Numa instituição intemporal como o Colégio Militar as venerandas figuras têm de perder as peneiras porque todas elas têm os pés de barro conferidos por alguém que as conheceu antes, ainda nos tempos de iniciação. É evidente que essas historietas dos seus tempos de maçarico, como a que é descrita acima, não prejudicarão o estatuto dos visados, antes o reforçam porque os humanizam. O Marinho do ano lectivo de 1973/74 acima descrito pelo António Miguel Miranda, é um moço acabado de chegar lá de Nisa e, se o veterano chefe de turma do 3ºE (que, na hipótese mais convencional, teria uma antiguidade de 4 anos de Colégio Militar) o manda tirar a peida da frente (numa época triásica em que as turmas seguiam sempre formadas entre o corpo de alunos e os claustros), é porque o Marinho se comporta como aqueles labregos recém chegados à cidade que, à custa de os admirar, não sabem ainda onde se colocar para evitarem serem atropelados pelos automóveis que circulam. Este Marinho vai progredir rapidamente em vivacidade nos anos que se seguem (década de 70), cumprindo o seu serviço militar no Colégio Militar com a patente/especialidade de soldado-maqueiro (famosos os seus tratamentos de sais de frutos: foi uma perda para a Medicina não ter prosseguido…), ascendendo em prestígio na equipa de futebol dos outros (a que tradicionalmente defrontava a dos alunos) muito por causa da sua actividade de semi-amador no Nisa e Benfica ou assumindo as suas simpatias políticas (muito comum naquela época de PREC) por uma formação da esquerda radical, no caso os hoje esquecidíssimos GDUPs.
Mas é o Marinho de antes disso tudo, o tal moço inseguro de Nisa que (ainda) não sabia tirar a peida da frente, que interessa para a nossa história. A quem um certo dia, vicissitudes que desconheço entregaram a responsabilidade de um geral – abrir e fechar as salas de aula, levar e trazer os livros de ponto, o abastecimento do giz, etc. Entre as salas desse geral (parcialmente desactivado) havia uma que o professor Matos Guita – e aqui entra o segundo protagonista da nossa história – havia conseguido dedicar exclusivamente ao ensino de História. Entrado para o Colégio em 1968, Matos Guita pertencia a uma nova geração de professores que davam importância aos meios complementares de exposição e isso implicava retroprojectores e, por causa da tecnologia da época, salas escurecidas. Nada que não se conseguisse naturalmente durante o primeiro tempo da manhã, o das 08H00 durante aqueles dias amenos de Inverno, mas difícil de repetir noutras circunstâncias. Adiante. Tanta inovação gerava um efeito colateral nos alunos mas, porque irrelevante para a nossa história, deixo a sua explicação para o Pedro Freitas num outro blogue. O que importa é que à hora aprazada lá se apresentava a turma formada à porta da sala com o chefe de turma a mandar sentido e a pedir licença ao Matos Guita para poder mandar entrar: frente marche! Uma secção de cada vez: outra cena de tempos em que os dinossauros dominavam a Terra. Mas antes o Marinho tinha que cumprir a sua parte: abrir a porta…
Tão compenetrado quanto nervoso a coisa começou por correr mal para o Marinho: enganou-se na chave. Depois piorou: uma das outras chaves, também enganada, não só não rodava na fechadura como também já não saía... Não é preciso qualquer esforço para imaginar os sorrisos sardónicos que se começaram a desenhar nas caras da malta: queres ver que não vamos ter aula? Em contrapartida, para o rigor no acompanhar da história ajuda ter conhecido pessoalmente Matos Guita: à medida que a atrapalhação do Marinho se aprofundava, o professor não era pessoa que achasse que valia a pena camuflar a sua irritação. As angústias do Marinho que se debatia com a chave, com a fechadura, com a porta, estavam divididas entre incorrer na fúria (mais do que visível) do professor e as suas preocupações com os danos no material que lhe fora confiado. Os minutos escoaram-se diante de uma formatura disciplinadamente zombeteira até Matos Guita (que era corpulento) não se conter e em algumas passadas aproximar-se da porta, mandar o Marinho afastar-se, para, ao melhor jeito de um policial norte-americano (mas recordo que sem grande balanço…), rebentar não com uma mas logo com as duas portas da sala. Cada uma batendo estrondosamente na parede adjacente. Pouco magnânimo, ainda o Marinho olhava com ar triste para as lascas espalhadas pelo chão numa lamúria muda, quando Matos Guita rematou com aquela sua modulação arrastada típica que a irritação tornava quase ininteligível: o shour agoraaaa veja lá se arranja isto, não ééé?…
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