28 fevereiro 2007

COM AGÁ MAIÚSCULO

Os meus dois filhos, adolescentes, desenvolveram um código próprio para acentuar a estupidez de um gesto ou de alguém: pronunciam a palavra estúpido com a primeira sílaba muito aspirada a que acrescentam a expressão com agá grande. Assim, cá em casa, quando se ouve Hestúpido com agá grande sabe-se que estamos perante um verdadeiro superlativo de estúpido.

Será que vale a pena explicar porque fiz esta introdução quando me preparo para falar de Bolsa? Já havia televisão a cores e a democracia estava perfeitamente consolidada quando, nos finais dos anos oitenta, houve um frenesim em que os portugueses se sentiam mais ricos todos os dias, ao ver as cotações das acções que compravam a subirem, num programa popular que substituiu o Boletim Metereológico, logo a seguir ao Telejornal...

Ficou por fazer na altura um apanhado do número de espertos e de otários. Segundo as minhas contas, numa perspectiva micro económica de uma operação de Bolsa bem sucedida, há uma proporção de um esperto (eu) para dois otários: aquele a quem compro os títulos e que não sabe que eles vão subir e aquele a quem os impinjo à saída, que está convencido que a subida ainda se vai prolongar.

Passada essa embaraçosa fase do capitalismo popular, estamos a acompanhar uma outra, a do capitalismo corporativo, com os exemplos das recentes OPAS do BCP sobre o BPI e da Sonae sobre a PT que, pelo menos, já tiveram a virtude de demonstrar que num mercado devidamente regulamentado a obrigatoriedade democrática de cumprir regras existe para todos, sejam eles pequenos ou grandes.

Há pormenores que se tornam até deveras engraçados, como o da transparência de descobrir quem é o patrão do Público, um jornal que, normalmente, em todos os outros assuntos e sobretudo através da pessoa do seu director gosta de cultivar uma imagem de severa independência. Hoje, o título destacado de primeira página da edição impressa é: Sonaecom oferece 5700 milhões em dividendos a accionistas da PT

A cobertura do assunto não se fica naturalmente por aqui e aparece desenvolvida na página 40. É curioso o pormenor paradoxal de no desenvolvimento se noticiar que a CMVM obrigou a Sonaecom a retirar o anúncio publicitário de apelo à participação dos accionistas na AG para desblindagem dos estatutos (…). O paradoxo é que precisamente esse mesmo anúncio aparece publicado na mesma edição na página 21…

Há ainda outros pormenores (a figura de Henrique Granadeiro, da PT, em baixa, na página final, por exemplo…) mas tenho que reconhecer o meu conforto perante esta frontalidade de Belmiro de Azevedo em relação ao assunto por contraponto ao costumeiro discurso viscoso e sinuoso usado pelo director do jornal em situações semelhantes. Haja é quem acredite na sua argumentação… Belmiro criou um jornal nacional para o auxiliar nos seus interesses nestas circunstâncias e mai´ nada!

A FROTA SUICIDA DO ALMIRANTE OZAWA

Quem tenha visto o filme Cartas de Iwo Jima (tê-lo-á fresco na memória) será capaz de se lembrar de um pequeno episódio do filme em que o General Kuribayashi, depois de ceder a aviação que possuía para a defesa de Saipan (em Junho de 1944) passa a depositar as suas esperanças de obter a sua protecção aérea da Frota Combinada (aeronaval) do Almirante Jisaburo Ozawa (na imagem acima).

A Frota Combinada a que se referia o General Kuribayashi era precisamente a mesma – depois do desgaste de dois anos e meio de guerra e de várias batalhas – que lançara o ataque a Pearl Harbor, que fora formalmente o início da Segunda Guerra Mundial no Pacífico, em Dezembro de 1941. Curiosamente, na mesma altura em que a ela se referia, a Frota estava a sofrer uma das mais severas derrotas, na Batalha Naval do Mar das Filipinas, onde viria a perder três porta-aviões e mais de 400 aviões embarcados.

Mesmo assim, a Frota veio mais uma vez a ser reconstituída para participar de uma forma bizarra na última grande acção naval da Segunda Guerra Mundial. Fá-lo-á ao abrigo de um plano concebido pelo Grande Quartel-General da Marinha Imperial que foi baptizado com um nome grandiloquente: ShoVitória! Mas esse é o único pormenor grandioso de um plano em que se usam os escassos meios que restam à Marinha Imperial japonesa.

Transformando velhos couraçados (Ise e Hyuga), bem como outros que ainda estavam em construção (Amagi), a que se juntava o último porta-aviões sobrevivente de Pearl Harbor (Zuikaku), a que ainda havia que adicionar outros 5 porta-aviões ligeiros, criou-se a aparência do renascimento de uma nova força aeronaval. Só que o maior problema foi a formação de pilotos com aquela especialidade, difíceis e mais morosos de formar do que os pilotos comuns (imagine-se a dificuldade de aterrar num porta-aviões).
Onde a Marinha Imperial ainda se poderia medir com a sua homóloga americana (e mesmo superá-la) seria no domínio dos grandes navios clássicos, onde a artilharia de um colosso como o Yamato (460 mm) não tinha rival entre os couraçados norte-americanos. Calculava-se que a Frota clássica, com 7 couraçados, 11 cruzadores pesados e outros navios menores, sob o comando do Almirante Kurita (acima), ainda teria, sob certas circunstâncias, possibilidades de infligir uma severa derrota aos Estados Unidos e inverter a tendência da guerra.

As circunstâncias imaginadas – daí o plano – preveriam que os couraçados japoneses lutassem contra os norte-americanos sem ser nas condições da tradicional superioridade aérea destes últimos. Para isso, em caso de uma ofensiva americana, a Frota Combinada de Ozawa serviria de isco, fingindo desafiar e atraindo para longe os porta-aviões e o poder aeronaval do inimigo enquanto a Frota de couraçados de Kurita apareceria de surpresa para lutar de igual para igual com os couraçados norte-americanos que permanecessem em apoio ao desembarque.

A ocasião surgiu em Outubro de 1944, quando os norte-americanos invadiram as Filipinas pela ilha de Leyte, situada no centro do arquipélago. A convicção de Ozawa era que toda a sua Frota iria ser destruída (e ele com ela); entre os quatro grandes e cinco pequenos porta-aviões contavam-se apenas 110 aviões em que a grande maioria dos pilotos ainda não aprendera a manobra de aterragem. Mais: dois dos porta-aviões grandes nem aviões tinham, mas decidiu-se, mesmo assim, que integrassem também a força para causar ainda mais impressão ao inimigo…

O plano começou por correr mal para os japoneses. Os submarinos e os aviões de reconhecimento americanos descobriram os navios que era suposto não descobrirem, afundaram alguns, mas não havia maneira de descobrirem a Frota de porta-aviões quase sem aviões de Ozawa. Esta última expressão tornou-se literal quando o Almirante – também em busca do inimigo - deu ordem para que os aviões fossem lançados à sua procura: dos 110 já só restaram 29: foram os que conseguiram regressar… (a maioria deles acabou por aterrar em aeródromos japoneses nas Filipinas).
Até que a Frota de Ozawa foi localizada. O Almirante Halsey (acima) apanhou um calafrio, ao descobrir todos aqueles porta-aviões inimigos de surpresa, enquanto andava entretido à procura da Frota de Kurita que fora assinalada pelos submarinos. O Plano japonês poderia voltar a ter hipóteses de sucesso, caso não houvesse a enorme desproporção material entre os dois contendores. O Almirante Halsey partiu em perseguição de Ozawa, mas apenas com uma parte das suas forças: cinco porta-aviões pesados e cinco porta-aviões ligeiros, com cerca de 700 aviões…

Assim, a proteger as tropas que desembarcavam, estavam meios suficientes que permitiram aos americanos responder em condições (para eles desconhecidas) de algum equilíbrio com os meios da Frota de Kurita: os japoneses afundaram, com a sua artilharia dois porta-aviões ligeiros e alguns contratorpedeiros, mas a aviação americana mandou para o fundo três cruzadores japoneses. O grito de socorro lançado pelos que protegiam o desembarque interrompeu a tarefa de Halsey que estava a massacrar metodicamente os navios de Ozawa.

