Como a Itália, também o minúsculo São Marino teve o seu partido fascista que o governou de 1923 até 1943 (acima). Mas depois da Segunda Guerra Mundial, provavelmente devido à sua insignificância (12.000 habitantes) e ao contrário do que acontecia com o vizinho, os Estados Unidos toleraram que o país pudesse ser governado por um governo de esquerda onde até preponderavam os comunistas. Essa maioria de comunistas e socialistas de 1945 foi sendo renovada em sucessivas eleições livres (1949, 1951, 1955), até que em 1957 as tensões da Guerra-Fria desfizeram este discreto convívio entre a presença de comunistas na área do poder e a realização de eleições razoavelmente livres. O acontecimento concreto que o terá desencadeado foi a repressão soviética na Hungria em Outubro/Novembro de 1956, que deixou uma profunda marca negativa nos socialistas italianos do PSI e, por arrasto, também nos socialistas samarineses. Por causa disso, ou alegando isso, em Abril de 1957 5 dos 16 conselheiros socialistas locais abandonaram o partido e a coligação para se juntarem ao Partido Socialista Democrático Independente (PSDIS), uma dissidência socialista relutante a uma colaboração tão estreita com os comunistas. Mas, como o governo possuía uma maioria de 35 lugares em 60 no Conselho (legislativo), esse abandono ocasionou uma situação de impasse num empate 30-30 entre apoiantes governamentais e oposicionistas. A esta manobra seguiram-se meses de outras imaginativas manobras políticas: os dois capitães-regentes que haviam sido eleitos pelo Conselho para governar São Marino durante esse semestre (até ao princípio do mês de Outubro) evitaram cuidadosamente reconvocá-lo para que não se evidenciasse o impasse. Mas o expediente não podia ser prolongado para além da reunião de 19 de Setembro (completar-se-iam ontem 57 anos) em que se elegeriam obrigatoriamente os capitães-generais para o semestre seguinte.
Mesmo na véspera, numa daquelas manobras que dão à política aquele reconhecível travo sórdido, um dos 19 conselheiros comunistas tornou-se subitamente independente, dando a maioria à oposição... O contra-ataque também nada teve de elegante: como comunistas e socialistas obrigavam os seus conselheiros a entregar cartas de renúncia ao cargo¹ com a data em branco, no dia seguinte e ainda antes da hora marcada para a reunião do Conselho foram apresentadas 34 cartas de demissão (incluindo as dos conselheiros dissidentes...), deixando o órgão sem quórum. Estava desencadeada uma enorme crise política, não muito distinta das traulitadas que se trocam em tantas das nossas autarquias, mas que era para levar mais a sério porque se tratava de um país independente ao mesmo tempo que não era para levar assim tão a sério porque se tratava apenas de um país de 15.000 pessoas e 61 km² (com isso comparável em população e área ao concelho de Amares no Minho). A crise só poderia ser resolvida com a realização de novas eleições que os capitães-generais aprazaram para dali a mês e meio (3 de Novembro). Como é canónico nestas circunstâncias, a sua actividade limitar-se-ia aos assuntos de gestão corrente. Mas antes da data das eleições pôr-se-ia o problema da sua sucessão, considerando que o seu mandato legal caducava em 1 de Outubro. A Rovereta que dá o nome à crise é uma localidade na fronteira de São Marino com a Itália onde existia uma fábrica desactivada na qual a 1 de Outubro de 1957 se reuniram os conselheiros da oposição que resolveram, diante do vácuo legal, constituir um governo provisório de São Marino com o apoio descarado do governo italiano – havia um destacamento de carabineiros nos terrenos contíguos à fábrica, embora do outro lado da fronteira.
Os dias que se seguiram foram de um crescendo de tensão (conforme se pode ver no vídeo acima) mas de desfecho previsível (ao contrário do que os autores do vídeo mais abaixo quererão agora sugerir). Quando se extinguiu a legitimidade formal para os capitães-regentes exercerem o poder com o apoio da anterior maioria de esquerda, os dois só poderiam continuar a fazê-lo evocando uma situação de excepção. Mas, se o fizessem, seriam as próprias circunstâncias excepcionais evocadas que abririam a porta a uma intervenção italiana a solicitação da facção contrária. Apesar de alguns espíritos mais exaltados e do contrabando de armas na previsão de uma próxima guerra civil samarinesa (que também teria provocado a pronta intervenção italiana), depois de intensas negociações que demoraram um pouco mais de uma semana, a 11 de Outubro, a regência que deixara de o ser, reconheceu os poderes do governo provisório que entretanto também já fora reconhecido pelo governo italiano. A 27 de Outubro o Conselho elegeu dois novos capitães-regentes. As eleições marcadas para Novembro afinal não tiveram lugar, o ciclo eleitoral de 4 anos cumpriu-se até ao fim. Nas eleições de Setembro de 1959 a nova maioria de direita foi reconduzida. Mas a preponderância indiscutível da democracia-cristã em São Marino (à semelhança do que acontecia em Itália) só veio a ficar consolidada a partir das eleições seguintes em 1964, e por uma causa que nem os memorialistas militantes autores do vídeo abaixo estarão interessados em recordar: o alargamento do voto às mulheres que duplicou o eleitorado, mas também o tornou mais conservador. Não se pode esquecer que todos estes episódios aqui narrados se desenrolaram numa época em que as mulheres samarinesas não possuíam quaisquer direitos políticos e não será hoje muito curial reconhecer que alguma parte da força eleitoral da esquerda de então decorria dessa condição feminina.
¹ A propósito: alguém ainda se lembra de uma carta semelhante de José Magalhães, exibida por Álvaro Cunhal em frente às câmaras de televisão em 1990, quando aquele abandonou o PCP?
Excelente, como é hábito.
ResponderEliminarGosto dos epítetos ingleses: Teacup Republic, Pocket State