11 agosto 2007

A FRANÇA DOS ANOS DE CHUMBO (1940-1944)

aqui manifestei o meu interesse pelo período da França de Vichy (1940-44) sob o regime de ocupação alemã. Por vezes, aparecem postes pela blogosfera, recordando episódios desses tempos, como é o caso deste de O Tempo das Cerejas, evocando a captura e deportação de 7.000 judeus em Julho de 1942, o que considero uma tarefa que é sempre de saudar porque se as merdas acontecem, estas merdas aconteceram e é bom que as lembremos para que não se repitam.

Mas, o que na minha opinião torna o período mais atraente, é a ausência de um padrão que consiga conferir ao conjunto daquela sociedade a coerência que as narrativas históricas sempre precisam para se organizar. Desde a decisão do Armistício de Junho de 1940, firmado entre a Alemanha vitoriosa e a França derrotada, que as clivagens que atravessaram a sociedade francesa o fizeram de uma forma aparentemente anárquica, separando o que parecia próximo e aliando o que parecia antagónico.

A própria decisão favorável à assinatura de um Armistício agrupava os comunistas franceses, com o seu secretário-geral Maurice Thorez (1900-1964) exilado em Moscovo e dado como desertor do exército, com generais de meios católicos conservadores como Philippe Pétain (1856-1951) ou Maxime Weygand (1867-1965). Mas tratavam-se das mesmas origens sociais de Charles de Gaulle (1890-1970) ou de Philippe de Hautecloque (Leclerc) (1902-1947) que em Londres haviam de vir a constituir a França Livre.

Entre os meios políticos, havia figuras destacadas dentro da mesma família política que tinham opiniões diametralmente opostas, como entre os radicais, onde havia quem defendesse o armistício como Camille Chautemps (1885-1963), e quem se lhe opusesse como Édouard Herriot (1872-1957). Entre os tecnocratas, o mesmo se podia dizer de Jean Monnet (1888-1979), que era contra, e de Yves Bouthillier (1901-1977), que era a favor. A verdade é que o Armistício acabou mesmo por ser assinado em 22 de Junho de 1940...

O que não encerrou as enormes ambiguidades espalhadas pela sociedade francesa. Um livro sobre a época* começa por nos apresentar textos de pessoas que não se enquadram na iconografia que se costuma fazer daquela época: há um apoiante de Vichy anglófilo e que detesta os alemães, um membro da resistência que é anti-semita, outro membro da resistência pró-Vichy e um apoiante de Vichy que protege judeus… E que dizer de um partido como o RNP**, de Marcel Déat (1894-1955), que se assumia de inspiração socialista e europeia e destinado a proteger a raça?…

Mais do que isso, as ambiguidades são ainda ampliadas pelos percursos normalmente sinuosos dos intervenientes ao longo dos 4 anos de ocupação, de que o melhor exemplo foi o do ex-presidente François Miterrand (1916-1996), que passou de próximo do regime de Vichy (1941-43) para a categoria de resistente (1943-44) perseguido pela Gestapo… Note-se que muitos dos que foram posteriormente condenados como colaboracionistas também foram vítimas da Gestapo (como Yves Bouthillier)…
Nem mesmo o partido comunista francês (PCF) pode, institucionalmente, contornar a realidade que passou o primeiro ano de ocupação (Junho 1940-Junho 1941), de acordo com as instruções recebidas de Moscovo, a tentar adaptar-se a um modo de vida com as autoridades alemãs enquanto se tentava evadir da repressão sobre ele exercida pelo regime de Vichy. Eloquente a esse respeito, o facto de ter sido solicitado às autoridades alemãs permissão para que se pudesse voltar a publicar legalmente o L´Humanité***…

É preciso perceber que existia todo este ambiente em que a moral é muito relativa a envolver as operações do Verão de 1942 que levaram à captura dos milhares de judeus que foram arrebanhados para o velódromo de Inverno de Paris. A esmagadora maioria, senão mesmo a totalidade, dos judeus capturados naquela operação eram apátridas, que haviam chegado a Paris depois de andarem fugidos à frente da expansão nazi pela Europa (Áustria, Checoslováquia, Polónia…), até esta ali os apanhar…

A perspectiva de considerar os judeus a capturar como estrangeiros talvez explique a disponibilidade das polícias francesas: 9.000 participantes na operação! E é dos acontecimentos que desconfio que não tenha sido sentido em todo o seu significado na época em que ocorreu. O problema só terá sido percebido depois, ao compreender-se o precedente que se criara e a demonstração de eficiência que as policias e forças auxiliares francesas tinham dado mostras na resolução do problema judeu.

Temos o privilégio de ver do futuro as implicações daquilo que pareciam ser operações sem significado… E isso dá-nos a obrigação de tentar escrutinar outras operações a que também há quem goste de não lhes atribuir grande significado – como Guantánamo… É que Guantánamo também envolve sobretudo estrangeiros e também foi explicado como uma medida episódica e excepcional (como o episódio de Julho de 1942 o foi...) da luta contra o terrorismo. E a excepcionalidade continua há anos...

* France The Dark Years 1940-1944, de Julian Jackson.
** Rassemblement national populaire (Agrupamento Nacional Popular)
*** Órgão oficial do PCF. Os alemães recusaram depois de consultarem Vichy.

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