17 agosto 2016

OS POLÍTICOS QUE SUBVERTEM O ESPECTRO TRADICIONAL

Já terá dado para perceber pela forma como aqui me refiro a ele o quanto admiro Charles de Gaulle. Mesmo estando afastado do poder por metade desse tempo, a História de França nos 25 anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial (1945-70) não consegue ser contada sem a sua pessoa. Em contraste (mas não surpreendente), para a pequena história, os relatos são unânimes quanto ele terá sido alguém insuportável de aturar no trato pessoal. Ainda recentemente tive oportunidade de recordar mais uma vez no livro de memórias de Frederick Forsyth o quanto de Gaulle era cabeçudo, não via literalmente a ponta de um corno (a meio metro de distância...) sem os óculos, mas recusava-se a pô-los por ocasião das suas famosas conferências de imprensa (abaixo uma paródia a elas feita por Goscinny e Uderzo), o que originava um conjunto de peripécias derivadas do facto de de Gaulle ter de decorar as respostas (as perguntas dos jornalistas eram, obviamente, ensaiadas) e da memória de um septuagenário poder já não estar (e não estava...) à altura dos acontecimentos. As peripécias podem ser hoje evocadas com bonomia mas, na época, deviam desesperar a entourage do general.
Em contraste com os pormenores dessa caricatura, a gravitas adquirida pelo general de Gaulle nessa França sublimada que se segue ao fim da Segunda Guerra Mundial, conferiu-lhe uma gravidade tal que se pode dizer que distorcia o espaço político e ideológico adjacente, tal qual as configurações explicativas da física espaço-temporal (veja-se a montagem mais acima). O gaullismo era o que de Gaulle pensava e, a essa luz, apesar do termo se ter perpetuado na política francesa por muitas décadas após a sua morte (mesmo até hoje), a essência do gaullismo terá morrido em 1970 com de Gaulle. Porém, são muitas as explicações do gaullismo que remetem mais para aquilo que foi a prática dos seus herdeiros (sobretudo Jacques Chirac) do que para o que eram as intenções do fundador. Esquece-se que a cova gravitacional cavada por de Gaulle atraía gaullistas de esquerda e que, entre os inimigos de estimação do gaullismo, a par dos comunistas, se contavam várias correntes profundas da direita francesa - a tradicionalista (como de Gaulle) mas colaboracionista de Vichy, a pró-colonial que pugnava pela continuidade da permanência da França na Argélia ou a liberal que se opunha ao dirigismo económico que sempre foi imagem de marca do gaullismo (veja-se abaixo).

«...Assim, nós fizemos a nossa escolha, que consiste em abrir as portas à liberdade mas, nós rejeitamos absolutamente o laissez-faire, laissez passer e queremos que, neste nosso século (XX), seja a República quem conduz a evolução económica da França...» De Gaulle foi um fenómeno específico da política francesa capaz de subverter as classificações e arrumações clássicas do espectro político. E é esse o assunto que aqui me traz: quando outro dia me surpreendi a ler um opinion-maker do lado esquerdo civilizado do espectro a simpatizar com, e mesmo a defender, Marcelo Rebelo de Sousa nas suas efusões, enquanto simultaneamente uma jornalista opinativa da direita pura-e-dura-como-todos-nós-gostamos troçava desse mesmo estilo populista de Marcelo, dei por mim a perguntar se Marcelo Rebelo de Sousa, no seu estilo muito pessoal que pouco se assemelhará ao populismo de de Gaulle, não estará também a encurvar o espaço político à sua volta a ponto de se poder vir a dar no futuro um outro nexo à palavra marcelismo, distinto daquele que o padrinho homónimo de Marcelo cunhara há quase cinquenta anos na vida política portuguesa.

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