02 maio 2015

MAGISTRATURAS DA REPÚBLICA ROMANA... COMO INSPIRAÇÃO DE UMA IDEIA SOBRE AS PRÓXIMAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS

Ontem, a pretexto de querer questionar que papel se pretende atribuir a um presidente da república, em contraponto ao desempenho do actual titular, apercebi-me quanto é difícil recorrer a exemplos em que, quem gosta de discutir estes assuntos, os possa analisar de uma forma mais distanciada do que a simples personalização em função do protagonista actual e dos que o antecederam num passado recente. Invocar a complexidade dos equilíbrios das magistraturas de um sistema como o da República Romana, não costuma ser muito popular (é o mínimo que se pode dizer...) quando o âmbito da conversa incide sobre as características do poder que é actualmente conferido ao presidente da República em Portugal. Mas, embora não tenha grande acolhimento popular, pode muito bem dizer-se que, tomando a Roma republicana por referência, se exige para o cargo um prestígio de Censor (vejam-se as descrições de três das magistraturas romanas mais abaixo) embora não lhe atribuam qualquer imperium (mais abaixo também está explicado o que isso possa ser) e as suas capacidades de actuação se definem sobretudo pela negativa, como se ele fosse um Tribuno da Plebe. O que teria gostado de dizer (haja quem possa acompanhar a comparação – e por isso fiz a resenha que apresento mais abaixo) é que, porque a síntese daqueles dois cargos não é muito compatível (não nos esqueçamos que o exemplo romano tem a prova de séculos de aplicação concreta...), talvez o leque de candidatos não seja o mais apetecível... Concorde (e discorde) quem quiser. As descrições orientadoras que se podem ler abaixo são adaptações do que se pode ler mais desenvolvido em A História do Governo Vol. 1, pp. 430-435, um auxiliar para uma discussão política mais erudita...
OS CÔNSULES

O Consulado, o mais elevado dos cargos com imperium, era a mais importante das magistraturas da Roma republicana: os anos eram datados pelos nomes dos cônsules em funções e isso era identificativo porque o mandato de um cônsul durava precisamente um ano. Se nos abstrairmos de que, em geral, os poderes de todas as magistraturas romanas podiam ser bloqueados por magistrados de nível equivalente ou superior, os cônsules podem ser levados à conta dos principais membros executivos de toda a estrutura de poder, uma espécie de monarcas. Na verdade, fora inicialmente como substitutos deles, a dinastia dos Tarquínios deposta em 509 a.C., que a função fora criada. Mas, por causa da embriaguez de uma tão alta função, havia uma dupla de magistrados, para se poderem vigiar reciprocamente. Eram os cônsules quem convocava o Senado, quem o consultava, quem lhe promulgava os decretos sob a forma de éditos e quem convocava as assembleias populares legitimadoras, como os comitia centuriata ou os comitia tributa. Eram também os representantes da República perante chefes de estado estrangeiros. Embora houvessem perdido progressivamente as competências sobre assuntos fiscais ou criminais, delegados em organismos especialmente para eles vocacionados, em tempo de guerra – e isso era bastante mais do que comum durante a vigência da República Romana – os cônsules eram também os comandantes-em-chefe. Quando em operações, fora dos limites da cidade e do alcance das restrições das magistraturas concorrentes, o imperium era por eles aplicado em toda a sua plenitude.
Mais em concreto, explique-se que o par de cônsules se podia encontrar em operações simultaneamente. Se no mesmo Teatro de Operações, o exercício do comando era alternado cada dia; noutras situações, cada vez mais frequentes à medida que o Império Romano se expandia territorialmente, um dos cônsules comandava as legiões estacionadas numa das províncias enquanto o seu colega comandava outras em província distinta, em operações contra o mesmo, ou até inimigos distintos. Em geral, ao longo dos Séculos III e II a.C., houve tradicionalmente um comando mais defensivo, centrado na península italiana, e outro mais expedicionário, na Sicília, na Grécia, mesmo na Hispânia ou em África. É importante frisar que competia ao Senado decidir quais as províncias em que as legiões iriam operar no ano seguinte e que a atribuição dos comandos para cada cônsul era feita por sorteio. Além disso, o consulado podia ser controlado para além das formas preconizadas ao período anual do seu exercício. Depois do mandato expirado, os ex-cônsules podiam ter de enfrentar acusações perante as assembleias populares, e era necessário decorrerem dez anos antes que um antigo cônsul pudesse recandidatar-se ao cargo, o que, consideradas as taxas de mortalidade da Antiguidade, se tornava um acontecimento raro. Contudo, desempenhar o cargo, ainda que só por uma vez, representava logo por si a consagração máxima de uma carreira política, e a família e os descendentes de um cônsul tornavam-se, só por isso, nobiles, i.e. nobres.