A ameaça da concentração de todas as forças aeronavais americanas fez Kurita abandonar o combate* enquanto Ozawa acabou por descobrir, estupefacto, que deixara de ser perseguido. Dois dos seus porta-aviões transformados sobreviveram à batalha. Curiosamente, eram precisamente os dois que nunca haviam tido aviões… E, por altura da Batalha de Iwo Jima (Fevereiro e Março de 1945), a aviação praticamente desaparecera do arsenal japonês, substituída pelos kamikazes, que não passavam de mísseis tripulados…

* Um gesto criticado por não ter dado mostras do mesmo espírito de sacrifício de quem lhe apoiara a manobra.
Nota: Para os mais rigorosos, manda a honestidade histórica referir que a discrição da acção foi aqui um pouco simplificada, mas sem alterar a concepção do plano, o papel de isca da frota de Ozawa e o ataque que competiria às outras frotas convencionais - havia duas.

27 fevereiro 2007

MARKET SHARE


Entre as coisas que me intrigam (e felizmente ainda há muita coisa que me intriga neste mundo…) há as que considero duplamente intrigantes porque, além de me parecer que se está há muito tempo a lavrar num mesmo erro ou numa simplificação excessiva, a detecção desse facto parece-me tão evidente que me chega a causar dúvidas se não estarei equivocado naquilo que tenho por óbvio.

Mais concretamente, estou a falar do exemplo das quotas de mercado de audiência televisiva, agora popularizados pela designação britânica simplificada de share. Como se se tratasse de um campeonato de televisões, regularmente a comunicação social informa-nos sobre a evolução dos shares das televisões com uma notoriedade muito superior à das rivalidades que se travam noutros meios (a rádio ou os jornais) para já não falar de outros ramos de actividade.

Mas a explicação para a importância suplementar do share no negócio da comunicação social é muito pertinente: a audiência é um indicador que acaba por estar associado às receitas publicitárias, e essas são um elemento crucial para avaliação da rentabilidade de todo o negócio. Numa televisão, quem tem mais audiência poderá cobrar mais porque tem mais gente a ver os seus programas. É uma lógica que faz sentido.

O que não se percebe é que essa mesma lógica não costume ser levada até ao fim: é que numa perspectiva publicitária, mais do que o volume da audiência está a capacidade de consumo da audiência. Por exemplo: um share de ricos, onde o rendimento médio seja o dobro da média geral, valeria o quádruplo de um share idêntico de pobres, onde esse indicador fosse metade dessa mesma média geral. E seria natural que a distribuição de receitas publicitárias deveria reflectir esse facto.

Ora, surpreendentemente, nas notícias veiculadas, os vários aspectos que estão associados ao perfil sócio-económico das audiências são abordados de uma forma demasiado superficial para a verdadeira importância explicada acima. Talvez a explicação possa estar na inconveniência política do conteúdo dessa mensagem, como que legitimando a frase de Orwell, que somos todos iguais mas há uns que são mais iguais que outros

A verdade é que, entre profissionais, esses factores terão de ser levados em conta, tanto mais que os gostos de uns e outros são distintos para a maioria dos artigos de consumo. Afinal, também no mundo do comércio automóvel, por exemplo, onde os campeonatos também se fazem pelo número de carros matriculados, os valores associados à venda e manutenção de um BMW médio devem equivaler à de dois FIATs mais pequenos (e esta última parece mais importante com este critério de contagem...).

Ao contrário dos pedantismos, felizmente, a educação do gosto e o recheio das carteiras não são coisas rigorosamente concertadas porque isso é um sinal demonstrativo que existe dinamismo social. Se ele não existisse a sociedade estagnaria ou revoltar-se-ia. Mesmo assim, é evidente que existe uma forte correlação entre uma coisa e outra. É fácil percebê-lo com vários exemplos do panorama televisivo: as audiências da SIC Notícias e as da SIC e da TVI são apenas um caso.

Mas o que acima ficou escrito sobre as diferentes rentabilidades do shares que se conquistam, que pode ser exemplificado no sector automóvel por marcas como a Volkswagen ou a Peugeot, parecem demonstrar que a predilecção pela programação popular por parte das televisões privadas em Portugal é uma opção (provavelmente menos arriscada, mas uma opção, de qualquer forma), ao contrário do que os seus responsáveis sempre nos pretenderam fazer crer.

O PUTO QUE ERA O DONO DA BOLA

Creio que quase todos teremos passado enquanto miúdos pela situação de ter querido jogar à bola à vontade mas como o dono da dita era um puto, um palmo de altura abaixo do resto da malta, todo o jogo acabava por se tornar numa chatice, com as várias exigências do puto (foi falta…- não valeu… - não foi golo…) a condicionar toda a diversão. Eram fortes argumentos contra a propriedade privada e a favor do socialismo e da apropriação colectiva dos meios de diversão…

Não sendo um puto e não tendo uma bola sem saber jogar com ela, a atitude que a TVI demonstra a respeito dos horários de transmissão da cerimónia dos Óscares é-lhe completamente equiparável. Sendo proprietária (da bola) dos direitos de transmissão, compreende-se que faça a transmissão em directo da cerimónia, noite e madrugada fora, captando a adesão de todos os entusiastas de cinema que podem dispor da liberdade de perder ou de compensar uma noite sem sono.

O gesto de puto que chateia todos, por ser o dono da bola, aparece no dia seguinte, ao retransmitir a cerimónia já devidamente montada em atenção àqueles que, gostando, não são propriamente dedicados cinéfilos a ponto de sacrificar uma noite de sono. Mas como a audiência fiel da estação não liga puto ao programa (como o puto não sabia jogar, também a TVI também não é feita para transmitir coisas tão intelectuais…), a TVI arremessa-a lá para as duas da manhã…

Visto de uma certa perspectiva, a TVI decide bem: a maioria dos que estariam interessados em seguir a cerimónia são mercenários não recuperáveis para a fidelidade aos Morangos com Açúcar. Mas, ao destratar assim um segmento da audiência, creio que não estou sozinho ao afirmar que considero a TVI uma estação de televisão carismática. E carisma, neste contexto, é um eufemismo que se costuma empregar (com Cunhal, por exemplo) para descrever as emoções desencadeadas por alguém que, para além de quem gosta, quem não gosta, detesta mesmo.

26 fevereiro 2007

O REINADO DE SANCHO O POVOADOR


São inegáveis algumas das qualidades de Belmiro de Azevedo, que nem os sentimentos suscitados pela inveja dele ser o português mais rico do momento podem negar. Mas o ambiente deferente que o deve rodear funcionou em seu desfavor na altura de apreciar a sociedade que o cerca. Só essas circunstâncias da existência de uma espécie de corte aclamadora, mas de honestidade medíocre, explicarão a figura triste a que se prestou quando resolveu troçar de quem o criticava pelo valor de 9,5 Euros por acção que havia estabelecido para a OPA sobre a PT.

Mas sabendo reagir com flexibilidade, terá sido por isso que ao ficar sem cara para reaparecer à frente do processo da aquisição da PT, o entregou ao filho Paulo. Entre as qualidades de Belmiro de Azevedo conta-se o seu amor pelo filho que, por vezes, chega a assumir aspectos caricatos: aqui há quatro anos e meio publicou-se um livro intitulado Reformar Portugal e o subtítulo 17 estratégias de mudança; contava com a colaboração de 15 colaboradores de renome em diversas áreas* e dos filhos de mais outros dois – Belmiro de Azevedo e Pinto Balsemão…

Não se entenda daqui que se pretende questionar as qualidades de Paulo Azevedo. A História tem mostrado que muitas vezes a conjuntura se altera e acontece que se torna uma tarefa ainda mais difícil manter a dinâmica herdada do fundador do que acontece com o processo da própria fundação em si. Mas também creio que ainda é muito cedo para apreciar isso em Paulo Azevedo, apesar de tudo o que Belmiro de Azevedo faça para promover o seu filho para o destaque do centro do palco.

