31 maio 2008

O BOMBARDEAMENTO ESTRATÉGICO

Ao terminar um poste recente sobre os bombardeamentos que a Alemanha efectuou sobre a Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial, deixei uma ligação às teorias dos que daquele episódio preconizavam que, se houvessem sido realizados numa escala muito superior, aqueles bombardeamentos sobre alvos civis da retaguarda, ao afectarem a moral do inimigo, poder-se-iam ter tornado decisivos para a decisão daquela guerra e, antecipava-se, de guerras futuras.

O autor teórico que está mais associado à apresentação desta tese é o italiano Giulio Douhet (1869-1930), embora ele costume aparecer nos manuais de estratégia consagrados ao poder aéreo acompanhado de dois outros nomes, o do britânico Hugh Trenchard (1873-1956) e o do norte-americano William L. Billy Mitchell (1879-1936), embora estes dois últimos possam ser considerados mais como lobistas desse poder aéreo do que teóricos do mesmo.
Ambos se revelaram uns lóbistas particularmente bem sucedidos. Ao longo dos anos 30 Trenchard conseguiu desviar uma apreciável parcela dos investimentos na defesa do Reino Unido para o desenvolvimento aeronáutico. Nos começos da Segunda Guerra Mundial, se a Alemanha possuía, comparativamente com o Reino Unido, uma vantagem quantitativa* quanto ao número de aeronaves, não possuía qualquer vantagem qualitativa, nem operacional.

Exemplarmente, ao contrário da RAF**, esquece-se quanto as prioridades estabelecidas para o desenvolvimento da Luftwaffe** negligenciaram o bombardeamento. Um bombardeiro alemão típico dessa época (o Heinkel-111, acima) tinha capacidade para 2,5 toneladas de bombas e não havia programas em curso para bombardeiros maiores. Em contrapartida, um bombardeiro homólogo dos seus rivais (como o Avro Lancaster, abaixo) podia transportar 8 toneladas.
Do outro lado do Atlântico, embora Mitchell se tivesse notabilizado na questão da supremacia do poder aéreo sobre o poder naval – daí diversas experiências tendentes a demonstrar como bombas e torpedos lançados de aviões podiam afundar um couraçado – os Estados Unidos também já estavam tão avançados no domínio dos bombardeamentos estratégicos quanto os britânicos, como o prova a existência do B-17 (abaixo, também com capacidade de 8 toneladas).

Mais do que sobre os teóricos que as preconizaram, foi sobre os comandantes das forças estratégicas de bombardeiros aliadas durante a Segunda Guerra Mundial, tanto o da RAF** (Arthur Bomber Harris - 1892-1984), como o da USAAF** (Curtis E. Le May - 1906-1990), que veio a recair a publicidade por tentarem comprovar a tese que os bombardeamentos maciços sobre as cidades inimigas destruir-lhes-ia o moral e conduziria à vitória.
O objectivo era intangível (destruir a moral do inimigo), mas o que ficou para ser apresentado foram os dados estatísticos. Sobre a Europa, a RAF** e a USAAF** rivalizaram com 687.000 e 755.000 saídas, respectivamente, onde foram largadas 1.236.000 e 1.462.000 toneladas de bombas. Mas os resultados estratégicos foram decepcionantes. Para o Japão, que era um assunto exclusivo da USAAF**, foi destinado um bombardeiro específico, o B-29 (9 toneladas)***.

Nos primeiros meses de 1945, expedições sucessivas de mais de 500 bombardeiros B-29 destruíram, entre as seis cidades principais do Japão, 50% de Tóquio, 31% de Nagoia, 56% de Kobe, 26% de Osaka, 44% de Yokohama e 32% de Kawasaki. No entanto, a moral japonesa só mostrou sinal de vir a ficar afectada de uma forma inequívoca num dia de Agosto em que apenas um B-29 (abaixo) lançou apenas uma bomba sobre a cidade de Hiroxima e a destruiu em 75%...
No rescaldo da análise das conclusões da Segunda Guerra Mundial, a validade da tese de Douhet, a da capacidade de desgastar o inimigo recorrendo ao bombardeamento com armamento convencional, parecia ter sido absolutamente desmentida. Mesmo no fim, aparecia um novo campo para o bombardeamento, agora no âmbito de uma guerra nuclear, mas esse cenário apenas teve sentido entre 1945 e 1949, até que a União Soviética alcançou a paridade nuclear.

