08 junho 2017

O FUNCIONÁRIO DO GRANDE TERROR: NIKOLAI YEZHOV

Creio que foi o próprio Howard Carter, o arqueólogo que descobriu o túmulo de Tutankhamon, que depois sintetizou os acontecimentos mais importantes do reinado daquele monarca num prosaico morreu e foi enterrado. De uma forma parecida, quase anedótica, há muitas outras figuras da História que acabam sendo mais recordadas por factos subsequentes à sua vida, e para os quais não contribuíram, do que propriamente por aquilo que fizeram. Nikolai Yezhov, por exemplo, emprestou o seu nome a um dos períodos mais negros da história da Rússia (conhecido por a Grande Purga ou o Grande Terror ou ainda a Yezhovshchina), e no entanto a imagem mais conhecida dele é um jogo de fotografias em que, depois de um retoque do socialismo marxista-leninista mais puro, ele desaparece da companhia de Estaline e Molotov. É demasiado caricato para tanto horror. A história daquela mortandade selectiva já tem sido tentativamente contada, uma das últimas de que dei conta foram os Sussurros de Orlando Figes (2007), quase 800 páginas narradas numa perspectiva das vítimas, não apenas os executados mas também as respectivas famílias. Mas, como acontece também com as obras que têm por objecto o Holocausto, há nestes livros que têm por tópico milhões de vítimas, uma banalização do mal e não no sentido originalmente empregue por Hannah Arendt. Nunca mais me esqueço que, ao ler O Livro Negro do Comunismo (1999), quando se chega ao Camboja e a Pol Pot, e porque já se contaram tantos milhões de mortos nas páginas precedentes, aquilo são trocos. Esta biografia de Nikolai Yezhov de Alexei Pavliukov, que já foi escrita em 2007 mas que esperou dez anos para ser traduzida recentemente para francês (editada em Abril deste ano), é bastante diferente disso. Incomodativamente diferente. A narrativa entra pelos anos insanos de 1936 a 1938 e descreve os processos e as confissões e as condenações sem contemplações pelo leitor, sem intervalos em que o autor se distancia do que narra, para qualificar o carácter delirante das acusações, para comentar os processos brutais como se obtinham as confissões ou a severidade das sanções aplicáveis - havia quotas a cumprir no número de condenados à morte! Em Platoon, o protagonista tem uma passagem em que se confessa, «Alguém definiu o inferno como a impossibilidade da razão. É o que este lugar parece. O Inferno.» Descrevendo ali a Guerra do Vietname, o argumentista Oliver Stone teve a delicadeza de nos explicar em que consistia o inferno em off. Alexei Pavliukov não faz nada disso com Nikolai Yezhov e o Inferno que o NKVD criou durante o Grande Terror. Deixa-se ir, narrando acriticamente, como se aquelas conspirações em que velhos bolcheviques se confessavam espiões ao serviço de mais do que uma potência inimiga desde tempos imemoriais fizessem qualquer sentido, a ponto de perguntarmo-nos se aquilo que temos entre mãos é uma obra de não ficção ou de ficção. E depois há o desmoronar das convicções. Lembro-me de, num documentário sobre Auschwitz, um sobrevivente ter confessado que, perante tal horror, deixara de acreditar em Deus. Se Ele verdadeiramente existisse não teria tolerado que aquilo estivesse a acontecer ao Seu povo. Aqui é o desmoronar de uma outra Fé, a na Ética e na Verdade a funcionarem como cimento primordial na coesão das sociedades: a esmagadora maioria dos acusados acusaram e acusaram-se de tudo, provando como qualquer interrogatório pode colocar os cidadãos comuns a dizerem seja o que for. Mesmo a terminar, Pavliukov entrega a síntese do que foi o papel histórico de Nicolai Yezhov a um autor dissidente ucraniano chamado Mikhail Voslenski, que escreveu as linhas abaixo no seu livro A Nomenclatura e os privilegiados na URSS (1970):

Yezhov (...) era um burocrata de topo vulgaríssimo que não se diferenciava dos outros a não ser pelo zelo particular como cumpria as ordens que recebesse de cima. Se o departamento industrial do comité central recebesse a ordem para organizar a construção de fábricas, aí Yezhov organizava. Se o NKVD recebesse a ordem para matar e torturar, Yezhov (...) executava. Todo o funcionário do período estalinista teria feito a mesma coisa se estivesse estado no seu lugar. Isto não quer dizer que é injusto considerar Yezhov o carrasco mais sanguinário de toda a história da Rússia. O que isto quer dizer é que qualquer que fosse o outro dirigente nomeado por Estaline para aquele cargo teria sido um carrasco semelhante. Yezhov não foi produzido no Inferno, foi um produto da nomenklatura.

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