalmente previsto, mas noutro local, onde as condições para a progressão seriam ainda piores que o antecipado, com um inimigo agora atento. Atribui-se a Napoleão a máxima que Nunca se deve reforçar um fracasso, o que aconselharia a retirada, como foi sugerido pelos comandantes das duas divisões envolvidas. O que Napoleão não pode fazer é ensinar os comandantes do topo (neste caso Hamilton e Birdwood) a reconhecer um fracasso quando estão diante de um. Na primeira semana de combates, as baixas sofridas pelos atacantes de Galípoli atingiram 8.100, ou seja quase 50% dos 17.000 efectivos inicialmente engajados, entre os quais se contavam 2.300 mortos. A sua situação era, para dizer o mínimo, precária. A fotografia abaixo é de trincheiras guarnecidas pelo próprio batalhão de Mitchell (o 10º).
4 de Maio de 1915
O nosso batalhão foi finalmente transferido para a reserva. Tive que ficar a comandar o pelotão² já que todos os mais graduados que eu morreram. Mas a contagem dos efectivos acabou por mostrar que a percentagem de baixas foi apenas de 50% em vez dos 80% com que eu contava inicialmente. Tem feito bom tempo, solarengo, sem nuvens, acolhedoramente quente, a contento com a ausência de mais mortes. As trincheiras têm estado razoavelmente calmas, o inimigo está perfeitamente controlado.

6 de Maio de 1915
Está a correr por aí uma piada que os turcos nos deram 24 horas para nos irmos embora – com armas e bagagens. Senão, seremos todos mortos. Pobres de nós. Mas está criada uma grande animosidade contra os franco-atiradores, a quem destinamos os nossos melhores tiros. Não há qualquer emoção em esperar por um inimigo que não se dispõe a aparecer.

7 de Maio de 1915
Não estamos a conceder grandes mercês ao Turco. Como podia ser de outra forma? São muito liberais no emprego de balas explosivas e, tivessem tido oportunidade, teriam cometido as suas habituais atrocidades. Os franco-atiradores têm tido resposta apropriada do nosso lado. Logo que um é apanhado à mão é imediatamente passado à baioneta.
Os turcos apanham que se fartam quando dos seus pouco empenhados ataques nocturnos à baioneta. Aproximam-se invocando Alá. Nós contemo-nos de fazer fogo até eles estarem a uns vinte passos. É aí que eles apanham umas descargas, nós saltamos das nossas posições e espetamos os que não forem suficientemente rápidos a fugir. Ainda não tive a sorte de apanhar nenhum
.
12 de Maio de 1915

Quando fui acordado para o meu quarto de sentinela, pus-me a reflectir sobre as glórias da guerra. Chegou a alvorada e começou a chover ainda mais. Às 9 da manhã fomos transferidos para as trincheiras de reserva por 24 horas. Arrastei-me preguiçosamente por todo o resto da manhã e dormi toda a tarde.
17 de Maio de 1915
Estávamos a começar a organizar o dia quando uma granada de artilharia veio aterrar na nossa trincheira. Por um par de segundos o ar encheu-se de metal e destroços. Quando o fumo e a poeira assentaram, lá estava a vítima – Alec Richmond com um buraco na cabeça – nos seus últimos estertores. Os seus amigos mais chegados com uma expressão acinzentada pelo pesar lá o carregaram.
Mas pelo meio-dia, com o trabalho do dia concluído, Cheney e eu fizemos um belo guisado, com carne, cebolas, batatas. Isso animou toda a gente para o resto do dia. Esquece-se a tragédia mal ela desaparece da nossa vista, às vezes ainda antes.

