(Republicação de 2018, quando a Casa Branca era ocupada por Donald Trump...)
30 de Agosto de 1963. O mundo era informado que, a partir de então, havia um telefone ligando a Casa Branca em Washington e o Kremlin em Moscovo para que os respectivos ocupantes pudessem falar directamente um com o outro em caso de emergência. A emergência era a possibilidade séria de um conflito nuclear, como aquela que assustara todo o Mundo dez meses antes, em Outubro de 1962, aquela que ficou conhecida como a Crise dos Mísseis de Cuba. A história do telefone vermelho teve muito mais a ver com uma mensagem como se procurava tranquilizar as opiniões públicas do que com a realidade. A imagem acima, de uma capa de uma revista italiana da época, em que se vê os dois líderes (Kennedy e Khrushchev) no que seria uma teleconferência, tem muito mais a ver com a imaginação do desenhador do que com a realidade. O telefone vermelho da direita, em exposição num museu actualmente, é um apetrecho muito menos glamoroso, mas é dado como o verdadeiro telefone vermelho durante a presidência de Jimmy Carter, que só veio a ter lugar quinze anos depois do momento de ficção científica do jornal italiano.
Na verdade, ao princípio o tão famoso telefone... era um telex. E os terminais do telex - uma linha dedicada de 15.000 km que atravessava o Atlântico até Moscovo - nem estavam instalados na Casa Branca, mas no Pentágono. Aquilo que se pode apodar de conversa processava-se assim a um ritmo mais lento do que uma conversa (66 palavras por minuto). Aliás, simbólico da precariedade da conexão, se a mensagem inaugural de teste que Washington enviou há precisamente 55 anos para Moscovo chegou compreensível ao destino, a que foi enviada de Moscovo com essa mesma finalidade chegou ininteligível. Mas esta questão do telefone era uma daquelas em que a opinião pública e publicada não estava interessado na realidade. Um filme como Dr. Strangelove, estreado em 1964, mostra uma cena em que o presidente americano conversa directamente ao telefone com o secretário-geral soviético através do famoso telefone vermelho (embora o filme seja a preto e branco... - a cena aparece no último vídeo deste poste), sem as minudências de a complicar com a presença de um indispensável tradutor (a alternativa seria que o homem do Kremlin tivesse uma tal fluência em inglês que o dispensasse...).
Na realidade, os russos escreviam em russo, os americanos em inglês, e o processo de tradução contribuía para a morosidade da conversa. Mesmo assim, foi um enorme avanço em relação à situação que existia durante a Crise dos Mísseis, quando as mensagens de Kennedy para Khrushchev e vice-versa demoravam até doze horas a chegar ao destinatário e sem que este possuísse um processo de se certificar da identidade do autor da mensagem. O primeiro presidente a utilizar o telefone vermelho foi Lyndon Johnson em Junho de 1967, por ocasião da Guerra dos Seis Dias, prevenindo os soviéticos das suas intenções de deslocar unidades aéreas e navais para o Mediterrâneo oriental. Para contraste e significativo de como os soviéticos avaliavam a Invasão da Checoslováquia que ocorreu em Agosto de 1968, Brejnev preferiu encarregar o embaixador soviético, Anatoly Dobrynin, de transmitir pessoalmente a Johnson as explicações sobre as intenções soviéticas, em vez de o fazer pelo telefone. A partir de Setembro de 1971 as comunicações passaram-se a fazer oralmente e via satélite e só aí é que a expressão telefone vermelho passou a ter verdadeiro sentido.
Em 1983 o sistema foi novamente melhorado, passando a possibilitar o envio de faxes. Por essa altura, a ideia do telefone vermelho como elemento de dissuasão consolidara-se no imaginário norte-americano. Numa mensagem eleitoral de 1984, o candidato democrata Walter Mondale (que virá a ser arrasado por Ronald Reagan nessas eleições) chama a atenção para o facto de que a SDI, que a administração Reagan então se propunha promover, iria tornar o famoso telefone num adereço inútil. A Guerra das Estrelas acabou por não se concretizar e a Guerra Fria acabou por chegar ao fim. Mas não foi isso, nem os desenvolvimentos tecnológicos da internet da década de 90 que puseram fim à conexão, agora dos Estados Unidos com a Rússia. Já no século XXI, em 2008, tornou-se operacional um novo sistema de fibra óptica hiperseguro que contempla mensagens de voz e e-mails. O telefone vermelho permanece mais do que um utilitário, uma referência simbólica. A propósito da campanha eleitoral presidencial que teve lugar nesse ano, a propaganda para denegrir a candidata republicana à vice-presidência (Sarah Palin) passa por a exibir na sala oval da Casa Branca acompanhada do famoso telefone, numa sugestão subtil da sua incapacidade para lidar com situações delicadas.
Nos dias que correm, com a difusão de Twitter e sobretudo com um presidente norte-americano que recorre abundantemente a ele para tornar conhecidas as suas opiniões, o sistema parece fatalmente condenado a desaparecer. Mas essa é a parte da evolução do hardware. Porque quanto à evolução do software e quanto à delicadeza das situações internacionais e como já aqui mencionei no blogue, nada do que foi configurado de início, há 60 anos, nem mesmo a imaginação mais delirante dos argumentistas de Dr. Strangelove (os mesmos que criaram a cena delirante abaixo), conseguiu antecipar o cenário em que a pessoa mais chanfrada da equipa que lida com as situações delicadas é o seu próprio chefe, o presidente dos Estados Unidos... É que, a ser assim, o telefone vermelho torna-se um dispositivo que, em vez de os refrear, pode vir a acelerar conflitos!
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