Com os meus agradecimentos ao amável convite de Pedro Correia para que publicasse um texto no Corta-fitas.
Os generais birmaneses (acima) tiveram um longínquo antepassado português de seu nome Diogo Soares, por alcunha o galego, um mercenário que se tornou general e governador do Reino de Pegu no Século XVI, conforme o contou Fernão Mendes Pinto e o veio a cantar Fausto, no seu álbum Por Este Rio Acima (vídeo abaixo). Já no Século XX, e já não no aspecto estritamente político e militar, mas ainda assim ligado ao aparelho de segurança, a Birmânia colonial contou com um outro ilustre membro, pertencente às Forças Policiais Imperiais Indianas, de seu nome Eric Blair, mas que se tornou mais conhecido noutras funções – escritor – e com outro nome – George Orwell.
À semelhança do que acontecia no caso português com a relação entre a Guiné e Cabo Verde, também as províncias birmanesas durante o período colonial britânico eram uma espécie de colónia de outra colónia. Fazendo parte do Império Indiano (acima), a grande maioria do aparelho administrativo, policial e militar presente na Birmânia era comum com o da Índia e, quando não guarnecido por britânicos (como Orwell), era-o por indianos. No último censo realizado pelas autoridades britânicas (1931) cerca de 7% dos 15 milhões de habitantes eram de origem indiana. E na capital (que então se chamava Rangoon - abaixo), os imigrantes indianos estavam até em maioria (53%).
Portanto, ao contrário do que acontece em muitos outros países que foram antigas colónias, as Forças Armadas birmanesas actuais não vão buscar as suas origens nem se reconhecem herdeiras do antigo exército colonial, mas a organizações nacionalistas insurreccionais, como acontece em países onde houve conflitos armados para que se alcançasse a independência – são os casos das Forças Armadas da Argélia, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau ou do Yemen. No caso da Birmânia, o embrião das Forças Armadas foi construído à volta dos Trinta Camaradas que inicialmente receberam formação militar ministrada pelos japoneses em 1940-41.
Só que este Exército Nacional Birmanês (ENB) também passou pela situação desconfortável de ter servido de marioneta que legitimava os invasores japoneses quando estes invadiram a Birmânia em 1942 e dali expulsaram os britânicos (e os indianos – houve cerca de 500.000 abandonaram o país fugindo aos invasores). Em 1943, a Birmânia veio a tornar-se teoricamente independente, mas, debaixo da tutela nipónica, o grau de liberdade do governo do novo país era nulo. E a importância militar da participação do ENB (com os seus míseros 11.000 efectivos) na Campanha da Birmânia foi perfeitamente residual.
Em finais de Março de 1945, ainda a tempo do gesto ser honroso (o Japão só se rendeu em Agosto…), o ENB mudou-se para o campo dos Aliados. Claro que o ENB não se podia defrontar com as Forças Armadas imperiais japoneses mas, como um exército clandestino (parecido com a resistência francesa), os seus membros puderam servir de base de uma administração clandestina birmanesa livre da influência britânica mas também do controlo japonês. O General* Aung San, pai da conhecida Aung San Suu Kyi, é considerado o autor desta oportuna manobra política que trouxe os nacionalistas birmaneses para o lado dos vencedores.
A Birmânia do período do pós-Guerra, em direcção à sua independência (1945-48) tinha três grandes problemas. As negociações entre britânicos e birmaneses foram duras e não contiveram quaisquer daqueles elementos de cortesia diplomática entre colonizadores e colonizados próprios destas ocasiões. Por exemplo, a futura Birmânia independente não quis fazer parte da Commonwealth e nasceu assim internacionalmente isolada. Em segundo lugar, e como já aqui descrevi noutro poste, o novo país seria, quanto à sua coesão interna, de uma heterogeneidade capaz de pôr em causa a sua existência. Um terço da sua população não é etnicamente birmanesa (abaixo).
Em terceiro lugar, já então, a luta política birmanesa, protagonizada por vários dos Trinta Camaradas, além de outros nacionalistas, regia-se segundo regras muito semelhantes às da Máfia. Em Julho de 1947, 6 meses antes da data de independência (Janeiro de 1948), Aung San foi assassinado conjuntamente com outros 6 ministros do governo de transição por um comando terrorista a mando de um dos seus rivais. Foi assim que, como acontece frequentemente aos políticos que morrem tragicamente (lembre-se Sá Carneiro…), Aung San se tornou num mito de um outro percurso histórico que a Birmânia podia ter trilhado.