Depois disso, com a progressiva sofisticação do equipamento, cada vez mais o bombardeiro estratégico se tornou um luxo de superpotência, como era o caso do gigante B-52 (abaixo), que fora concebido originalmente para aquela Guerra Nuclear que não se devia travar e aproveitado subsidiariamente para comprovar mais um vez o fracasso da tese de Douhet durante a Guerra do Vietname, onde os 7 milhões de toneladas de bombas usadas não tiveram efeitos estratégicos.
Os bombardeiros estratégicos da nova geração depois da Guerra-Fria, como é o caso deste bizarro B-2 (abaixo), entrado ao serviço em 1997, parecem continuar a ter o mesmo tipo de (des)aproveitamento. O pior é que eles se tornaram unidades proibitivamente caras, mesmo para os Estados Unidos, a superpotência rica. Construíram-se 12.700 B-17, quase 4.000 B-29, um pouco menos que 750 B-52, mas, como uma classe de couraçados navais, existem apenas 20 B-2

Depois de, nos finais do Século XX, os Estados Unidos terem vencido a Guerra-Fria por terem levado os soviéticos à falência com a corrida aos armamentos, será que se aproximam tempos, nestes inícios do Século XXI, em que serão os próprios Estados Unidos a levarem-se a si mesmos à falência, gastando o dinheiro que não têm em armamento que, de tão sofisticado, nem sequer tem inimigo potencial em quem empregá-lo?
* Cerca de 1.750 aparelhos britânicos versus 4.500 alemães em Maio de 1940. Em Setembro desse mesmo ano, havia 1.050 aparelhos britânicos disponíveis para se oporem aos quase 2.700 alemães (Começo da Batalha de Inglaterra).
** Luftwaffe: Força Aérea alemã. RAF: Força Aérea britânica USAAF: Força Aérea norte-americana.
*** Mais do que a capacidade, era a autonomia (mais de 9.000 km.) e a ausência de bases próximas que tornavam o B-29 adequado para os bombardeamentos ao Japão. O B-17 ou o Lancaster tinham uma autonomia inferior a 3.000 km.

30 maio 2008

O REINO SOCIALISTA DA ROMÉNIA (1945-1947)

A propósito da deposição do rei e da fundação recente da República do Nepal, depois de uma monarquia que durou 239 anos, através da votação da Assembleia Constituinte que foi democraticamente eleita e onde os comunistas de inspiração maoista têm uma maioria relativa (220 em 600 lugares) e os de todas as inspirações uma absoluta (330 lugares), lembrei-me de evocar outros episódios do passado onde soberanos e executivos dominados por comunistas coexistiram tão desconfortável como brevemente. Comecemos então pelo caso da Roménia.

A Roménia foi um dos países vencedores da Primeira Guerra Mundial que mais cresceu territorialmente depois da Vitória. Beneficiava do facto de ter fronteiras com três dos países derrotados: Bulgária, Hungria e União Soviética. A Roménia foi uma defensora do status quo criado pelos Tratados assinados em 1919 e também um alvo da cobiça de todos os países revisionistas desses Tratados, incluindo a Alemanha nazi. Em 1940, Hitler patrocinou uma rectificação de fronteiras da Roménia com aqueles 3 países, cedendo as regiões assinaladas a tracejado.
Como acontecera em todos os países da Europa Oriental, com a única excepção da Checoslováquia, também na Roménia, o regime democrático liberal não resistiu à crise dos anos 30, tendo-se tornado numa monarquia autoritária. Num pormenor pitoresco, o trono passara de Fernando I (rei de 1914 a 1927) para o seu neto Miguel I (sob uma regência, de 1927 a 1930), para Carlos II, filho do primeiro e pai do segundo, que abdicara em 1927, mas que entretanto se arrependera e dera um Golpe em Junho de 1930.

Depois de um período de rotatividade eleitoral entre o Partido Liberal, que afinal era conservador, e o Partido Camponês, em 1938 a Monarquia assumiu formalmente uma orgânica fascista com um partido único, a Frente do Renascimento Nacional. Mas o Rei Carlos II (abaixo) acabou por ser considerado o bode expiatório da má condução da política externa que levaram às rectificações fronteiriças de 1940, as patrocinadas por Hitler (em benefício da Hungria e da Bulgária) e as exigidas por Stalin (em benefício da União Soviética).
Carlos II foi deposto e exilou-se definitivamente em Setembro de 1940 e Miguel I tornou-se de novo Rei, agora com 18 anos. O Homem-Forte do novo regime, decidido a alinhar-se incondicionalmente com a Alemanha, era o Marechal Ion Antonescu (abaixo, ao lado do Rei), que se fazia chamar Conducator*, numa cópia balcânica da Itália fascista. A inspiração italiana também se veio a revelar na forma como, em Agosto de 1944, perante a ameaça eminente de invasão, o regime tentou mudar de alianças, afastando o Conducator

Mas houve duas coisas importantes que distinguiram a manobra romena da italiana. Embora Miguel I tenha demitido Antonescu como Vítor Manuel III demitira Mussolini no ano anterior, os romenos foram muito mais despachados e completamente frontais com os alemães quanto às suas intenções; e, fundamental para o que seria futuro da Roménia, o representante dos Aliados que se preparava para invadir o país e com quem ela tinha de negociar, era a União Soviética, e não qualquer dos países anglo-saxónicos.
O governo empossado por Miguel I depois do Golpe englobava 4 partidos: Liberal, Camponês, Socialista e Comunista. A implantação dos comunistas num país que ainda era maioritariamente rural era muito fraca; com uma forte implantação popular e de esquerda, mas desenquadrada dos cânones ideológicos clássicos, existia a Frente dos Cultivadores**. Foi à volta desta organização, coligada com as outras mais fracas, mas sempre controlada pelos comunistas, que se veio a formar a Frente que tomou o poder.