Afinal, lembremo-nos que o nosso rei Sancho I, enquanto príncipe, foi de grande auxílio ao pai, Afonso Henriques, nos anos finais do seu reinado (Afonso Henriques morreu com 76 anos), mas os principais julgamentos da posterioridade sobre o monarca guardam-se para o seu desempenho no período em que ele foi o rei (1185-1212). É que, neste caso, considera-se geralmente que houve uma significativa inflexão de atitude quanto à gestão do reino**… Quando também tiver a liberdade de a poder fazer então Paulo de Azevedo é um interveniente no jogo. Até lá, por muito que o pai o pretenda, é apenas o filho dele…
 
* Abel Mateus, Luís Valadares Tavares, Diogo Vasconcelos, Henrique Neto, Medina Carreira, Correia de Campos, Manuel Antunes, Acácio Catarino, Proença de Carvalho, Loureiro dos Santos, Luís Barbosa, Melo Baptista, Costa Lobo, Nunes da Silva, Sarsfield Cabral,… Paulo Azevedo e Francisco Maria Balsemão.

** Considera-se que os esforços se transferiram para a consolidação das conquistas realizadas no reinado do pai.

25 fevereiro 2007

UMA PEQUENA EFEMÉRIDE


Não sou grande amigo de efemérides, de aniversários de blogues, ou marcas significativas (as 10 mil ou 100 mil visitas), mas é com muito orgulho que abro uma excepção sob o altar da lusofonia quando acabei de constatar ocasionalmente que este blogue regista neste momento mais visitantes brasileiros que portugueses.

Assinalo-o com um poste singelo dedicado a um problema que parece ser comum a um e outro lado do Atlântico: o desconhecimento das letras dos respectivos hinos nacionais. Quero deixar uma saudação especial aqueles que aqui chegaram intrigados porque é que, sendo o Aécio Neves tão novo, já se falaria de um seu herdeiro…
I

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante,
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da pátria nesse instante.
E o penhor desta igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte.
Em teu seio, ó liberdade,
Desafia o nosso peito a própria morte!
Ó pátria amada,
Idolatrada,
Salve! Salve!
Brasil, um sonho intenso, um raio vívido
De amor e de esperança à terra desce,
Se em teu formoso céu, risonho e límpido
A imagem do cruzeiro resplandece.
Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso,
E o teu futuro espelha essa grandeza.
Terra adorada,
Entre outras mil,
És tu Brasil
Ó pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada,
Brasil!

II
Deitado eternamente em berço esplêndido
Ao som do mar, e à luz do céu profundo,
Fulguras, ó Brasil, florão da América,
Iluminado ao sol do novo mundo!
Do que a terra mais garrida,
Teus risonhos, lindos campos têm mais flores;
Nossos bosques tem mais vida,
Nossa vida no teu seio mais amores
.Ó pátria amada,
Idolatrada,
Salve! Salve!
Brasil, de amor eterno seja símbolo
O lábaro que ostentas estrelado
E diga o verde-louro dessa flâmula
Paz no futuro e glória no passado.
Mas, se ergues da justiça a clava forte,
Verás que um filho teu não foge à luta,
Nem teme, quem te adora, a própria morte.
Terra adorada,
Entre outras mil,
És tu Brasil
Ó pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada,
Brasil!

A ÍNCLITA GERAÇÃO

Considerava Michael Crichton um excelente autor de ficção científica ou histórica (A Ameaça de Andrómeda, de 1969, é o seu sucesso mais antigo), que escrevia histórias que, quando lidas, se percebia como se prestavam facilmente a ser adaptadas para filmes interessantes até que, com o sucesso gigantesco que obteve com a transposição para o cinema que Spielberg fez em 1993 de Parque Jurássico (1990), parece que o feito lhe afectou o estilo para passar a escrever guiões de filme, agora com capa de livro.

Os resultados têm sido irregulares, sendo um dos casos desta nova incarnação o livro Timeline (capa na imagem), de 1999, adaptado para filme em 2003 (não vi), onde a ficção gira à volta das viagens temporais de uma equipa científica que viaja até França e até ao Século XIV, com um resultado mediano. Mas o que dali quero destacar é a menção de alguns episódios, que se tornaram depois famosos na História, que a imaginação de Crichton transforma em banais, como é o caso do famoso discurso de Lincoln em Gettysburg, que no livro é mostrado como se, na realidade, tivesse sido apenas um discurso banal numa cinzenta e ventosa tarde de Outono para meia dúzia de gatos pingados...

Pois bem, na minha short list** dos desejos daquilo que gostaria de testemunhar presencialmente, se possível fosse viajar no tempo, estava a hipótese de acompanhar e conhecer ao vivo, para dali extrair as minhas próprias conclusões, como teriam sido os filhos (e as suas relações recíprocas) do nosso rei João I: Duarte, Pedro, Henrique, João e Fernando, dado que Isabel se afastou quando casou com Filipe da Borgonha. Oficialmente, como nos informam os livros clássicos, eles compunham a ínclita geração a que se segue normalmente um chorrilho de encómios a todos os irmãos.

Ora a família Von Trapp é austríaca e só muito vagamente baseada em factos reais*… Por detrás dessa imagem idílica estiveram disputas severas entre todos eles, algumas vezes agrupados em facções, como se constata pelas crónicas da época e por detrás dessas crónicas também não me surpreenderia que tivesse havido disputas severas pela sua redacção como protecção da reputação futura. Nesse sentido, não me surpreende que o maior beneficiado em termos de reputação tenha vindo a ser Henrique, que foi também o último a morrer em 1460.

O assunto é demasiado complexo e eu confesso-me pouco confortável com ele para o poder sintetizar de alguma forma nos textos condensados que um poste necessariamente tem. Não tenho dúvidas que entre os irmãos se encontraria gente muito interessante, superior mesmo. Todos eles com virtudes e defeitos. Estou para apostar – e este é apenas um pressentimento – que as nossas simpatias pessoais (pudéssemos contactar com eles directamente) não se assemelhariam nada à hierarquia de importância que deles fez a História Universal e a de Portugal…
* Trata-se da família de pequenos cantores do filme Música no Coração.
** Pequena lista.

COISAS DA SÁBADO - “SENTIDO DE ESTADO”

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, ao responder com veemência e indignação ao contínuo processo de ataque político e de má-fé a pretexto dos chamados “voos da CIA”, mostrou uma rara qualidade, ter “sentido de Estado”, que muitos referenciam mas não sabem o que é. Ele sabe que a história dos “voos da CIA” é um ataque à política externa portuguesa e dos nossos aliados, e que o pretexto dos “direitos humanos” é só isso, um pretexto que só se exerce quando convém. E respondeu de forma dura e clara à insolência política disfarçada de moral e à cobardia de muitos que não têm coragem para discordar em público desta campanha antiamericana a que só em Portugal se dá importância, porque sabem que nesta matéria funciona o “pensamento único”.

Em itálico como eu gosto, e a azul como ele gosta, para assinalar como citação, estas são as palavras de um artigo da Sábado de 22 de Fevereiro, assinado por José Pacheco Pereira. Confesso que, por preguiça, e conhecendo-lhe os hábitos de afixar no seu blogue o material que vai publicando na Sábado e no Público, fiquei à espera que mais uma vez o fizesse, poupando-me a transcrição acima.

Hoje, Domingo, já dei o assunto por encerrado afixados artigos posteriores, embora me deixem intrigado as razões do seu (não) gesto, que o esquecimento e a falta de tempo para afixar alguns dos artigos serão certamente hipóteses a descartar… É verdade que é um pouco bizarro encontrar José Pacheco Pereira num momento especial, elogioso de um membro do governo… Por outro lado, como já escrevi num poste anterior, tenho um significativo desacordo com aquilo que escreveu.

É que a nobreza de carácter que Pacheco Pereira quer fazer depositar nos ombros de Luís Amado não parecem assentar nada bem na evidente trajectória aos ziguezagues que o ministro tem vindo a cumprir. Mas o propósito deste poste é o de dar o merecido destaque a um feliz comentário sintético a respeito daquele artigo, que por sinal foi feito por alguém nada dado ao comentário ordinário: Sentido de estado?... Sentido de estado, o c******!....