Os primeiros 14 anos de independência (1948-62), sobretudo sob a direcção de U Nu** (1948-56, 1957-58, 1960-62), caracterizaram-se pela necessidade da repressão das várias minorias étnicas em conflito armado contra o poder central e, por causa disso, pela importância crescente das Forças Armadas e do seu comandante, Ne Win (abaixo), que fora um próximo de Aung San. Entre os birmaneses, a luta política manteve a mesma dureza que levara ao assassinato de Aung San. É neste quadro, e também para boicotar uma solução federal negociada por U Nu com as minorias, que Ne Win promoveu um Golpe de Estado em Março de 1962.
De então para cá, os militares birmaneses nunca mais abandonaram o poder. Ao contrário do que aconteceu com outros regimes militares mais clássicos (como os sul americanos), onde mesmo os mais duradouros (no Brasil ou no Chile) não ultrapassam uma geração (25 anos***), este regime militar birmanês já vai a caminho de perfazer o dobro disso (46 anos). Conhecidas em birmanês pela designação de Tatmadaw, todos os membros que hoje compõem as Forças Armadas da Birmânia (o serviço militar é voluntário) já entraram depois delas se terem apoderado do poder. Na Birmânia, há muito tempo que poder político e militar são uma e a mesma coisa.
E, consequentemente, para qualquer birmanês o gesto de se apresentar como voluntário para o serviço militar ou de concorrer a uma das Academias tem um significado e abre-lhe possibilidades de carreira que não se comparam com situações equivalentes no Ocidente. Sobre a Prússia dizia-se que, ao contrário dos outros países vizinhos que tinham um exército, na Prússia era o exército que possuía um país. Na Birmânia, os generais do Tatmadaw deverão defender uma opinião que muito se assemelha: para eles, se não houver exército, não haverá Birmânia. É uma opinião minoritária, como se provou as eleiçoes de 1990.
À semelhança do que acontecia no caso português com a relação entre a Guiné e Cabo Verde, também as províncias birmanesas durante o período colonial britânico eram uma espécie de colónia de outra colónia. Fazendo parte do Império Indiano (acima), a grande maioria do aparelho administrativo, policial e militar presente na Birmânia era comum com o da Índia e, quando não guarnecido por britânicos (como Orwell), era-o por indianos. No último censo realizado pelas autoridades britânicas (1931) cerca de 7% dos 15 milhões de habitantes eram de origem indiana. E na capital (que então se chamava Rangoon - abaixo), os imigrantes indianos estavam até em maioria (53%).
Portanto, ao contrário do que acontece em muitos outros países que foram antigas colónias, as Forças Armadas birmanesas actuais não vão buscar as suas origens nem se reconhecem herdeiras do antigo exército colonial, mas a organizações nacionalistas insurreccionais, como acontece em países onde houve conflitos armados para que se alcançasse a independência – são os casos das Forças Armadas da Argélia, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau ou do Yemen. No caso da Birmânia, o embrião das Forças Armadas foi construído à volta dos Trinta Camaradas que inicialmente receberam formação militar ministrada pelos japoneses em 1940-41.
Só que este Exército Nacional Birmanês (ENB) também passou pela situação desconfortável de ter servido de marioneta que legitimava os invasores japoneses quando estes invadiram a Birmânia em 1942 e dali expulsaram os britânicos (e os indianos – houve cerca de 500.000 abandonaram o país fugindo aos invasores). Em 1943, a Birmânia veio a tornar-se teoricamente independente, mas, debaixo da tutela nipónica, o grau de liberdade do governo do novo país era nulo. E a importância militar da participação do ENB (com os seus míseros 11.000 efectivos) na Campanha da Birmânia foi perfeitamente residual.
Em finais de Março de 1945, ainda a tempo do gesto ser honroso (o Japão só se rendeu em Agosto…), o ENB mudou-se para o campo dos Aliados. Claro que o ENB não se podia defrontar com as Forças Armadas imperiais japoneses mas, como um exército clandestino (parecido com a resistência francesa), os seus membros puderam servir de base de uma administração clandestina birmanesa livre da influência britânica mas também do controlo japonês. O General* Aung San, pai da conhecida Aung San Suu Kyi, é considerado o autor desta oportuna manobra política que trouxe os nacionalistas birmaneses para o lado dos vencedores.
A Birmânia do período do pós-Guerra, em direcção à sua independência (1945-48) tinha três grandes problemas. As negociações entre britânicos e birmaneses foram duras e não contiveram quaisquer daqueles elementos de cortesia diplomática entre colonizadores e colonizados próprios destas ocasiões. Por exemplo, a futura Birmânia independente não quis fazer parte da Commonwealth e nasceu assim internacionalmente isolada. Em segundo lugar, e como já aqui descrevi noutro poste, o novo país seria, quanto à sua coesão interna, de uma heterogeneidade capaz de pôr em causa a sua existência. Um terço da sua população não é etnicamente birmanesa (abaixo).