Foi baptizada de Frente Democrática Nacional (FDN) e, desde a sua criação em Outubro de 1944, a sua função principal foi a de dificultar a estabilidade dos governos existentes, pedindo o reforço da participação dos seus membros nos governos, até alcançarem os lugares-chave. Houve um Primeiro-Ministro de Agosto a Dezembro de 1944 (Sănătescu), outro de Dezembro de 1944 a Março de 1945 (Rădescu) e finalmente, a partir de Março de 1945, Petru Groza, o líder histórico da Frente dos Cultivadores**.
A nomeação de Groza, o protótipo do aristocrata vermelho (acima), foi feita por sugestão do Presidente da Comissão de Controlo Aliado na Roménia (que era, naturalmente, soviético) a Miguel I. Mas as relações entre o monarca e o Primeiro-Ministro não tardaram a tornar-se extremamente tensas. Durante a Conferência de Potsdam (Julho de 1945), Miguel I ainda dispunha da audiência suficiente junto dos Aliados ocidentais para os convencer a não reconhecerem representatividade nem legitimidade ao governo de Groza.

Pelo seu lado, o Rei iniciou um boicote, recusando-se a promulgar a legislação do governo, até que, em Dezembro de 1945, instruções vindas de Moscovo fizeram Groza atribuir uma pasta ministerial a cada um dos partidos burgueses (Liberal e Camponês), obtendo em contrapartida o reconhecimento do seu governo pelos países ocidentais. Nesse momento, o gesto era apenas cosmético, porque o aparelho do estado já havia sido completamente controlado pela Frente Democrática Nacional, nomeadamente pelos comunistas.

Os comunistas romenos, além de serem originalmente poucos (cerca de 1.000 militantes em 1944), estavam ainda divididos entre duas facções: a dos que haviam permanecido na Roménia durante a Guerra (dirigida por Gheorghe Gheorghiu-Dej - acima) e a dos exilados em Moscovo (chefiada por Ana Pauker). Venceram os pertencentes à primeira facção, mas esta disputa interna, decidida por Moscovo, atrasou ainda mais o processo de apropriação do poder e forçou um amparo do poder soviético superior ao que se verificou nos países vizinhos.

As eleições tiveram finalmente lugar em Novembro de 1946, onde as listas da Frente Democrática Nacional obtiveram uns retumbantes 80% dos votos. Nessa altura, a Roménia já era a última monarquia do Leste da Europa e o próprio Primeiro-Ministro Petru Groza esquecia as causas da sua Frente dos Cultivadores** e, em vez de uma Reforma Agrária que fosse caracterizada pela repartição das terras pelos camponeses, submetia-se à colectivização das propriedades agrícolas, decalcada do modelo soviético...
Miguel I assinou a sua acta de abdicação em 30 de Dezembro de 1947, depois de um período de 34 meses de coexistência de duas instituições tão antagónicas quanto a monarquia e um governo comunista. Entre outros anacronismos, conta-se o facto dele ser um dos únicos cinco estrangeiros distinguidos*** (e o único ainda vivo - tem actualmente 86 anos) com a exclusivíssima Ordem da Vitória (16 condecorados no total!), a mais prestigiada condecoração concedida pela União Soviética por ocasião da vitória na Segunda Guerra Mundial...

* Como se depreende (o romeno é uma língua latina, aparentada com o português), Conducator poder-se-á traduzir como o Chefe, o Dirigente, o Condutor.
** À letra, Frente dos Homens do Arado.
*** Os outros estrangeiros foram o norte-americano Eisenhower, o britânico Montgomery, o polaco Rola-Żymierski e o jugoslavo Tito.

29 maio 2008

OS COMENTADORES (continuação de OS CANDIDATOS)