24 fevereiro 2007

DIREITAS ARCAICAS

Ainda a respeito das direitas arcaicas mencionadas no poste anterior, vale a pena dar relevo às acções de uma delas, actualmente no poder: a polaca. Mas não sem antes relembrar uma daquelas regras antigas e não escritas, existentes nas boas democracias, que estabelece que não se devem travar lutas políticas à volta do controlo de serviços de informações, dadas as tentações de os reorientar para assuntos domésticos, o que apenas os expõe e fragiliza.

É verdade que há excepções. Há o caso italiano, mas aí a excepção é o próprio país, que há coisas que apenas acontecem em Itália, há o caso francês, mas aí foi preciso incompetência demais para os agentes se terem deixado apanhar pelos neozelandeses e, não nos esqueçamos de um embrionário caso português, convenientemente abafado, que, salvo erro, envolveu Paulo Portas e as Informações Militares.

Na Polónia, o senhor, que poderá ser visto como uma espécie de Paulo Portas do Leste, chama-se Antoni Macierewicz (na imagem) e está encarregado, desde Julho do ano passado, de reorganizar os Serviços de Informações Militares polacos, dos quais entretanto se tornou dirigente máximo. Mas nada disto seria interessante, não se tivesse dado o caso do senhor ter entretanto feito um extenso relatório crítico.

O interesse cresce desmesuradamente quando se sabe que o objecto do relatório é a análise das actividades e do desempenho dos agentes dos Serviços de Informações Militares polacos no passado, muitos dos quais são nomeados e que o relatório em questão foi colocado ao dispor dos utentes no site da presidência da república polaca, como consta do teor das notícias esntretanto divulgadas.

Na sequência do gesto, entre outros, há já quatro embaixadores polacos no exterior que regressaram súbita e embaraçadamente à Polónia (Áustria, Koweit, China e Turquia) … Ora este parece um daqueles casos em que, indiscutivelmente, os superiores interesses do país se sobreporiam a outras considerações de eficiência ou reorganização – veja-se a triste imagem que a Polónia está a dar de si com este episódio…

Sobretudo, mesmo não sendo a disputa política uma actividade caracterizada pela nobreza, este gesto é um indicativo claro da falta de escrúpulos dos detentores actuais do poder na Polónia (Macierewicz e, acima dele, os gémeos Kaczynski – Lech presidente e Jaroslaw primeiro-ministro) Todos os dias se vê como a democracia é um processo muito mais complexo do que o depósito de um papel numa urna…

23 fevereiro 2007

¡¡¡AL SUELLO!!!

Só as multinacionais, com a superficialidade de quem tudo pretende perceber a partir da visão de relance de um mapa da península é que querem crer que unificando as suas estruturas em direcções ibéricas tornam as suas organizações mais eficazes… Tornam-nas mais baratas, isso sim! Agora, quanto a eficácia… vou ali e já venho, enquanto pode passar o comercial de televisão de promoção do Toyota Yaris, associado à tomatina (em baixo), essa festa de tanto significado para os portugueses…
Regressando atrás, as duas ditaduras ibéricas, entre o muito que tinham em comum, havia outro tanto que as distinguia. Os militares portugueses haviam obtido o Poder por meio de um discreto pronunciamento militar (1926), enquanto os militares espanhóis se sentiam com um Direito de posse natural sobre esse Poder, depois de o ganharem no fim de uma prolongada guerra civil (1936-39). O regime português tinha uma figura militar à sua frente (Carmona), mas quem mandava era um civil (Salazar), mas em Espanha essas duas funções estavam reunidas num militar (Franco).

Os dois regimes começaram a divergir a partir dos anos sessenta, quando o problema colonial português levou o seu governo a adoptar decisões específicas, mas o grande ponto de viragem em que os dois países deixam de funcionar concertadamente foi, indiscutivelmente, a partir de 25 de Abril de 1974. A primeira prioridade do 25 de Abril em Portugal foi a de resolver um problema que a Espanha não tinha (ou, pelo menos, não o tinha à dimensão portuguesa*): o problema colonial.

Mas o problema que apoquentava os sectores mais atentos da direita espanhola era outro: a agitação social portuguesa que culminaria no PREC. Num depoimento de uma interessante série documental da TVE, intitulada La Transición Española (A Transição Espanhola), aquele que era em 74 o Ministro da Informação espanhol, Pío Cabanillas, conotado com a ala liberal do regime, conta a história de uma sessão de cinema privada em que os membros do governo foram confrontados com filmes sobre a agitação social em Lisboa, enquanto os elementos mais ultras do governo comentavam, como que casualmente, como tudo aquilo se resolveria com uma companhia da guardia civil…

É esta descrição de quem literal e simbolicamente não estava a ver bem o filme que me marcou como um dos melhores exemplos de uma atitude que apenas a boa direita tradicional conservadora espanhola guardava e ainda guarda entre os países da Europa ocidental. Pelos acasos da história, ao contrário do que aconteceu nos seus países vizinhos – a França com o fim do regime Vichy (1944), a Itália com o fim do Fascismo (1945), Portugal com o 25 de Abril (1974) - nunca a direita espanhola passou pela humilhação, em tempos históricos, de ser varrida ostensivamente dos centros do Poder.

A transição do regime espanhol, feita da forma suave com que Adolfo Suárez a conduziu (e que tantas invejas desperta em Paulo Portas…), para além das indiscutíveis vantagens sociais, foi como um gesto de retirar os velhinhos ultras da geração de Franco das cadeiras do Poder, amparando-os para lugares de repouso. Mas esse gesto cortês e respeitador teve também custos políticos porque acabou por ser interpretado pelos extremistas mais obtusos como uma concessão que o franquismo fazia ao novo regime. E só isso pode explicar arrogarem-se o direito de interferência e o descaramento do que veio a acontecer em 23 de Fevereiro de 1981.

Há 26 anos um tenente-coronel entrou fardado e armado no Congresso de Deputados enquanto decorria uma sessão da Câmara e pôs-se a disparar tiros e a dar ordens... É o tipo de gesto a que só um certo tipo de extremismo de direita se atreve. O tempo passa mas, ao escutar frases actuais dos discursos de Mariano Rajoy, dirigente do PP, que parecem especialmente dirigidas aqueles que ainda hoje parecem defender o gesto de Tejero Molina, relembra-me que, ainda hoje, a democracia espanhola é uma democracia ligeiramente diferente das outras, porque deve ter a direita mais arcaica do continente...
* A Espanha ainda era a potência administrante do Sáara Ocidental.

A ÁRVORE DAS PATACAS NÃO SE DÁ BEM COM O CLIMA SUL-AMERICANO?

Relembrando-me da síntese que fiz do que aprendi sobre a teoria económica das relações internacionais (já lá vai muito tempo…) é que se desenvolveram interessantes modelos matemáticos que as explicavam, que nos exercícios apareciam normalmente em dois países que se chamavam simbolicamente Amendócia e Literácia. O primeiro era o arquétipo do produtor de matérias-primas (no caso, o amendoim que dava o nome ao país...) e o segundo de produtos manufacturados (os livros, também simbólicos de um país mais evoluído...).

As tais funções de troca específicas da Amendócia e da Literácia cruzavam-se e davam um ponto de equilíbrio donde resultavam as relações de troca entre um livro que equivalia a não sei quantos amendoins… Já nem sei se valia a pena calcular a derivada das respectivas funções e o resultado que dali resultaria porque, por detrás daquele modelo matemático teórico, havia a realidade do comércio mundial, onde o volume esmagador das trocas comerciais se faziam entre as Literácias da Europa, Estados Unidos e Japão.

O exemplo clássico (embora datado dos anos sessenta) envolvia o comércio automóvel, onde a ambição de um típico respeitável pai de família francês (um Volkswagen carocha) se cruzava com a de um jovem contestatário alemão, impregnado dos ventos de Maio de 68 (um Citroën 2 CV). Esse fenómeno, e todos os outros semelhantes, não eram explicados pelo modelo económico com a Amendócia e da Literácia. E ainda havia ainda um outro aspecto, creio, que lhe passava ao lado.