19 de Maio de 1915 (Ataque Turco)
Todos os arbustos pareciam esconder o seu turco. De repente de uma trincheira a 150 metros de distância ouviu-se um claro e distinto grito de Alá! E no mesmo instante vi o brilhar do aço de uma baioneta num recanto não muito longe.
Foi um massacre. Acabou em meia hora. A luz do dia mostrou o terreno diante de nós repleto de mortos nas mais variadas posições. Do lado direito havia um turco ajoelhado no campo de trigo, a uns meros 4 metros da trincheira. Morto. A granada que seria para arremessar para os nossos
confortáveis cantonamentos rebentou prematuramente completando o trabalho de duas balas bem assestadas. Trouxe-se umas dúzias de espingardas com baionetas e respectivas munições. Andei a divertir-me a atirar com uma. A coronha estava cheia de sangue seco mas de resto disparava bem.
Um turco ferido disse-nos que eles consideram os australianos a encarnação do mal. Os alemães haviam-lhes dito que nós éramos bandos indisciplinados, armados com paus, machados, etc. Mas reconheceu que éramos terríveis quanto ao uso das baionetas. 

24 de Maio de 1915 (Tréguas para recolha dos cadáveres)
Subimos o parapeito e entrámos no terreno contestado. Acostumei-me a ver coisas bizarras mas a novidade do episódio impressionou-me mais do que qualquer outra coisa nesta guerra. E houve quem compartilhasse a mesma opinião. Por aqui, as trincheiras estão separadas por sete a trinta metros – um labirinto confuso. Grupos de turcos, australianos e neozelandeses vagueavam pela zona da morte. Grupos mistos confraternizavam trocando cigarros, etc. Os turcos e os seus oficiais eram abertamente amigáveis enquanto os alemães se marginalizavam inexpressivos. Havia entre eles quem envergasse uniformes esplêndidos e o pretensiosismo dos hunos que os exibiam era intolerável.
De repente, uma ordem surgiu: Toda a gente para as respectivas trincheiras. Não se perdeu tempo em desaparecer da vista daquele número incontável de Maxims e Mausers.
Todo esse dia só encontrei um homem que correspondesse aquele concepção tradicional do turco de outrora. Era um individuo de aspecto satânico com um uniforme azul claro. No geral, pareciam bem alimentados e bem armados.

13 de Julho de 1915
Dia treze azarado. De manhãzinha fui dar um mergulho. E um franco-atirador turco resolveu chatear-me. Tentou-me atingir pelo menos por quatro vezes. Quando as coisas começaram a aquecer passei a ter que mergulhar e a nadar debaixo de água. Voltei para a praia. Pus as minhas coisas nas trincheiras do 11º (batalhão). Fiquei a fazer a sentinela do QG. Uma hora de serviço, duas de descanso. Estava-me a sentir adoentado. Artilharia pesada a rebentar todo o dia. De noite poderia dormir no posto mas acordava todas as vezes que alguém se aproximava. Não será que possa dormir numa cama? Estou estoirado. Quem me dera que os turcos atacassem para ao menos animar as coisas.

23 de Julho de 1915
Festival maometano do Ramadão e estamos com esperança que os turcos não deixem passar esta oportunidade gloriosa para nos atacarem.
Muito adoentado.
Passei pela enfermaria e deram-me um comprimido.
Não comi nada todo o dia.

25 de Julho de 1915
Doente.
Tomei um comprimido e fiquei isento de serviço.
Não comi nada.
Compare-se a página do diário no dia do desembarque, com a letra desta última entrada apenas três meses depois e compreenda-se como a força anímica de um homem podia desaparecer por completo em 90 dias naquelas condições. Afectado provavelmente pela disenteria, o cabo Mitchell foi evacuado em 4 de Agosto para um hospital em Alexandria, no Egipto. George Mitchell só voltaria ao serviço activo um ano depois, em Setembro de 1916, mas agora na Bélgica para onde o seu batalhão (o 10º) fora entretanto transferido. Acabou a guerra como oficial, condecorado com a Military Cross e a Distinguished Conduct Medal.

¹ Alcunha do novíssimo couraçado HMS Queen Elizabeth cujo armamento principal eram 8 canhões com um calibre de 15 polegadas (381 mm).
² Recorde-se que Mitchell era apenas cabo e que um pelotão costuma ser comandado em condições normais por um oficial subalterno, auxiliado por três ou mais sargentos que o substituem.

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