Em jeito de homenagem ao recém-falecido Sidney Pollack, vou recuperar duas cenas de um filme em que Pollack foi simultaneamente realizador e actor: Tootsie (1982). É a história de uma actor conflituoso e desempregado (Dustin Hoffman) que, à revelia do seu agente (Sidney Pollack), consegue, disfarçado de mulher, obter um papel feminino numa telenovela, onde se vem a apaixonar por uma das suas colegas (Jessica Lange), mas a quem não pode dizer a verdade, sob pena de perder o emprego.
Numa daquelas ocasiões típicas de cumplicidade feminina em que os dois (as duas…) estão a ensaiar cenas para o dia seguinte, Lange confessa à amiga que um dos seus sonhos era que houvesse finalmente um homem desconhecido que a abordasse sem rodeios. E cita mesmo a sua frase ideal: - Sabes, eu podia dizer-te assim uma frase inspirada ou podíamos fazer aqui uma grande representação teatral, mas a simples verdade, é que te acho muito interessante e gostaria muito de fazer amor contigo.*
Acontece que, passados poucos dias, os dois se encontraram numa festa em que Hoffman compareceu com a sua verdadeira identidade, e aí ele aproveitou um momento a sós com Jessica Lange para lhe dizer ele aquela frase que ele fixara e que conhecia de coração… Não a chegou a acabar, porque Lange, visivelmente esquecida da conversa anterior, lhe mandou o conteúdo do copo de uísque à cara pelo atrevimento. Moral da história: há desejos que apenas se manifestam em determinadas circunstâncias precisas…
Antigamente, só os electrodomésticos vinham com manual de instruções para que os instalássemos e desfrutássemos de todas as suas potencialidades**. Hoje são os debates políticos que não dispensam a fase pós-debate, reservada para os comentadores explicarem o que devem pensar os espectadores daquilo que estiveram a assistir. Ontem, depois do debate da SIC entre os candidatos a presidentes do PSD, lá se repetiu a cena e lá se repetiram os comentadores: Inês Serra Lopes, Luís Delgado, Mário Bettencourt Resendes.
Ora uma das acusações recorrentes que estes últimos (comentadores) costumam fazer ao seu ganha-pão (os políticos) é a superficialidade da análise das consequências das promessas e das medidas que preconizam. Atento a isso, ontem, qual Dustin Hoffman ingénuo, Mário Patinha Antão parecia trazer a lição estudada: redução do IVA de 20 para 18% (custo de 600 Milhões €), do IRC de 25 para 20% (custo de 300 Milhões €), etc. Questione-se o benefício destas medidas, mas reconheça-se a transparência com que foram apresentadas...
Mas, quem esperasse ouvir Patinha Antão ser depois incensado pelos comentadores por causa da transparência das suas propostas, terá tido ocasião para sentir o mesmo uísque na cara de Hoffman. Como os desejos secretos femininos, as opiniões dos comentadores só são para levar a sério em certas circunstâncias precisas. Desmontar o que Patinha Antão ontem propôs exigiria deles estudo e fundamentação; dar o devido relevo a que a lista da sua candidatura contém o nome de um militante falecido é que já parece coisa menos exigente
Depois, costuma dizer-se que o problema do debate político em Portugal tem sido a diminuição da qualidade dos seus protagonistas. Só?...

* You know, I could lay a big line on you and we could do a lot of role-playing, but the simple truth is, is that I find you very interesting and I'd really like to make love to you.
** Sem eles, quem imaginaria que também se podiam fazer batidos de alperce com a Varinha Mágica?

28 maio 2008

A "BLITZ" DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

Gotha é uma pequena cidade (47.000 habitantes) pertencente ao Estado da Turíngia que se situa actualmente bem no centro da Alemanha. Mas o nome Gotha teve no passado uma projecção desmesurada em relação à dimensão da cidade, que sempre foi pequena. Em primeiro lugar por causa do Almanaque Gotha (acima), que era uma publicação anual que se tornou fundamental para estabelecer quem eram e qual a importância relativa de todas as famílias nobres europeias.

Talvez por jogarem em casa, os príncipes da casa reinante local, os Saxe-Coburgo-Gotha foram repetidamente escolhidos ao longo do Século XIX para parceiros de algumas princesas casadoiras, mas encalhadas, cujos pergaminhos (e possessões...) se mostrassem interessantes: aconteceu com a Rainha Vitória (1819-01), que casou com um Alberto (1819-61) oriundo daquela região, ou com a nossa D. Maria II (1819-1853), a quem arranjaram um Fernando (1816-85), também DOP* Saxe-Coburgo-Gotha.
Uma terceira forma do nome Gotha ter adquirido celebridade foi a designação dos enormes bombardeiros pesados (acima) usados pela Luftstreitkräfte** durante a Primeira Guerra Mundial. A empresa, ali localizada, chamava-se Gothaer Waggonfabrik e, em tempo de paz, especializara-se na construção de vagões de caminho de ferro até que a produção industrial de guerra a forçou a modificar a sua produção, especializando-se então em aeronaves pesadas (bimotores), também baptizadas de Gotha.

Numa tarde de Sexta-Feira, 25 de Maio de 1917, quando a população da vila inglesa de Folkestone (mapa abaixo) estava nas compras (havia racionamento e as tradicionais filas para compra de artigos nas mercearias), as ruas e lojas da cidade deram em explodir, ferindo pessoas e cavalos, sem que os transeuntes, a princípio, se apercebessem da causa. Depois apercebendo-se do barulho de motores no céu gritaram: Zepps! Zepps!*** Mas a ameaça que naquele dia causou 95 mortos e 195 feridos era diferente.
O desenvolvimento aeronáutico alemão dos últimos anos havia conseguido ampliar a autonomia e a capacidade de transporte dos seus aviões por forma a que os tornasse capazes de, partindo da Bélgica, atingirem as regiões do Sul de Inglaterra (incluindo Londres) transportando uma carga útil (500 kg.) de bombas, que compensasse a operação. Aliás, tinha sido Londres o alvo original dos 21 bombardeiros que acabaram por atacar Folkestone naquele dia, porque o tempo estava encoberto sobre a capital britânica…

Só na terceira tentativa (13 de Junho) é que uma esquadrilha de bombardeiros encontrou os céus de Londres suficientemente limpos para a bombardear com as cerca de 4 toneladas de bombas que traziam, causando 162 mortos e 432 feridos. A causa para este desproporcionado número de baixas, tendo em atenção o escasso poder destrutivo dos meios usados, está associada à ausência de quaisquer procedimentos de segurança entre a população civil que, na maioria das vezes, ficava até na rua a assistir…
Claro que a regularidade com que os bombardeamentos se efectuavam não teve nada a ver com a regularidade diária da futura Blitz de 1940-41. Após a estreia de Folkestone, nos finais de Maio, seguiram-se dois raids em Junho (um deles sobre Londres), outros três em Julho, mais dois em Agosto, para se assentar nessa média mensal de 2 e um total de 27 bombardeamentos até ao final da Guerra, passando de diurnos para nocturnos à medida que as medidas de defesa dos britânicos se tornavam mais eficazes.

