15 fevereiro 2007

DE REGRESSO AO PRINCÍPIO*?...

Nicholas Ostler começa o seu livro Empires of the Word de uma das formas mais marcantes que recordo num livro, ao descrever como teriam sido as conversações em 1519, na cidade do México, entre Hernán Cortés e o Imperador Moctezuma. Segundo ele, teriam sido precisos dois tradutores: uma nobre local, que fazia a tradução do Nahuatl nativo de Moctezuma para o Maya, e um frade espanhol, para traduzir o Maya para o Castelhano de Cortés. Acessoriamente, Ostler dá-nos uma mostra do seu virtuosismo, ao reproduzir um eventual discurso de Moctezuma, mas no Nahuatl original!

Contudo, como acontece em todas as reconstituições históricas do género, também aqui Ostler nada nos pode dizer quanto à pronúncia, à entoação, ou como soaria o hipotético discurso de Moctezuma. O exemplo clássico deste problema das investigações sobre as línguas do passado engloba-se no que se pode designar paradoxo de Cícero, o escritor de referência para o latim clássico. Havendo unanimidade entre os especialistas para o considerar a referência para a norma do latim como deve ser escrito correctamente, não há qualquer hipótese remota de consenso sobre a forma correcta como Cícero pronunciaria o seu próprio nome…

As investigações históricas sobre os idiomas antigos estão assim, pela sua natureza, limitadas à sua forma escrita. Naturalmente isso quer dizer que se estuda aquilo que foi produzido por quem sabia escrever, para quem sabia ler, ou seja, estamos a falar das elites da sociedade ou dos funcionários especializados delas dependentes. Embora não se saiba quais seriam as taxas de alfabetização no passado, nomeadamente na Antiguidade, creio que estará a cair em erro quem concluir que ela seria elevada, baseando-se na riqueza das inscrições de locais preservados como Pompeia ou as catacumbas romanas.

Suponho que a liberdade de escarafunchar (os dizeres eram gravados nas paredes) deve ser um fenómeno antigo, e intriga-me especular que conclusões poderia tirar sobre nós um estranho que estudasse as nossas pinturas murais, os escritos de portas de casa de banho e, sobretudo, de caixas de comentários de alguns blogues quando o poste é assim mais controverso… Ou seja, mesmo analfabetos, em ambientes urbanos mais evoluídos, os habitantes saberiam – em qualquer das épocas - uns rudimentos mínimos de leitura e escrita, assim como alguns que ainda conheci que sabiam desenhar o nome.

Em suma, por quase todo o tempo e em todas as civilizações que me lembro, quando existentes uma escrita e sua leitura, elas seriam fenómenos reservados às elites. Se calhar, na Europa, e comparativamente com a Idade Média, onde durante séculos, uma parte da elite era assumidamente analfabeta, houve um retrocesso nas taxas de alfabetização mas terá sido apenas com a Revolução Industrial que se vêm a evidenciar os benefícios da alfabetização extensiva de toda a população, dado o grau progressivamente mais sofisticado das tarefas a desempenhar. A escolarização das crianças é um fenómeno do Século XIX e a sua obrigatoriedade do Século XX.

Entretanto, o desenvolvimento tecnológico e o aparecimento e o desenvolvimento do áudio-visual parecem estar a tornar a empurrar a escrita e leitura de volta para um núcleo. A instrução e formação para tarefas não muito complexas podem ser hoje feitas recorrendo quase exclusivamente a meios áudio-visuais. E note-se como, em geral, as pessoas preferem esses meios: passa-se mais tempo a ver televisão do que a ler; veja-se o sucesso que registou na Internet o You Tube. O preço a pagar pelo recurso a esse meio é a simplificação da mensagem, o que transforma um programa de televisão tratando da filosofia de Platão num anacronismo…

É evidente que saber ler ainda tem agora as suas vantagens críticas: o manual de instruções do extintor de incêndios ainda não vem em cassete… mas note-se como lá estão as figuras para exemplificar!... Á primeira vista, o que parece de mais difícil substituição por tecnologias novas são as aprendizagens de assuntos envolvendo tópicos que exijam capacidades de abstracção. A pergunta provocadora final em conclusão de todo este poste será esta: Estarão as sociedades tendencialmente a voltar outra vez aos princípios, onde apenas as suas elites eram alfabetizadas?

* Este poste também podia intitular-se: Explicação erudita em excesso para justificar porque creio que a mudança de apresentação gráfica do jornal Público não lhes servirá de nada.

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