O modelo da Amendócia e da Literácia,por ser tão abstracto, simplificado e estilizado, contornava a questão sobre qual era o país que embalava os amendoins e aquele onde cresciam as árvores que, abatidas, se transformavam na pasta de papel que serviria para fazer os livros que a Literácia produzia. Ou seja, ignorava o potencial conflito existente entre os países produtores e os países consumidores quanto ao local onde ocorre o processamento de um produto que tenha uma ou mais fases de transformação.

Em conjunto, a tese em que se baseava o modelo – os países tenderiam a especializar-se nas actividades onde possuíssem vantagens comparativas – tendia, por sua vez, a transformar-se numa abstracção que nos parecia correcta, mas apenas do ponto de vista formal: por exemplo, ao arrepio da teoria das vantagens comparativas, a indústria da refinação de petróleo não deu, e continua a não dar, mostras de se estar a deslocalizar maciçamente para a proximidade dos locais de maior produção petrolífera…

É sob o regimento destas desagradáveis mas realistas regras empíricas que devem ser analisadas as perspectivas comerciais que se levantaram com a viagem que o presidente chinês Hu Jintao efectuou em Novembro de 2004 à América do Sul. Na altura, muito de prometedor se anteviu, com o Brasil e a Argentina antecipando um novo mercado fabuloso onde pudessem colocar os seus excedentes alimentares sempre emaranhados no proteccionismo praticado tanto pela Europa, como pelos Estados Unidos.

No outro prato da balança, equilibrando também o perigo da invasão de produtos manufacturados com grande incorporação de mão-de-obra, a preços de arrasar a produção doméstica, os países sul-americanos estavam a contar com importantes investimentos chineses no exterior, vindos de uma economia que tem vindo a acumular consecutivos e estrondosos superavites nas suas contas externas. Passados um pouco mais de dois anos e parece que o entusiasmo se esvaiu.

A China é um novo país imperialista na cena mundial mas parece que se comporta como um sacana de um país imperialista daqueles à moda antiga – como os Estados Unidos do século passado. O que a China pretende são as matérias-primas que ela pretende transformar internamente: a Argentina, por exemplo, pretende exportar óleo de soja, mas a China quer comprar é soja em grão, para ela própria refinar. E o item que mais tem evoluído nas exportações da Argentina para a China foi… petróleo.

No caso do Brasil, ao lado da soja, o outro dos componentes principais das exportações brasileiras para a China é minério de ferro. Quanto aos produtos manufacturados, normalmente de pouca sofisticação, dado o perfil médio do consumidor, os brasileiros estão a descobrir que não têm sorte nenhuma, dada a discrepância de preços em presença, embora ainda haja quem atribua as causas disso à falta de planejamento estratégico das empresas para ingressar no mercado chinês.

Ou seja, empregando uma deliciosa expressão brasileira: conversa para boi dormir… Como se o segredo das empresas chinesas fosse o planeamento estratégico!... E tudo isto, ainda por cima, para descobrir que os chineses além de uns sacanas, são uns forretas… É verdade que a China dedicou 40% do seu investimento estrangeiro à América do Sul, mas isso representou menos de 6% do investimento estrangeiro total que a América do Sul recebeu no mesmo período...

E muito desse investimento terá sido aplicado em infra-estruturas para facilitarem a extracção e transporte do petróleo argentino e do minério de ferro brasileiro…

22 fevereiro 2007

476 D.C., O ANO EM QUE NADA DE EXTRAORDINÁRIO ACONTECEU

Resolveram os historiadores escolher algumas datas de acontecimentos significativos para assinalar fronteiras entre as Eras em que se convencionou dividir as fases da nossa História. Assim, para mencionar apenas os períodos de há 2.000 anos para cá (d.C.), o ano de 476 assinala o fim da Antiguidade e o começo da Idade Média, 1453 o fim desta e o começo da Idade Moderna que em 1789 termina para vir a ser substituída pela Idade Contemporânea actual.

Normalmente, quando apresentadas, seguem-se as explicações que os processos de mudança ocorrem a ritmos lentos e que a data em si é apenas uma convenção assinalando um conjunto mais vasto de transformações. Além de 1453, a data de 1498 (descoberta do caminho marítimo para a Índia) também é significativa no anúncio do começo da Idade Moderna e o mesmo acontece com 1776 (início da revolução americana) em relação à Idade Contemporânea.

Mas, mesmo simbólicas, tanto o início da revolução francesa em 14 de Julho de 1789, como a queda de Constantinopla em poder dos Turcos em 29 de Maio de 1453, foram acontecimentos carregados de significado e que assim devem ter interpretados pelos contemporâneos: conquistar e arrasar a fortificação onde se prendiam aqueles que desafiavam o poder real e ouvir o muezim chamar para a oração do alto de uma das mais importantes catedrais da Cristandade, tem de impressionar.

E o contraste é enorme entre aqueles dois acontecimentos com o que (não) aconteceu em Roma em 4 de Setembro de 476, no acto que se pretende simbólico do fim do Império Romano no Ocidente: a deposição do seu último imperador. Primeiro porque a deposição não teve lugar em Roma, mas em Ravena, uma cidade do norte de Itália; depois porque, em rigor, Rómulo Augusto não foi o último imperador do Ocidente, nem o cargo representava o depositário de poder de outrora.

Regressemos a uns anos antes da data de 476. No Século V, a corte imperial do Ocidente, que se estabeleceu em Ravena e já não em Roma, tornou-se numa máquina administrativa complexa onde a verdadeira distribuição do poder dependia muito do perfil dos intervenientes. Durante duas décadas (433-454), por exemplo, Flávio Aécio tornou-se, enquanto comandante militar, a figura dominante no Ocidente, deixando o imperador Valentiniano III na sombra até que este o decidiu eliminar, assassinando-o.

Enquanto o cargo de comandante militar podia ser ocupado por bárbaros, para se ser imperador era necessário ser-se cidadão romano. A aquisição desse estatuto era extremamente simples desde que se pertencesse à geração certa: bastava que um dos pais o fosse para sê-lo automaticamente. Era o que acontecia com Aécio. Mas não com muitos dos comandantes militares que lhe sucederam no cargo que, na impossibilidade de o ocupar, escolheram figuras menores para as funções de imperador.

A adicionar a isso, havia ainda que contar com as influências externas, das grandes regiões que ainda dependiam formalmente de Roma, como a Gália, a Península Ibérica e África, que naturalmente se sentiam no direito de se pronunciar quanto à pessoa escolhida para o cargo de imperador. Finalmente, ainda mais importante, havia que levar em conta o reconhecimento por parte da corte homóloga de Constantinopla, indispensável para legitimar a escolha.

Sinteticamente, nos 22 anos que decorreram entre o assassinato de Aécio, em 21 de Setembro de 454 e a famigerada data que assinala o começo da Idade Média houve 10 imperadores, o que dá uma média de 2 anos e uns poucos meses de reinado, a fazer lembrar a tradicional duração dos governos italianos do pós-guerra. É significativo que os últimos imperadores já nem precisavam de ser assassinados, apenas depostos e desterrados quando ocorriam os pronunciamentos militares.

É assim que se compreende que em Setembro de 476, além do imperador em título, chamado Rómulo Augusto (o filho adolescente de um general bárbaro, Orestes, que, como cidadão romano, superava os problemas de cidadania do pai), vivessem ainda dois ex-imperadores, um deles (Glycerius) saciado das suas ambições com a titularidade da diocese de Salónica, na Grécia (!), mas outro (Julius Nepos) que se assumia como pretendente ao título de que fora recentemente desapossado.

As pretensões de Julius Nepos eram para ser levadas a sério pois era casado com a sobrinha (daí o nome*) do imperador do Oriente, Leão I, embora em 476, já fosse o genro do Leão I, Zenão, o imperador romano de Constantinopla. Mas quando Odoacro, o chefe bárbaro que havia morto Orestes e deposto Rómulo Augusto, o abordou a pedir a confirmação do seu gesto, Zenão só o fez na condição de Odoacro reconhecer Julius Nepos como imperador do Ocidente, o que foi feito.