Mesmo assim, com a experiência, os alemães descobriram que as bombas incendiárias eram mais eficazes que as explosivas, passaram a usar bombardeiros mais potentes, quadrimotores, e bombas maiores, com 4 metros de comprimento e que chegavam a pesar 900 kg. No total, os alemães largaram mais de 100 toneladas de bombas, causando 835 mortos e 1.972 feridos. Entre os teóricos, houve quem pensasse que, estrategicamente, se tivessem sido mais bombas e começado mais cedo, a Guerra poderia ter seguido um outro curso…
* DOP: denominação de origem protegida.
** Serviço Aéreo do Exército Imperial Alemão (símbolo acima). Embora a Alemanha Nazi e depois a República Federal tenham adoptado a designação Luftwaffe para designar a sua Força Aérea, a Áustria e a República Democrática Alemã (1949-90) adoptaram essa designação de Luftstreitkräfte para o mesmo ramo.
*** Abreviatura de Zeppelins, balões dirigíveis rígidos usados pela Luftstreitkräfte, designados pelo nome do seu inventor, o barão von Zeppelin.

OS CANDIDATOS

Já há cerca de dois anos tinha aqui falado do filme The Candidate e do cinismo nele incluído: numa campanha eleitoral ou se fala verdade ou se vence. Na do filme, que estava perdida de antemão, a campanha era uma oportunidade para se falar verdade, até que surgiram as primeiras perspectivas de que se podia vencer… O filme é antigo (1972), norte-americano e pouco referenciado pelo desconforto que transmite da forma como funcionam os sistemas eleitorais, mesmo em democracia. Continua actual.
A aproximar-se do fim, a campanha eleitoral para a presidência do PSD enquadra-se pelos princípios orientadores que então angustiavam Robert Redford: ou se diz o que se pensa ou se diz o que nos dizem que a maioria do eleitorado espera que nós digamos. Só que o PSD é um partido rico: em tradições, quadros, protagonistas, comportamentos. Há nele quem diga honestamente o que pensa, e consiga pensar (e dizer) duas ou três coisas antagónicas sobre o mesmo assunto na mesma quinzena, como Pedro Santana Lopes...

Nos antípodas dessa atitude, o seu rival Pedro Passos Coelho pareceu não acrescentar nada ao que estava estipulado de antemão que dissesse. Pelo conjunto, Passos Coelho é das figuras da política portuguesa que mais se parece com aquele figurino handsome* de candidatos ao Senado norte-americano, com que a própria figura handsome de Redford no filme ironizava. Mas a ascensão de um desses senadores à Vice-Presidência (Dan Quayle) mostrou quanto aquelas carapaças podem esconder um interior oco
Quanto a Manuela Ferreira Leite, parece evitar o dilema do que há-de dizer, evitando dizer. Andam é outros a fazer campanha por si, divulgando, não as opiniões dela, mas quanto ela é a mais indicada para dirigir o PSD. Assim, não interessará o que Manuela pensa, apenas que Manuela é. E sendo, quando os assuntos são delicados (como será o caso do TGV), pode dar-lhe um assomo de honestidade, afirmando desconhecer a especificidade do assunto. Pena que não adopte a mesmo atitude noutros casos…

Guardei a minha simpatia para com Mário Patinha Antão, o outsider, o que foi convidado a aparecer no programa de Judite Sousa na RTP 1 para não dar mau aspecto e ali não me pareceu nada ter dado má conta do recado, dizendo o que pensa, embora haja muita coisa que ele pensa com que eu não concordo nada. Se isto fosse uma prosa devidamente inspirada nas de Vasco Pulido Valente (distinto comentador do lote num programa da TVI) só faltava recomendar agora o voto em Patinha Antão…
Mas não: a necessidade de que haja uma oposição que, ao menos, importune José Sócrates, obriga-me a desejar que a escolha dos militantes do PSD recaia sobre Manuela Ferreira Leite, a fazer fé nas sondagens que a consideram a mais capaz para tal. E, já agora, que os comentários pós debates se tornaram indispensáveis (com Pulido Valente, Ricardo Costa, Bettencourt Resendes, Luís Delgado, etc.), para quando um debate pós-comentários, com políticos debatendo o posicionamento politico dos comentadores?

* Elegante, gracioso, agradável à vista.

