Em continuação de uma primeira parte, trata-se da tradução integral do artigo abaixo, que aparece hoje publicado na The Economist, mas com uns (acrescentos meus).
O presidente da América deu-se tão bem com o rei da Arábia Saudita que tornou seus os objectivos da política externa do monarca. A Arábia Saudita sunita detesta o Irão xiita que ela considera o seu maior rival. E Donald Trump pensa o mesmo. Aparentemente ele passou a compartilhar a perspectiva saudita que o grande financiador do terrorismo no Médio Oriente é o pequeno Emirato do Qatar. Deu-lhe para aplaudir quando, a 5 de Junho, a Arábia Saudita, o Bahrein e os Emiratos Árabes romperam as relações diplomáticas com o Qatar conjuntamente com as ligações aéreas, marítimas e terrestres. Os restantes estados do Golfo deram duas semanas para os cidadãos qataris saírem. Mais ridículo, os Emiratos declararam que quem publicasse opiniões favoráveis ao Qatar estaria sujeito a penas de prisão até 15 anos. E Trump tweetou: “Talvez isto seja o princípio do fim do horror do terrorismo!”
Apesar de pequeno, o Qatar é importante. É o maior produtor mundial de gás natural liquefeito e uma grande plataforma giratória do tráfego aéreo. É também o local da sede da Al Jazeera, o que de mais próximo haverá de uma televisão livre no mundo árabe (não se pode é criticar a monarquia qatari). Mantém boas relações com o Irão, com o qual explora conjuntamente um depósito de gás natural. Também se mostra apoiante da Irmandade Muçulmana, a face mais popular do Islão político (e que não goza assim de tanta popularidade noutros países muçulmanos). E tudo isso faz com que a Arábia Saudita os deteste. O regime saudita já tentou no passado vergar o Qatar à sua vontade mas falhou. O Qatar possui uma importante base aérea norte-americana no seu território que, até agora, lhes transmitia uma sensação de segurança. Mas com Donald Trump na Casa Branca isso deixou de ser assim tão linear.
(A The Economist não fala disso, mas em Israel também não se gosta particularmente destas liberalidades e independências do Qatar. Um velho documento (2010) catado e publicado pela WikiLeaks punha o então director do Mossad (serviços secretos israelitas) a queixar-se junto de um seu interlocutor norte-americano de que o Qatar andava a “aborrecer toda a gente”, nomeadamente por causa das emissões da Al Jazeera. O israelita ia ao ponto de evocar a hipótese de que essas emissões desencadeassem a próxima guerra na região, porque os restantes protagonistas da região consideravam o monarca qatari pessoalmente responsável pelo conteúdo das emissões. A mensagem era acompanhada de uma sugestão para que os Estados Unidos retirassem a sua base do Qatar.)
Não foram fornecidas razões concretas para votar o Qatar ao ostracismo. Existem uma data de rumores de que qataris ricos financiam o terrorismo. A acusação, que também se aplica a sauditas ricos, não em sido concretizada, embora o Financial Times tenha publicado que o Qatar pagou mil milhões de dólares ao Irão e à Al-Qaeda para a libertação de membros da sua família real que haviam sido feitos reféns durante uma daquelas caçadas tradicionais com falcões no Iraque. E mil milhões dão para comprar uma grande quantidade de explosivos.
A disputa acabou por dividir o Conselho de Cooperação do Golfo, uma organização que promove uma certa estabilidade numa região onde ela é escassa. E a consequência é que ela pode levar o Qatar e outros dois membros da organização, Kuwait e Omã, que agora se recusaram a associar aos sauditas, a estreitaram mais os seus laços com o Irão. Os ânimos poderão arrefecer em breve mas, para alguns observadores, o maior receio é que o preço a pagar pelo recuo saudita será o açaimar do jornalismo da Al Jazeera.
O apoio de Donald Trump à iniciativa saudita também prejudicou à credibilidade americana. Deixou a impressão que, com ele, a superpotência pode deixar cair os seus aliados depois de uma mera conversa com os seus inimigos. “Durante a minha recente viagem pelo Médio Oriente afirmei que não pode continuar a haver financiamentos à Ideologia Radical. Os líderes apontaram para o Qatar – vejam!” foi o que Donald Trump tweetou a 6 de Junho. O que resta de elementos tradicionalistas na política externa da administração Trump apressou-se a acorrer no dia seguinte a tentar compor o desastre, quando o presidente ofereceu os seus préstimos como mediador...
Mas não é só aí. O presidente egípcio, Abdel-Fattah al-Sisi, também ficou com a impressão que o presidente Trump é um líder que o irá permitir lidar com os seus inimigos com outra autonomia. A 23 de Maio, dois dias depois dos dois se terem encontrado e elogiado em Riade, o regime egípcio prendeu um opositor por causa de um gesto obsceno que ele alegadamente terá feito num comício que se dera há cinco meses. E em 25 de Maio o governo bloqueou o acesso a vários websites de conotação liberal, incluindo o Mada Masr, um jornal on-line local e os sites da Al Jazeera ou o Huffpost em arábe. No Bahrein, as autoridades abateram 5 pessoas e prenderam outras 286 no seguimento de um raid a casa de um clérigo xiita. No seguimento disso, o principal partido da oposição laica foi dissolvido. Noutros tempos, os Estados Unidos teriam manifestado o seu desagrado por tudo isto. Agora não – e isso é receita certa para um Médio Oriente muito mais turbulento.
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