Com os meus agradecimentos ao amável convite de Pedro Correia para que publicasse um texto no Corta-fitas.

À semelhança do que acontecia no caso português com a relação entre a Guiné e Cabo Verde, também as províncias birmanesas durante o período colonial britânico eram uma espécie de colónia de outra colónia. Fazendo parte do Império Indiano (acima), a grande maioria do aparelho administrativo, policial e militar presente na Birmânia era comum com o da Índia e, quando não guarnecido por britânicos (como Orwell), era-o por indianos. No último censo realizado pelas autoridades britânicas (1931) cerca de 7% dos 15 milhões de habitantes eram de origem indiana. E na capital (que então se chamava Rangoon - abaixo), os imigrantes indianos estavam até em maioria (53%).

Só que este Exército Nacional Birmanês (ENB) também passou pela situação desconfortável de ter servido de marioneta que legitimava os invasores japoneses quando estes invadiram a Birmânia em 1942 e dali expulsaram os britânicos (e os indianos – houve cerca de 500.000 abandonaram o país fugindo aos invasores). Em 1943, a Birmânia veio a tornar-se teoricamente independente, mas, debaixo da tutela nipónica, o grau de liberdade do governo do novo país era nulo. E a importância militar da participação do ENB (com os seus míseros 11.000 efectivos) na Campanha da Birmânia foi perfeitamente residual.

A Birmânia do período do pós-Guerra, em direcção à sua independência (1945-48) tinha três grandes problemas. As negociações entre britânicos e birmaneses foram duras e não contiveram quaisquer daqueles elementos de cortesia diplomática entre colonizadores e colonizados próprios destas ocasiões. Por exemplo, a futura Birmânia independente não quis fazer parte da Commonwealth e nasceu assim internacionalmente isolada. Em segundo lugar, e como já aqui descrevi noutro poste, o novo país seria, quanto à sua coesão interna, de uma heterogeneidade capaz de pôr em causa a sua existência. Um terço da sua população não é etnicamente birmanesa (abaixo).

Os primeiros 14 anos de independência (1948-62), sobretudo sob a direcção de U Nu** (1948-56, 1957-58, 1960-62), caracterizaram-se pela necessidade da repressão das várias minorias étnicas em conflito armado contra o poder central e, por causa disso, pela importância crescente das Forças Armadas e do seu comandante, Ne Win (abaixo), que fora um próximo de Aung San. Entre os birmaneses, a luta política manteve a mesma dureza que levara ao assassinato de Aung San. É neste quadro, e também para boicotar uma solução federal negociada por U Nu com as minorias, que Ne Win promoveu um Golpe de Estado em Março de 1962.

E, consequentemente, para qualquer birmanês o gesto de se apresentar como voluntário para o serviço militar ou de concorrer a uma das Academias tem um significado e abre-lhe possibilidades de carreira que não se comparam com situações equivalentes no Ocidente. Sobre a Prússia dizia-se que, ao contrário dos outros países vizinhos que tinham um exército, na Prússia era o exército que possuía um país. Na Birmânia, os generais do Tatmadaw deverão defender uma opinião que muito se assemelha: para eles, se não houver exército, não haverá Birmânia. É uma opinião minoritária, como se provou as eleiçoes de 1990.

Todavia, tem sido evidente que o regime militar da Birmânia tem estado a ser submetido a uma pressão crescente. Não é difícil adivinhar quem estará por detrás de tais pressões... Mas também não é difícil, lendo os antecendentes da história birmanesa, perceber como a campanha mediática que envolve tais pressões mostra ser de um maniqueísmo primário e excessivo: há a boa Aung San Suu Kyi (acima, junto a uma fotografia do pai) ou os inocentes monges budistas pacíficos que são perseguidos versus os generais, que são maus. A alguém interessa saber, herdeiro por herdeira, que o filho mais velho de Aung San (Aung San Oo) não aprova a conduta política da irmã?...
* A patente está em itálico porque, como se pode ler na sua biografia, a formação académica de Aung San foi em Literatura Inglesa, História Moderna e Ciência Política.
** Como já aqui escrevi, U tem o significado em birmanês de senhor e Nu é, neste caso, o seu (único) nome.
*** Brasil (1964-1985) e Chile (1973-1990).
* A patente está em itálico porque, como se pode ler na sua biografia, a formação académica de Aung San foi em Literatura Inglesa, História Moderna e Ciência Política.
** Como já aqui escrevi, U tem o significado em birmanês de senhor e Nu é, neste caso, o seu (único) nome.
*** Brasil (1964-1985) e Chile (1973-1990).
Muito bom.
ResponderEliminarOs maus que também são feios e porcos, no sentido metafórico.
já estou a conseguir por a escrita em dia.
ResponderEliminarGostei particularmente deste post.
O meu agradecimento aos dois pelos vossos comentários.
ResponderEliminarComo sempre, uma excelente análise, muito bem documentada.
ResponderEliminarAbraço