27 maio 2008

OS PENSADORES DE IDADES PROVECTAS

Fiquei a saber pelos jornais que o antigo Secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger faz hoje 85 anos. Já me habituei aos seus aparecimentos regulares na arena mediática, seja através de intervenções, seja através da publicação de artigos de opinião que avaliza e a que decide emprestar o seu nome, que isto de produzir obras-primas genuínas individuais aos 100 anos está reservado ao cineasta Manoel de Oliveira…
Trata-se de uma prática corrente no jornalismo norte-americano. Hoje, há um outro antigo e respeitado Conselheiro de Segurança Nacional da Administração Carter, Zbigniew Brzezinski (actualmente com 80 anos) que co-assina uma coluna de opinião no Washington Post, a respeito das suas opiniões de como deverão ser conduzidas as relações entre os Estados Unidos e o Irão. Um artigo interessante para quem goste.
Mas parece não ser automático que todos os antigos políticos que ocuparam cargos de relevo na Administração norte-americana possam ser capazes de produzir artigos tão interessantes quanto os destes dois veteranos. É uma prova da nossa inevitável pequenez portuguesa que não tenhamos muito por onde escolher e que acabemos por nos resignar a artigos de opinião assinados pelos patriarcas que temos, como Mário Soares (83 anos).
É que também precisamente hoje, temos a oportunidade de ler uma sua Coluna de Opinião, publicada no Diário de Notícias, com o título Pobreza e Desigualdades que, sobre o tema que lhe dá título, não escreve rigorosamente nada de original, e sobre todo o resto que entende pronunciar-se, desfia uma sucessão de lugares comuns... Mário Soares tem vários predicados, mas a densidade do seu pensamento intelectual continua a não ser um deles…

O DIMINUTO VÍTOR MANUEL III

Segunda uma história, provavelmente apócrifa como costumam ser as histórias daquele mesmo género, as necessidades indispensáveis para o desempenho da função régia que Humberto I, Rei de Itália (1878-1900), transmitiu ao seu filho e sucessor (abaixo) Vítor Manuel III (1900-1946) eram saber assinar o nome, ler um jornal e montar a cavalo.
Atribuída a um rei considerado antipático e impopular (morreu assassinado), a frase também sintetiza a abordagem um pouco displicente com que parecia ser encarada o desempenho da função régia entre os titulares da Casa de Sabóia*. Só com Vítor Manuel III se terá apercebido dos perigos que correriam se fossem monarcas pouco aplicados e impopulares.
Mesmo depois da perda dos seus poderes para órgãos executivos, os novos tempos pareciam criar novas exigências aos monarcas, inclusive, depois do aparecimento da fotografia e do filme, que se adoptassem outros cuidados com o tratamento da imagem real, aspecto onde Vítor Manuel III apresentava um problema importante: era muito baixinho!
Sem chegar a ser um segredo de estado, a sua estatura era uma informação cuidadosamente classificada: 1 m 54 cm (supõe-se). O que tornava embaraçosas as fotografias em que ele aparecia acompanhado dos seus homólogos (acima, acompanhando Alberto I da Bélgica), dando da Itália uma imagem diminuta, nada consentânea com as suas aspirações nacionais...
Mas, pior que o problema das fotografias protocolares, era o problema das fotografias familiares, porque Vítor Manuel III casara com uma imponente princesa montenegrina, Helena, cuja altura era outra informação cuidadosamente classificada, mas que era uns bons 26 cm mais alta do que o marido (vejam-se abaixo os reis** na tribuna, com Hitler e Mussolini)
Ao longo de 46 anos de reinado as fotografias e quadros oficiais de Suas Majestades italianas (abaixo) apresentavam-nas sempre com a Rainha sentada e o Rei em pé, escondendo por detrás dessa cortesia o palmo e meio de diferença de alturas que os separava, um facto que, mesmo conhecido de todos, apenas era sussurrado e só lhes granjeava ainda mais popularidade…
E por falar em poses assim encenadas, vale a pena recordar que o mesmo problema se colocou em Portugal (e a mesma solução foi adoptada, como se pode ver na fotografia abaixo) para com o casal Carlos I de Bragança e Amélia de Orleães, muito embora a diferença de alturas fosse menor*** e a corpulência do Rei português a ajudasse a disfarçar…
* Casa Real Italiana.
** Note-se como até o pequeno Joseph Goebbels (1 m 65 cm), imediatamente por detrás do Rei é maior que ele.