Confirmando-o, houve moeda romana que foi emitida em Itália e no Norte da Gália depois de 476 em nome de Julius Nepos, embora Odoacro nunca tenha permitido que o imperador desterrado regressasse da Dalmácia, onde residia, para Itália… Resumindo, pondo-nos na situação de um eventual contemporâneo presencial dos eventos em Ravena em Setembro de 476, houve um general que deu um golpe de estado, matou o antecessor e disse que um puto, que não mandava nada, deixava de fingir que mandava...

Atendendo ao ambiente vigente, a nossa testemunha não devia ter ligado importância nenhuma aos tempos históricos que vivia porque estes acontecimentos lhe pareceram mesmo muito pouco importantes. E a culpa não estará na sua falta de argúcia, mas nos historiadores do futuro, que empolarão e atribuirão um simbolismo desmesurado a um acontecimento que terá sido horrivelmente mal escolhido para assinalar a transição da Antiguidade para a Idade Média…
 
 
* Nepo é a palavra latina para sobrinho, presente na língua portuguesa na palavra nepotismo (originalmente a expressão empregava-se para os sobrinhos do Papa)

O GRAU ZERO DA IGNORÂNCIA

Sucintamente, a definição do grau zero da ignorância é a daquela pessoa que está num estádio de ignorância tal que ignora até a dimensão da sua própria ignorância.

Um dos melhores exemplos do que descrevi são aquelas situações que frequentemente aparecem na televisão antes da selecção jogar, quando os entrevistados da reportagem não sabem a letra do hino nacional.

De embaraço em embaraço acabamos por chegar ao intelectual casual que a conhece e que a canta toda... Toda? O que angústia é que tanto o repórter como o intelectual que acabou de fazer o brilharete parecem desconhecer que a letra da Portuguesa é mais extensa do que aquela que é normalmente cantada:

Heróis do mar, nobre Povo,
Nação valente, imortal
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!
Entre as brumas da memória,
Ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós,
Que há-de guiar-te à vitória!
Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela Pátria lutar
Contra os canhões marchar, marchar!
Desfralda a invicta Bandeira,
À luz viva do teu céu!
Brade a Europa à terra inteira:
Portugal não pereceu
Beija o solo teu jucundo
O Oceano, a rugir d´amor,
E o teu braço vencedor
Deus mundos novos ao Mundo!
Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas
Pela Pátria lutar
Contra os canhões marchar, marchar!
Saudai o céu que desponta
Sobre um ridente porvir;
Seja o eco de uma afronta
O sinal de ressurgir
Raios dessa aurora forte
São como beijos de mãe,
Que nos guardam, nos sustêm,
Contra as injúrias da sorte!
Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas
Pela Pátria lutar
Contra os canhões marchar, marchar!

É certo que o desempenho da selecção não será afectado pela dimensão do hino, mas não custa nada instruir o repórter que, mesmo não sabendo a letra toda, aquela não é a letra toda. Até lhe dá um cunho mais instruído e mais patriota do que os apoiantes em geral, o que fica sempre bem em televisão!

21 fevereiro 2007

PARA O IRAQUE, DEPRESSA E EM FORÇA… COM QUEM?

A minha discordância tradicional com o artigo que Max Boot (o meu neocon de estimação) assina semanalmente no Los Angeles Times é desta vez, de um cariz preocupantemente diferente. Depois de analisar detalhadamente – como é seu costume – o panorama mundial, desta vez quanto às guerras civis recentes ou em curso, Boot induz-nos na conclusão como é da nossa competência evitar que a guerra civil venha a sair fora de controlo no Iraque. O remate do artigo é eloquente: a causa é pelo reforço dos contingentes militares no Iraque, não pela retirada.

Já me habituei a ler Boot. Raramente concordo com o que escreve, mas reconheço-lhe a coerência do que pensa. Desde há muito que, por exemplo, ele preconiza o aumento dos efectivos das forças armadas americanas recorrendo à incorporação de estrangeiros, à boa maneira dos romanos. Mas não creio que essa solução, sendo aprovada, se possa vir a aplicar num horizonte temporal que influencie as carências de pessoal actuais que ele tão bem devia conhecer. Aliás, foi em resposta a elas que ele adiantou a proposta de solução mencionada. Neste momento a maior potência mundial não tem tropas para aumentar o volume de efectivos que estão destacadas no Iraque!

Desenvolvo uma certa antipatia instintiva e imediata em quem adianta propostas de solução que apenas o são aparentemente, por manifesta e evidente inexequibilidade. Refira-se que em Portugal esses disparates costumam ser vistos com muita benignidade, desde os oriundos do leque tradicional da classe política*, a uma poderosa falange de empresários e dirigentes das nossas mais variadas organizações, pelos quais desenvolvi uma grande estima: podem ser exemplificados em casos como Pedro Nunes da Ordem dos Médicos, António Carrapatoso, da Vodafone ou Gilberto Madaíl da Federação Portuguesa de Futebol.

O que é relevante é que cheguei à conclusão que quem assim diz umas coisas para o ar pretendendo dar soluções em que só os incautos acreditam tende a fazê-lo por uma de três causas: ou é ignorante, ou foi distraído na análise do problema, mas de uma distracção tão extrema que lhe pode chegar a ser prejudicial ou então está a ser intelectualmente desonesto. E, caso não me tenha esquecido de uma outra categoria, não sei em qual delas classificar Max Boot quanto a este seu apelo para que se aumentem os efectivos militares no Iraque...

*A relembrar o episódio recente do cálculo dos custos das 100 medidas de Ségolène Royale.

UM BOM ROMANCE, UMA BELA HISTÓRIA

Um dos exemplos mais perfeitos do sucesso (raro) na cooperação anglo-francesa (para além do Concorde...) são os livros de Dominique Lapierre e Larry Collins. Conjuntamente com os seus antecessores Paris Já Está a Arder? (sobre a libertação de Paris na Segunda Guerra Mundial em 1944) e Oh Jerusalém (sobre a criação do Estado de Israel em 48), o livro Esta Noite a Liberdade (referente aos acontecimentos que conduziram à independência da Índia e do Paquistão em 47) criou um certo tipo de romance que veio depois a ser muito copiado numa determinada época, embora com menos sucesso.

Esta Noite a Liberdade é uma investigação jornalística aprofundada que se tornou num excelente exemplo do que é um trabalho vivo, bem escrito e documentalmente irrepreensível sobre os acontecimentos que cobre, mas que não deve ter as pretensões a constituir uma verdadeira análise histórica. Falo por experiência própria de quem começou prematuramente a quere extrair conclusões sobre aqueles acontecimentos a partir da sua leitura até que a bibliografia complementar (o pluralismo é sempre indispensável nestes casos...) me ter mostrado quão enganado estava.


O livro contém quatro figuras principais, sendo uma delas dominante. As primeiras são visíveis no topo da capa da versão inglesa do livro. Da esquerda para a direita: Mohandas K. Gandhi, Louis Mountbatten, Muhammad Ali Jinnah e Jawaharlal Nehru. Creio que será dispensável apresentar o Mahatma Gandhi, Mountbatten foi o último Vice-rei britânico na Índia, enquanto Jinnah e Nehru eram, à data dos acontecimentos, os líderes incontestados das duas facções políticas (e religiosas) que se preparavam para disputar, à mesa das negociações, o futuro da Índia.

A figura dominante do livro é Lord Louis Mountbatten, o único sobrevivente dos quatro à data em que os autores o escreveram e que foi extremamente prestável nas entrevistas que concedeu aos autores. Além de pessoalmente muito cativante, todos os outros testemunhos são unânimes em considerar que Mountbatten sempre fora de um egocentrismo e de uma imodéstia ímpares. Nas suas memórias, o pouco caridoso (mas muito arguto) Marechal Alan Brooke adicionava a essas características a superficialidade e uma opinião nada abonatória sobre as suas capacidades intelectuais.