OS TRIBUNOS DA PLEBE

Os Tribunos adquiriram poderes negativos e poderes positivos. Os primeiros davam-lhes o direito e mesmo a obrigação de oferecer auxilium – i.e., assistência – a todo e qualquer plebeu que se sentisse agravado pelos actos de um magistrado, bem como de suspender esse acto através do seu veto – a sua intercessio. A palavra intercedo anulava a acção de um magistrado. Mas esse poder só podia ser exercido dentro do perímetro urbano embora os tribunos estivessem proibidos de passar a noite fora de muralhas e obrigados a manter as portas de casa abertas noite e dia. Para apoiar a sua capacidade de intervenção o tribuno tinha ainda o poder de reforço, designado por coercitio, que podia impor aos próprios cônsules. Estes não podiam retaliar já que a pessoa do tribuno era sacrossanta. Assim, os tribunos dispunham dos poderes bastantes que lhes permitiam prender, aprisionar, multar, chicotear e até mesmo executar. Com esta amplitude, o Tribunato desenvolveu uma jurisdição, o direito de entregar ao concilium plebis as infracções dos magistrados. Este direito designava-se ius agendi cum plebe – o direito de lidar com a plebe. O seu efeito prático era que o direito do tribuno para convocar o concilium era absoluto. Quando convocado, ninguém o podia interromper e com isso os tribunos podiam multar o infractor ou pedir que lhe fossem aplicadas sanções. Com o evoluir dos tempos, esse direito de veto dos tribunos alargou-se dos actos da magistratura (com excepção dos censores, de que falaremos a seguir) para as resoluções apresentadas perante o Senado ou perante uma das assembleias populares.
Este poder de veto de largo espectro só era controlado de uma forma: pelo contraditório (uma espécie de contra-veto) de um outro tribuno. A princípio, os tribunos da plebe eram apenas dois. A melhor fórmula de atrapalhar a sua (contra-)actividade foi multiplicá-los: chegaram a ser dez! Assim cresceram as hipóteses de que um magistrado ou os senadores encontrassem um homólogo que contrariasse o veto original!
Por outro lado, o tribuno tinha o direito de apresentar resoluções ao concilium plebis. Em 287 a.C., as resoluções ali aprovadas – os plebis scita – receberam plena força de lei, com a mesma força de outras que fossem aprovadas nas outras assembleias populares existentes (comitia centuriata ou tributa). Mas, a sua aprovação sofria das mesmas carências: só se podia debater as que fossem apresentadas pelos tribunos, não se podia debatê-las nem emendá-las, apenas aceitá-las ou rejeitá-las, como nos plebiscito modernos, que ali foram buscar o seu nome.
Embora possuidores de um estatuto que seria formalmente inferior ao dos magistrados – careciam do imperium, do direito de tomar auspícios ou de usar a faixa de púrpura de um autêntico magistrado – o poder dos tribunos da plebe continuou a alargar-se cada vez mais. Porque, embora impossibilitados de tomar assento como senadores, conquistaram o direito de colocar resoluções ao Senado e ainda, a partir de 216 a.C., o direito de o convocar e mesmo de o presidir. Mas, nesses anos finais da República, o Tribunato acabara por se tornar parte da ordem senatorial governante e não, como originalmente fora, um cargo encarregue de a vigiar.

OS CENSORES

Os Censores, que foram sempre dois ao longo dos séculos da Roma republicana, distinguiam-se das outras magistraturas por: a) serem eleitos por períodos de cinco anos – e não anualmente como acontecia com as restantes magistraturas; b) apesar de não serem detentores de imperium eram honorificamente a magistratura mais prestigiada. Só aqueles que eram ex-cônsules eram elegíveis e ser-se censor constituía o apogeu de uma carreira política (o cursus honorum). De todos os magistrados que podiam tomar os augúrios (os auspices), o Censor assumia a primazia; a sua toga exibia o laticlavum, uma faixa cor de púrpura, e ao morrer viria a ser sepultado envolvido nessa mesma cor, que outrora estivera associada exclusivamente aos reis, e que viria a ser, no futuro, associada aos Imperadores.
Cada um dos membros da dupla de Censores não possuía explicitamente o direito de vetar o colega. Contudo, esse direito acabava por existir na prática, considerando que o Censorado era compreendido como uma jurisdição singular e indivisível, detida em bloco por um determinado número de titulares, em que cada um dos quais o podia exercer em nome de todos os restantes, salvaguardando que nenhum deles se opusesse frontalmente. E numa magistratura como o Censorado, ambos eram obrigados a agir em conjunto.
A função primária dos censores era proceder ao recenseamento dos cidadãos, uma tarefa que era muito mais complexa do que o nome pode sugerir: havia que decidir quem era livre e quem era escravo; entre os livres, quem era cidadão romano e quem o não era; e sobretudo, sendo cidadão, a que classe censitária se pertencia (definida pela riqueza), sendo certo que, conforme a classificação, haveria diferentes direitos de voto na assembleia (comitia centuriata) e mesmo em pormenores de direitos de cidadania. Uma reclassificação discreta e preventiva podia assim condicionar uma carreira política de um cidadão ambicioso. Depois de 312 a.C. ficou estabelecido que apenas eles tinham o poder de elaborar a lista daqueles que seriam elegíveis para futuros senadores, e também as exclusões, que podiam assumir um carácter retroactivo. A fundamentação para a decisão associava-se normalmente ao incumprimento das obrigações públicas, à exibição de uma moral privada duvidosa ou aos abusos de poderes magisteriais. Em suma, tratava-se de uma capacidade de triagem e requalificação de todos os actores políticos, até ao cidadão individual e que podia ser prosseguida de uma forma consistente, dada a duração do mandato.
Ao contrário de outras magistraturas, os Censores não podiam ser detidos para prestarem contas pela forma como haviam exercido as suas funções. O único controlo sobre as decisões arbitrárias assentava no facto de que tudo o que fora decidido havia-o sido com a anuência dos dois Censores. Assim, e para dar um exemplo extremo, se um dos Censores se decidisse a riscar todas as propostas de novos senadores da lista (a lectio) que houvessem sido apresentadas pelo seu colega, este podia retaliar de forma simétrica – e assim nenhum individuo poderia tomar assento no Senado, bloqueando a sua renovação. A dinâmica do jogo incentivava-os naturalmente a elaborar aquela lista – como as outras decisões, de resto – por consenso.

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