*** Ao contrário do casal real italiano, o problema era apenas causado pela estatura anormal da Raínha (1 m 82 cm!).

26 maio 2008

SCHERZI A PARTE*

Quando a SIC arrancou com as suas emissões e era pobrezinha, houve um período em que, por causa da omnipresença da RTP no estrangeiro, teve de se alimentar de programas enlatados de origens fora do comum, como era o caso de um programa italiano chamado Scherzi a parte*, apresentado por José Figueiras então em fase de iniciado. Tratavam-se de uma série de programas na linha dos que em Portugal ficaram com a designação genérica de Apanhados, com as pessoas colocadas perante situações bizarras.
No caso dos Scherzi a parte, as vítimas eram sempre pessoas conhecidas em Itália, mas esse efeito perdia-se na SIC porque a maioria delas eram desconhecidos entre nós. As partidas eram normalmente bastante mais elaboradas do que era costume, mas entre as engraçadas havia algumas simples, como os cantores que julgavam estar a actuar via satélite para audiências de milhões e lhes acontecia tudo. Outras, mais sofisticadas, eram de um gosto muito duvidoso, como deixarem um tigre à solta na garagem de uma das vítimas…
Mas o que ainda hoje mais me impressionou era a capacidade como os promotores do programa conseguiam montar uma farsa mesmo num espectáculo ao vivo de uma das vítimas, contando com a colaboração voluntária de um auditório de milhares. Num dos casos (que não encontrei no You Tube), uma parelha de cómicos esteve a actuar durante uma boa meia hora num silêncio total sem que da assistência se ouvissem sequer arremedos de uma gargalhada contida. Era completamente deprimente e arrasador!
Ao ser exposta a partida, a primeira coisa que os dois cómicos quiseram saber foi como o público havia sido assim tão bem ensaiado para não rir, mas não tinha havido ensaio: as pessoas, cúmplices da partida que se ia pregar aos dois actores, tinham simplesmente perdido a predisposição para rir... Afinal, concluía-se, as piadas não seriam afinal tão arrebatadoras quanto isso… Anteontem, Paulo Portas foi a Badajoz e Francisco Louçã ao Hospital São Francisco Xavier, mas, também aqui, a audiência resolveu deixar de achar piada aos cómicos

* Brincadeiras à parte.

25 maio 2008

AIRFRAME

A fotografia abaixo, onde se vê um avião comercial de passageiros a sobrevoar um aeroporto numa posição anormalmente vertical, indicadora que algo de anormal se passava, veio a tornar-se na maior responsável pelo fracasso comercial daquele tipo de aparelhos na aviação civil (trata-se de um DC-10, construído pela McDonnell Douglas). Como em muitas coisas na vida, se as consequências comerciais foram implacáveis, as aparências eram, naquele caso, enganadoras: as responsabilidades maiores pelo acidente não eram da construtora.
Mas comecemos pelo princípio daquela viagem, que durou pouco: aquele DC-10, que pertencia à American Airlines, descolou do aeroporto de Chicago a 25 de Maio de 1979 com 271 pessoas a bordo. Ainda na fase de descolagem perdeu o motor do lado esquerdo (daí a posição e a aparência assimétrica do avião na fotografia), tendo-se despenhado num parque de caravanas muito próximo do aeroporto, depois de se ter mantido cerca de meio minuto no ar. Morreram todos os que iam a bordo e ainda mais duas pessoas no solo.
Apesar da má reputação automaticamente atribuída a um aparelho que parecia deixar peças pelo caminho, o inquérito sobre o acidente veio a revelar que haviam sido os serviços de manutenção da American Airlines que haviam mudado aquele motor algumas semanas antes do acidente não tendo respeitado, por razões económicas, os procedimentos estabelecidos pela Douglas para essa delicada operação. Mas o relatório demorara 7 meses a sair e, entretanto, os estragos na imagem já estavam feitos.
Airframe (acima) é uma novela da autoria de Michael Crichton onde este mesmo assunto é abordado, dando ênfase ao facto de que entre os factores que provocam os desastres de aviação (normalmente existe um encadeamento ou uma conjugação de factores), os mais frequentes resultam de erros individuais ou de deficiências de operação do pessoal de voo ou de manutenção das companhias aéreas que operam as aeronaves. São muito mais raros aqueles que são provocados por causas naturais, desconhecidas ou associadas à concepção original dos aparelhos.

24 maio 2008

PORTAR-SE MAL EM CASA ALHEIA

A visita que o secretário-geral da ONU, o sul-coreano Ban Ki-Moon, acabou de realizar à Birmânia (acima), fez-me lembrar uma outra, realizada por uma comitiva de compatriotas seus ao mesmo país em Outubro de 1983, faz mais de 24 anos. Encabeçada pelo presidente sul-coreano de então, Chun Doo-hwan, que ia acompanhado por uma alargada comitiva ministerial, o objectivo diplomático da visita era o de rivalizar com as boas relações que a Birmânia tinha mantido até então com a sua rival Coreia da Norte.

O episódio está hoje praticamente esquecido mas, se a visita correu mal para a Coreia do Sul por uns motivos, acabou por correr pior para a Coreia do Norte, por outros. De início, a visita parecia estar a correr bem, parecia ter-se desenvolvido uma certa empatia entre o visitante (o general Chun Doo-hwan) e o visitado (o general Ne Win), ambos dirigentes de ditaduras militares. E as propostas comerciais da, já então, muito mais evoluída economia sul-coreana pareciam interessar seriamente aos birmaneses.
Só que os norte-coreanos tinham mau perder. Durante uma cerimónia protocolar no Mausoléu dos Mártires (acima) fizeram explodir uma bomba entre os participantes que matou 17 sul-coreanos e 4 birmaneses (além de ter feito 46 feridos). O Presidente Chun Doo-hwan só terá escapado por acaso e entre os mortos sul-coreanos contavam-se os Ministros dos Negócios Estrangeiros, da Economia e do Comércio. A polícia birmanesa conseguiu identificar rapidamente os responsáveis: um comando de três norte-coreanos.