Mas os dois jornalistas cativaram-se pela figura avuncular do velho Almirante (que veio a ter um fim trágico, assassinado pelo IRA em 1979) e o livro vem a incorporar, dessa forma, também as suas animosidades pessoais, especialmente as relativas ao líder da comunidade muçulmana, Jinnah, que era uma figura sóbria, sombria, ascética, nos limites do antipático (a fazer lembrar fisica e comportamentalmente Álvaro Cunhal), o que irritava sobremaneira o Vice-rei porque se mostrava um negociador temível e irredutível, para mais completamente impermeável ao charme pessoal de Mountbatten, que ele considerava irresistível.

É evidente, e muitos outros livros sobre o mesmo assunto comprovam-no*, que o Império britânico das Índias não se dividiu em 1947 em dois grandes países (Índia e Paquistão) por causa da teimosia de Muhammad Ali Jinnah ou dos fantasmas dos conflitos entre comunidades por ele levantados. Colocar o problema nesses termos, como o faz o livro de Lapierre e Collins é indicativo quanto Alan Brooke devia estar correcto a avaliar as incapacidades de julgamento de Mountbatten e quão profunda foi a influência das suas opiniões sobre os dois jornalista quando elaboraram o livro.

Mas não hajam quaisquer dúvidas sobre o prazer que tirei da sua leitura, e o sucesso que acredito que uma eventual versão cinematográfica do livro poderia ter. Simplesmente há que ter presente que é um belo romance, que conta uma bela história, mas não é a História, e às vezes há tendência para se confundirem estas duas coisas…

* Por exemplo, Raj, The Making of British India, de Lawrence James (1997), The Proudest Day, de Anthony Read & David Fisher (1997) ou Pakistan, A Modern History, de Ian Talbot (1998).

20 fevereiro 2007

007 - FROM CZECHOSLOVAKIA WITH STRENGTH

Ainda a respeito das competições de atletismo nos Jogos Olímpicos de Montreal de 1976 e do grande galo colectivo que a nação portuguesa apanhou na prova de 10.000 metros, quando o finlandês Lasse Viren se escapou na última volta a Carlos Lopes, como muito bem recordou o Freitas num seu comentário, queria deixar ainda a referência a uma cachopa que se revelou na prova de lançamento do peso feminino, onde ganhou a medalha de bronze, a checa Helena Fibingerova (ao lado direito).

Já aqui falei das nadadoras da RDA, um tipo físico marcante, mas as atletas da Checoslováquia não lhes ficavam atrás. Podiam não ser umas moças encantadoras, mas que não fiquem dúvidas do quanto eram eficazes. Helena Fibingerova ainda é a detentora da terceira melhor marca do lançamento do peso de sempre, com 22,32 metros. A marca foi obtida em 1977! Além disso, é a recordista mundial da mesma disciplina em pista coberta. Como curiosidade, refira-se que, entre as dez melhores marcas mundiais da disciplina na actualidade, apenas uma (a 9ª) foi obtida depois de 1991.

Outra das vedetas do atletismo checo foi a corredora Jarmila Kratochvilova (à esquerda), dois anos mais nova que a sua colega, e que ainda hoje detém o recorde mundial dos 800 metros (1 min. 53,28 seg.) e a segunda melhor marca mundial nos 400 metros (47,99 seg.), ambos obtidas em 1983! Na lista das melhores marcas de sempre dos 800 metros há apenas duas marcas (7ª e 8ª) que foram obtidas depois de 1991, e na mesma lista dos 400 metros são quatro (3ª, 6ª, 7ª e 9ª) as marcas obtidas depois daquele ano.

Perante este conjunto de dados, não será particularmente original levantar as suspeitas (que, em muitos casos, são já certezas) quanto quase todos os grandes resultados do atletismo feminino do passado (bem como muitos do sector masculino) foram falseados devido ao doping. Com toda a lógica, seria um absurdo pensar que durante uma geração inteira (desde 1991), os atletas desaprenderam todas os sofisticadas métodos de treino que permitiram obter tais resultados em quase todas as disciplinas, a não ser que esses métodos fossem ilícitos e agora detectáveis…
Pessoalmente, sem quaisquer ideologias, prefiro as moças que aquele país deu a conhecer ao mundo depois da revolução de veludo...

JAWS

A minha temporada de praia de 1977 foi algo mais diferente das anteriores do que era costume, muito por culpa do filme cujo cartaz encima este poste, chamado Jaws (Tubarão), realizado por Steven Spielberg, e que foi um sucesso de popularidade, o primeiro filme a bater a mítica barreira dos cem milhões de dólares em receitas de bilheteira.
Considero que teve um outro sucesso, este muito menos evidente que o anterior, ao ter inoculado em muitos espectadores (incluo-me nesse grupo) um respeito, muito irracional (do mesmo género do medo de voar, por exemplo), pela hipótese do aparecimento inesperado de um bicho daqueles na nossa praia, na altura inconveniente em que estamos na água…
Ao contrário dos filmes de terror mais clássicos (como o Exorcista – outro sucesso de bilheteira da época), Jaws, que assim não se assumia, podia tornar-se muito mais assustador por nos mostrar episódios arrepiantes associados a situações com que o espectador se podia mais facilmente identificar, como era o caso de uma temporada de praia numa vulgar estância balnear.

19 fevereiro 2007

A TRAVESSURA

Ia-me escapando, mas ainda vou a tempo de assinalar e elogiar a travessura de ontem de Maria Flor Pedroso, ao perguntar a Marcelo Rebelo de Sousa, depois de ele se considerar um dos derrotados da noite eleitoral, com uma seta para baixo, qual era o sentido e a dimensão da seta de Ricardo Araújo Pereira. Se se tratasse de uma fotografia, era um verdadeiro momento Kodak – para mais tarde recordar…

ISENÇÃO HISTÓRICA E INDEPENDÊNCIA POLÍTICA

Este fim-de-semana foi-me muito útil, ao recordar-me, através da passagem acidental pelo programa de História contemporânea que António Louçã apresenta na RTP Memória que tipos de referências podemos exigir em termos de objectividade, isenção e independência quando se fala de acontecimentos históricos recentes. É um assunto interessante e muito actual, depois de todos os comentários (incluindo os meus) à parcialidade do programa de Jaime Nogueira Pinto sobre Salazar.
Tenho que confessar que, quando emiti as minhas opiniões sobre a isenção do programa, me esquecera completamente do programa de António Louçã. O facto não alterará a minha opinião de fundo sobre o programa de Nogueira Pinto, mas, em retrospectiva, considero que se alterariam as minhas considerações posteriores sobre a produção de programas de televisão completamente deformados pelo posicionamento ideológico do seu autor.

É evidente que, para acontecimentos da história recente, as convicções ideológicas pessoais afectam a forma como as vemos, e isso afectará a nossa receptividade ao que nos querem transmitir. Contudo também creio que é o próprio teor do que é transmitido que se torna no factor decisivo para o juízo final. Exemplificando, embora eu não me considere ideologicamente muito próximo de Fernando Rosas, considero normalmente muito interessantes as suas análises sobre o período do Estado Novo.
Não sei se António Louça compartilhará as mesmas simpatias políticas de Rosas, mas as abordagens que fazem aos assuntos são muito distintas. Os programas de Louçã tornam-se aborrecidos pelo pendor saturantemente militante com que são apresentados. Entre aquilo que escreveu há bons indicadores disso. A história do que aconteceu é normalmente contrastada com a do que devia ter sido... Salazar não deveria ter negociado com os nazis e assim Portugal teria sido o primeiro país neutral a não beneficiar desse estatuto num grande conflito...