Em terceiro lugar, já então, a luta política birmanesa, protagonizada por vários dos Trinta Camaradas, além de outros nacionalistas, regia-se segundo regras muito semelhantes às da Máfia. Em Julho de 1947, 6 meses antes da data de independência (Janeiro de 1948), Aung San foi assassinado conjuntamente com outros 6 ministros do governo de transição por um comando terrorista a mando de um dos seus rivais. Foi assim que, como acontece frequentemente aos políticos que morrem tragicamente (lembre-se Sá Carneiro…), Aung San se tornou num mito de um outro percurso histórico que a Birmânia podia ter trilhado.
Os primeiros 14 anos de independência (1948-62), sobretudo sob a direcção de U Nu** (1948-56, 1957-58, 1960-62), caracterizaram-se pela necessidade da repressão das várias minorias étnicas em conflito armado contra o poder central e, por causa disso, pela importância crescente das Forças Armadas e do seu comandante, Ne Win (abaixo), que fora um próximo de Aung San. Entre os birmaneses, a luta política manteve a mesma dureza que levara ao assassinato de Aung San. É neste quadro, e também para boicotar uma solução federal negociada por U Nu com as minorias, que Ne Win promoveu um Golpe de Estado em Março de 1962.
De então para cá, os militares birmaneses nunca mais abandonaram o poder. Ao contrário do que aconteceu com outros regimes militares mais clássicos (como os sul americanos), onde mesmo os mais duradouros (no Brasil ou no Chile) não ultrapassam uma geração (25 anos***), este regime militar birmanês já vai a caminho de perfazer o dobro disso (46 anos). Conhecidas em birmanês pela designação de Tatmadaw, todos os membros que hoje compõem as Forças Armadas da Birmânia (o serviço militar é voluntário) já entraram depois delas se terem apoderado do poder. Na Birmânia, há muito tempo que poder político e militar são uma e a mesma coisa.
E, consequentemente, para qualquer birmanês o gesto de se apresentar como voluntário para o serviço militar ou de concorrer a uma das Academias tem um significado e abre-lhe possibilidades de carreira que não se comparam com situações equivalentes no Ocidente. Sobre a Prússia dizia-se que, ao contrário dos outros países vizinhos que tinham um exército, na Prússia era o exército que possuía um país. Na Birmânia, os generais do Tatmadaw deverão defender uma opinião que muito se assemelha: para eles, se não houver exército, não haverá Birmânia. É uma opinião minoritária, como se provou as eleiçoes de 1990.
Um dos maiores paradoxos é que a junta de generais na Birmânia comanda uma Forças Armadas que nunca se distinguiram por defender a nação dos seus inimigos externos (poderosos, a Birmânia está na região de confronto entre as influências chinesa e indiana) mas que apenas fundamentaram a sua maior razão de ser nas vitórias registadas nas guerras de contra-subversão, contra aquilo que consideram ser os inimigos internos do Estado birmanês – as minorias étnicas. O actual regime goza do beneplácito tácito da China, enquanto prosperou à custa de uma hostilidade xenófoba contra os indianos (hoje são apenas 2% da população).
Todavia, tem sido evidente que o regime militar da Birmânia tem estado a ser submetido a uma pressão crescente. Não é difícil adivinhar quem estará por detrás de tais pressões... Mas também não é difícil, lendo os antecendentes da história birmanesa, perceber como a campanha mediática que envolve tais pressões mostra ser de um maniqueísmo primário e excessivo: há a boa Aung San Suu Kyi (acima, junto a uma fotografia do pai) ou os inocentes monges budistas pacíficos que são perseguidos versus os generais, que são maus. A alguém interessa saber, herdeiro por herdeira, que o filho mais velho de Aung San (Aung San Oo) não aprova a conduta política da irmã?...
* A patente está em itálico porque, como se pode ler na sua biografia, a formação académica de Aung San foi em Literatura Inglesa, História Moderna e Ciência Política.
** Como já aqui escrevi, U tem o significado em birmanês de senhor e Nu é, neste caso, o seu (único) nome.
*** Brasil (1964-1985) e Chile (1973-1990).
* A patente está em itálico porque, como se pode ler na sua biografia, a formação académica de Aung San foi em Literatura Inglesa, História Moderna e Ciência Política.
** Como já aqui escrevi, U tem o significado em birmanês de senhor e Nu é, neste caso, o seu (único) nome.
*** Brasil (1964-1985) e Chile (1973-1990).
Muito bom.
ResponderEliminarOs maus que também são feios e porcos, no sentido metafórico.
já estou a conseguir por a escrita em dia.
ResponderEliminarGostei particularmente deste post.
O meu agradecimento aos dois pelos vossos comentários.
ResponderEliminarComo sempre, uma excelente análise, muito bem documentada.
ResponderEliminarAbraço