Apesar da Coreia do Norte se ter desfeito em protestos inverosímeis de inocência, o caso contra os agentes norte-coreanos era tão evidente que os dois que foram capturados foram condenados (à morte e a prisão perpétua). Foi só em Abril de 2007, que Birmânia e Coreia do Norte voltaram a restabelecer relações diplomáticas. É das normas que aos países soberanos não lhes agrade que países estrangeiros (mesmo amigos) desencadeiem destas operações no seu território à sua revelia...
Foi o que também aconteceu quando, em Julho de 1985, na sequência do afundamento do Rainbow Warrior*, um navio do movimento Greenpeace que estava ancorado em Auckland, na Nova Zelândia, dois agentes franceses acabaram por ser implicados no afundamento pela polícia neozelandesa. As provas em favor da tese de uma operação dos serviços secretos franceses também eram esmagadoras e eles foram condenados, e o governo francês acabou por confessar de forma semi-contrita a sua participação.

Uma insigne excepção a esta prática foi o assassinato em Portugal de Issam Sartawi, um dirigente moderado da OLP, assassinado em Albufeira, em Abril de 1983. O trabalho de polícia também foi bastante rápido: descobriu-se um palestiniano que se identificava por Al Awad, mas que possuía documentação em nome de Mohamed Rashid que, mesmo por coincidência, logo depois do atentado, apanhara um táxi que o trouxera desde Albufeira até ao aeroporto da Portela em Lisboa onde ia apanhar um avião…
Segundo me recordo, o réu acabou condenado a 3 anos de prisão por uso de passaporte ilegal. Foi uma coroa de louros para a defensora oficiosa, num caso em que, dadas as perspectivas, nenhum nome de vulto da advocacia portuguesa quis pegar. Poderá ter sido aquilo que se conseguiu provar judicialmente, mas também foi, numa leitura política feita pelos actores internacionais, uma maneira embaraçosamente portuguesa de querer ficar de bem com todos, mas sem conseguir o respeito de ninguém.

* Donde resultou a morte de um fotógrafo holandês de origem portuguesa.

23 maio 2008

AS LEIS DE GUERRA QUE SÃO APROVADAS NOS HEMICICLOS…

Sempre que uma daquelas grandes Assembleias Legislativas transborda das suas competências e se propõe legislar sobre quais deverão ser as condições das guerras do futuro, recordo-me de um episódio ocorrido durante o Congresso encarregado de redigir a Constituição norte-americana, quando Elbridge Gerry, que era um dos representantes do Estado do Massachusetts, durante a discussão de qual seria o papel futuro da instituição militar nos Estados Unidos, avançou com a proposta que a própria Constituição deveria limitar a dimensão das Forças Armadas a uns dois ou três mil homens…
Sem se levantar do seu lugar, mas com o seu prestígio de general da Guerra de Independência, George Washington assassinou ironicamente de imediato a proposta, murmurando, mas de forma a ser ouvido pelo resto dos congressistas, que, de seguida, também se devia tornar inconstitucional que qualquer inimigo pudesse atacar os Estados Unidos com efectivos superiores a esses dois ou três mil homens… E Gerry ter-se-ia tornado um congressista esquecido, não tivesse ele dado o nome à prática do gerrymandering, que é a arte de redesenhar vantajosamente os círculos eleitorais uninominais…
Contudo, sou levado a acreditar na boa vontade daquela proposta de Elbridge Gerry, assim como acredito na boa vontade de resoluções do género, como a ontem aprovada pelo Parlamento Europeu quanto ao emprego de munições contendo urânio esgotado*, de que a eurodeputada Ana Gomes foi uma orgulhosa co-autora. Não creio que ela saiba a história das duas Convenções de Haia (1899 e 1907), porque se o soubesse, talvez a eurodeputada moderasse um pouco do seu proverbial entusiasmo, já que o armamento expressamente proibido naquelas Convenções veio a ser depois empregue logo de seguida na Primeira Guerra Mundial**
Até parece mal aparecer a moderar toda essa boa vontade demonstrada pelos legisladores, que crêem que quase tudo é mutável a partir de uma resolução (que esteja bem redigida de preferência), mas isso não pode ser desculpa para que lhes toleremos tanta ingenuidade, quando a atitude deles não se transforma mesmo numa certa arrogância que é, afinal, despropositada, quando imaginam assim que a força legislativa da Assembleia de que fazem parte consegue impor as suas vontades a fenómenos tão antigos como os conflitos armados entre os Estados que têm, e sempre tiveram, um outro entendimento do que é a força

* A expressão correntemente (e mal) usada em português é urânio empobrecido, por tradução da inglesa depleted uranium: urânio esgotado. A expressão corrente não faz muito sentido porque não se procura empobrecer, mas sim enriquecer o urânio (no isótopo U-235), para sua utilização como combustível nuclear. Este urânio esgotado é um subproduto que resulta desse enriquecimento, e é usado como munição porque é extremamente denso e, como subproduto, comparativamente barato de obter.
** Como o emprego de armamento químico (gases venenosos) ou a prática do bombardeamento aéreo.