Haviam-no feito países neutrais como a Holanda e a Espanha no grande conflito precedente (a Primeira Guerra Mundial) e tornaram-no a fazer os que gozavam desse estatuto na Segunda. Ironicamente, dá vontade de perguntar se esta atitude muito pouco científica de analisar os assuntos do passado empregando os valores da actualidade não conduzirá à conclusão que Julio César pode ser acusado de colonialismo, Afonso Henriques de xenofobia e o Marquês de Pombal de desrespeito pelos Direitos do Homem?
É de nos deixar pensativos, porque razão haverá programas sobre assuntos históricos que, de tão distorcidos pelas interpretações de simpatizantes de um dos extremos do espectro político (Louçã), acabam por se tornar enfadonhos e outros, que sendo interpretados pelo outro extremo do espectro político (Nogueira Pinto), são igualmente facciosos e deviam ser considerados igualmente enfadonhos, mas que acabam por ser considerados uma enorme novidade…

...O GRANDE ATLETA CUBANO…

É muito frequente que ex-atletas venham a experimentar tornarem-se em comentadores de televisão. Os resultados são extremamente variados, poucos os verdadeiros sucessos, e parece não haver qualquer relação entre a competência verbal e a habilidade desportiva. Os casos de Fernando Gomes (futebol) ou de Marco Chagas (ciclismo), que mostram saber articular frases consecutivas com sujeito, predicado e complemento são mesmo episódios raros. E há que perder as ilusões de uma vez por todas, porque Eusébio era mesmo um jogador fora de série.

Em meados da década de 70, o princípio, de origem norte-americana, de que, numa transmissão televisiva, o atleta consegue transmitir melhor a vivência do que está a acontecer no campo estava no seu auge e também chegou a Portugal, e aqui foi adaptado. Por adaptação lusitana entenda-se que, no original, havia um comentador profissional assessorado por um ex-atleta que realçava os aspectos técnicos do que estava a acontecer, enquanto que no nosso modelo simplesmente não há comentador profissional, e quem lá está (o ex-atleta) desembrulha-se como pode.

O clímax da época do ex-atleta-com-jeito-para-os-comentários terá sido por altura dos Jogos Olímpicos de Montreal de 1976 e ter-se-á concretizado na pessoa de José Galvão, um enorme atleta, creio que ainda lançador de peso no activo naquela data, recordista nacional da disciplina, de voz grave e ar simpático – a verdadeira figura do bom gigante. E disponível. Como verdadeiro apreciador do desporto em geral – pelo menos foi assim que recordo que a sua contribuição foi apresentada… – José Galvão até se dispôs a comentar disciplinas olímpicas tão improváveis como canoagem e remo…
Mas refira-se que nem o facto do comentador ser um ex-atleta da modalidade que comentava o podia livrar de encrencas. Alves Barbosa (acima), que era uma legenda do ciclismo português e que fora convidado para comentar as provas de ciclismo de pista daquelas olimpíadas conseguiu a proeza de trocar por quatro vezes de enfiada atletas da República Federal da Alemanha com atletas da República Democrática Alemã. E os primeiros usavam camisolas brancas, os segundos camisolas azuis escuras, até nas nossas televisões a preto e branco se percebia a diferença…
Mas nenhum dos nossos conseguiu superar um dos seus homólogos britânicos do atletismo (Ron Pickering). Maravilhando-se com a proeza do atleta cubano Alberto Juantorena naqueles Jogos Olímpicos de Montreal, quando se tornou bicampeão olímpico de atletismo nos 400 e 800 metros (proeza inédita até então, naquelas duas distâncias), foi assim que ele descreveu a fase decisiva da Final da corrida de 800 metros (em cima), onde Juantorena bateu o recorde mundial da distância: … ao chegar à recta da meta, aí vai o grande atleta cubano abrindo as suas pernas e mostrando toda a sua categoria*…

* … (Juantorena) opening his legs and showing his class… Actualmente, é um clássico dos comentários desportivos em língua inglesa.

NA DEVIDA PERSPECTIVA

Por vezes, faz-nos falta que uma figura respeitada nos chame a atenção para que os problemas da actualidade sejam colocados na sua devida perspectiva. E é ainda melhor quando essa figura é alguém como Paul Kennedy que, enquanto autor de uma obra como Ascensão e Queda das Grandes Potências* (1987), é alguém que se pode considerar como um garante da qualidade nas reflexões que entende tornar públicas.

Neste caso, resolveu fazê-lo num artigo que assina no Los Angeles Times de hoje, a respeito das partidas que a memória nos pode pregar, ao fazer com que figuras responsáveis como o actual Secretário da Defesa norte-americano, Robert Gates, consiga evocar a época da Guerra-Fria como um período menos complexo, conseguindo ainda acrescentar mesmo que sentia uma certa nostalgia pelo seu retorno.

Não deve ser o único e significativamente, aquelas declarações foram proferidas na sequência do violente ataque verbal que o presidente russo, Vladimir Putin, resolveu desencadear contra os Estados Unidos, o que pode indiciar que essas saudades, além de disseminadas, são transfronteiriças. Mas não resistem à confrontação com a memória dos próprios factos da Guerra-Fria.

Na sistematização do seu artigo, Paul Kennedy mostra-se implacável reavivando a memória aos mais distraídos com a enumeração de um conjunto de acontecimentos em que o Mundo se viu à beira de uma catástrofe nuclear de uma forma muito mais próxima do que a que foi percebida na altura. De uma epoca que nos deixou, com a revelação posterior dos factos, com os calafrios retrospectivos de termos escapado por uma unha negra.
Uma época, acrescentaria eu, em que ainda não havia necessidade de inventar apocalipses climáticos ou provocados por meteoritos do espaço… E em que o objectivo de um filme com o título apelativo The Day After (1983 - sem o Tomorrow… de 2004) se referia ao dia seguinte ao da guerra entre as superpotências que terminara com o holocausto nuclear esperado, e queria despertar-nos a pena pelo que aconteceria aos (escassos) sobreviventes…

Por muito maus que sejam os dias de hoje, parece que não deixamos para trás nada que deixe grandes saudades em termos de segurança mundial...

* A tradução portuguesa é da Europa-América de 1990 (2 volumes)

18 fevereiro 2007

O MAIS BONITO HINO QUE CONHEÇO

Não tenho a pretensão de conhecer os quase 200 hinos nacionais que existirão por todo esse mundo, mas já serão muitas as dezenas que já terei ouvido. Embora, normalmente, seja a própria importância do país a que um hino pertence a influenciar a sua notoriedade, o hino a que me refiro não pertence a um país no sentido estrito da palavra, nem essa região é assim tão importante que o faça ser ouvido com frequência: trata-se do País de Gales.

Contudo, há 36 anos, quando a RTP começou a transmitir em directo os jogos do Torneio das Cinco Nações, comentados por um Cordeiro do Vale que, no princípio, devia perceber tanto de râguebi quanto eu (ou seja, nada), começou esta relação de simpatia entre mim, o râguebi, o País de Gales, a sua selecção de râguebi (uma maravilha – ainda hoje deixa saudades…) e o seu hino nacional, tocado e cantado sempre no início dos jogos.

O Hino, com o título indecifrável de Hen Wlad Fy Nhadau (literalmente: A Antiga Pátria de Meus Pais em galês, um idioma céltico), só goza de um estatuto oficioso porque, oficialmente, sendo o soberano de Gales o mesmo que o de Inglaterra, o Hino oficial é a conhecida saudação à monarca Isabel II (God Save The Queen – Deus Salve a Rainha). Não esquecendo esse facto, também há duas versões para a letra do Hen Wlad Fy Nhadau: em galês e uma outra em inglês (Land of My Fathers).

Embora só 1/5 da população galesa saiba falar galês (e toda ela fale inglês…), o Hino de Gales só se costuma cantar na sua versão galesa, como se de um ritual iniciático, a identificar os de dentro e os de fora, como aconteceu num infeliz mas muito cómico episódio de 1993, quando John Redwood, o então novo Secretário de Estado para o País de Gales, foi apanhado a apanhar bonés enquanto o Hino era tocado durante uma cerimónia oficial: o flagrante do assassinato da carreira de um verdadeiro turista político!...

Mas as suas versões mais arrepiantes são as que se escutam a milhares de vozes no Estádio de Cardiff* antes de um encontro do Torneio das (agora) Seis Nações. Deixa-me na disposição de, durante os próximos 80 minutos, e apenas para efeitos desportivos muito específicos, trair a minha pátria e transformar-me num galês até à alma. Que saudades daqueles nomes mágicos da minha infância: Gareth Edwards, John (JPR) Williams, Phil Bennett, Gerald Davies e o lendário Barry John...

* Já foi o Arms Park, agora é o Estádio do Milénio.