13 abril 2006

DEPOIS DE KEYNES

Entre os que os blogues têm especificamente de bom, conta-se a possibilidade de pegarmos num assunto que já fora (bem) abordado por um nosso colega de hobby no seu blogue e levá-lo para o nosso, para lhe darmos o desenvolvimento ou os retoques de que gostamos.

É o que acontece com este post de António Dornelas no Canhoto, a propósito do exemplo da colossal desproporção entre os vencimentos dos administradores do BCP e o salário mínimo nacional, mas o que aprecio sobretudo ali é o complemento representado pelos comentários de alguns leitores.

Para António Dornelas o facto do administrador receber 667 vezes mais do que alguém que receba o ordenado mínimo é simplesmente pornográfico (sic). Para alguns dos que comentam o seu poste isso é uma coisa do foro privado entre os administradores e os accionistas do banco.

O que mais me impressionou nesta pequena troca de argumentos foi a argumentação empregue, não por ela própria, mas pela tranquilidade com que é exposta, especialmente este último argumento dos comentadores que, diga-se aliás, está formalmente correcto.

Houve uma época, quando o pensamento económico estava dominado por um senhor inglês de nome John Maynard Keynes, em que se falava da função redistributiva do estado, transferindo riqueza através dos impostos daqueles que a tinham em excesso para aqueles que eram mais pobres.

Embora os modelos económicos fossem, do ponto de vista matemático, conceptualmente impecáveis, diz-me o cinismo da idade que a pureza do gesto das classes dominantes daquela época, apoiada naquela doutrina, de cederem na repartição da riqueza só foi gerada pela coacção.

E a coacção era representada pelos comunismos e pelos nazismos que, como regimes totalitários que eram, recrutavam no fundo da sociedade e decapitavam-na quando chegavam ao poder. É um medo que as classes dominantes da actualidade já não têm, pelos vistos.

O outro cenário, da coacção, manteve-se durante toda a Guerra-Fria porque, apesar da superioridade do Ocidente, este sempre teve que acautelar os flancos que se poderiam expor com o aumento das assimetrias sociais nas sociedades ocidentais e a sua imediata exploração pela União Soviética.

Em sociedades mais igualitárias, como a mítica Suécia social-democrata (era o país que o PSD, com Sá Carneiro, apontava como exemplo) chegou-se a absurdos de impostos sobre os rendimentos mais elevados aproximando-se dos 80%, desincentivando o aumento da riqueza (ou a evasão fiscal…). Mas estes exageros não desmentiam o imperativo de todos deviam viver decentemente e que se devia controlar o fosso entre ricos e pobres.

E depois acabou a União Soviética. E eu não arriscarei muito se me atrever a adivinhar qual será a idade dos comentadores do poste que pensam que o assunto dos ordenados dos administradores do BCP é do foro privado do accionista: tornaram-se adultos depois disso. Para eles é natural que dinheiro seja poder e desconfio que têm grande dificuldade em abstrair uma sociedade onde o poder possa não emanar predominantemente daí, como acontecia nas dominadas por Staline ou por Hitler.

Retornando à actualidade, o facto de a taxa de imposto a aplicar sobre o rendimento crescer a um ritmo superior ao que aquele aumenta, fazendo com que os ricos paguem – teoricamente – proporcionalmente mais que os pobres, dá a entender que a antiga filosofia equilibradora dos tempo do Keynesianismo ainda permanece em vigor – pelo menos formalmente.

E os problemas da redistribuição da riqueza ainda parecem ser um assunto do interesse do nosso colectivo: senão pelo que os ricos têm, pelo menos pelo que os pobres não têm... Se assim não fosse, não haveria tantas solicitações para peditórios e donativos.

E há diversos sinais, avulsos e discretos, dessa preocupação pelo crescimento das assimetrias. Também da parte de organizações religiosas. Embora, por falar em religião, o fervor extremado de João César das Neves num programa televisivo do início desta semana tenha deturpado politicamente as suas legítimas preocupações com o acentuar das desigualdades sociais: a existência de uma maior preocupação do antigo regime com a equidade social do que o que acontece com o actual regime democrático, é uma tese controversa, no mínimo…

Mas esses sinais vêm também de sítios insuspeitos para a causa do liberalismo, como a revista The Economist, que tem vindo a publicar artigos extremamente críticos sobre as condições de remuneração que os administradores e gestores das empresas estabelecem para si próprios.

Aparente e concretamente, essas condições de remuneração não variam de forma proporcional quando os resultados das empresas que dirigem se tornam medíocres. E o segredo do sucesso está numa gestão criteriosa da assembleia-geral dos accionistas da empresa. O que comprova que aqui, como em muitas outras coisas, os famosos mecanismos automáticos de auto-controlo precisam de uma pequena ajuda exterior…

Havendo um crescimento económico significativo, a alteração dos padrões de distribuição pode ser encapotado por detrás de crescimentos desiguais para os diferentes grupos. Só que os indicadores apontam, nas sociedades ocidentais, para uma cada vez maior estagnação económica, e os jogos de repartição assemelham-se cada vez mais a jogos de soma nula: o ganho de um é a perda de outro.

Assim, o eventual orgulho que possa ter pelos altos índices de rentabilidade da banca portuguesa dissipa-se-me imediatamente quando se fica a saber que em Portugal se pagam as mais altas comissões da União Europeia nos cartões de crédito (título do Público de 13/04/06).

E não adianta dizer que o consumidor tem liberdade de escolha. O tal mercado de concorrência perfeita é um modelo económico de excelente manipulação matemática, mas que raramente se aplica aos mercados vedados onde operam as grandes empresas como é o caso da banca.

Por isso, compreendo que quem se preocupa com a pornografia das remunerações dos administradores de um banco seja bem capaz de o fazer pelo receio de que exemplos de egoísmo em excesso contribuam para fazer desabar todos os fundamentos em que assenta a sociedade em que, mesmo assim, ele gosta de viver.

E essa sociedade é um património que transcende muitíssimo a tal assembleia de accionistas do BCP…

2 comentários:

  1. Pois é! Até o Zé do Telhado ia buscar o dinheiro onde ele estava!
    Se ele está nos bancos, não é de admirar que os amigos do alheio se atirem às agências disponíveis... e, seguindo a máxima, segundo a qual, "a Caridade começa em casa" nada melhor que servir-se... antes que o levem!
    E vale a pena começar pelo princípio: o Banco de Portugal dá o exemplo!

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