27 agosto 2007

ROLLERBALL 2

(em continuação)

Vale a pena recomeçar o assunto da admissibilidade de limites morais em desportos que se transformaram em espectáculos, lembrando um deles, montado a 24 de Setembro de 1988 em Seul, na Coreia, por ocasião da final dos 100 metros masculinos, no âmbito das competições de atletismo dos Jogos Olímpicos que ali se realizavam. Perante uma assistência de muitos milhões (eu) o vencedor da prova foi o senhor que se destaca na fotografia de baixo (também se pode ver o vídeo), um atleta canadiano de nome Ben Johnson.
Três dias depois, desmentindo o testemunho presencial desses milhões, o vencedor passara a ser outro (o norte-americano Carl Lewis), porque o laboratório de análises encontrara uma substância dopante (esteróides anabolizantes) na urina de Johnson e ele fora desclassificado. O paradoxo é que, como se veio a descobrir, Johnson se deixara apanhar no controlo por causa da imprudência das suas ambições: ele queria ganhar o título olímpico a todo o custo, enquanto as circunstâncias aconselhavam que desistisse.

O programa de preparação de Ben Johnson para aqueles jogos havia sido preparado com meses de antecedência, incluindo a ingestão dos tais esteróides, cuja administração fora programada para que os seus vestígios já tivessem desaparecido do organismo por altura dos controlos da competição. Simplesmente, Johnson apanhara uma violenta gripe no princípio desse ano e, tendo de parar de treinar por algumas semanas, atrasou todo o programa de treinos, assim como o da administração dos tais cocktails maravilha
A prudência mandava que Johnson desistisse de participar nas olimpíadas invocando uma conveniente lesão. Resolveu correr o risco. Não vale a pena ter pena dele, mas vale a pena inserir o seu gesto num contexto mais amplo: é que entre os atletas que se classificaram nos cinco primeiros lugares naquela corrida, quatro tiveram incidentes com a ingestão de substâncias proibidas durante as suas carreiras*. Hoje sabe-se que o novo vencedor, Lewis, também tinha testado positivo em testes efectuados nesse mesmo ano

Mas o caso fora abafado… Nessas mesmas olimpíadas, mas no sector feminino, houve uma atleta norte-americana (Florence Griffith-Joyner) que cometeu a proeza de vencer as corridas tanto dos 100 como dos 200 metros com enormes avanços sobre as suas rivais (abaixo). As marcas que então estabeleceu nunca mais foram sequer aproximadas nos 19 anos que decorreram depois disso… Contudo, apesar das controvérsias de quem se recusava a aceitar tais resultados sem reservas, nada de anormal foi detectado no laboratório. Mas isso não inibia as más línguas de considerar que ao menos Florence não se constipara...
Uma das vantagens do atletismo é a de ser uma modalidade com marcas e, por isso, com memória. As marcas podem permitir a comparação entre atletas de gerações diferentes. Florence continua imbatida desde 1988... Noutras modalidades, como o ciclismo, as memórias são as de antigos campeões, como as do francês Jacques Anquetil (1934-1987, mais abaixo), que ganhou a Volta a França por cinco vezes**, e que teve um famoso comentário na televisão, onde observou que só um ingénuo é que acreditaria que era possível fazer correr uma etapa de Bordéus a Paris, à custa de água…

Os escândalos consecutivos da Volta a França deste ano, para além das suspeitas que ficaram por resolver, mostram como no ciclismo tudo parece permanecer essencialmente na mesma como era há quarenta anos atrás. E o mesmo se pode dizer do atletismo, a respeito das perspectivas para os actuais Campeonatos do Mundo que se estão a disputar em Osaca, no Japão. Pelo contrário, o que parece bizarro são as baixas taxas de incidentes de dopagem noutras modalidades-espectáculo como o futebol, o ténis ou o basquetebol…
Creio ser desnecessário, mas poder-se-ia continuar a enumerar os múltiplos casos que fundamentam a impressão geral que as denúncias dos casos de doping desportivo, especialmente nestes desportos que se transformaram em enormes espectáculos e imponentes negócios apenas correspondem à pequena parcela emersa de um enorme iceberg em que as denúncias e a repressão parecem apenas interessar na medida em que o gesto possa melhorar a imagem da modalidade junto da opinião pública.

E poucos serão os que acreditam na sinceridade do princípio mais invocado para justificar a despistagem da ingestão de substâncias proibidas que é o da defesa da saúde do atleta. E manter essa ficção, quando se atingem os montantes que se atingem com os espectáculos montados à volta de certas actividades desportivas – futebol, basquetebol, atletismo, ciclismo, etc. – não é simplesmente credível. Como outrora se pelejava pela ficção do desportista amador***, hoje ainda se tenta fazer crer no desportista impoluto. No Manchester United, haverá alguém disposto a sacrificar o rendimento desportivo de Cristiano Ronaldo por causa da sua qualidade de vida quando ele tiver 50 anos?
Até pode ser que haja alguns, ao princípio, mas se olharmos para os protagonistas em volta deste enorme negócio do entretenimento das multidões (o tal que no filme é representado pelo Rollerball), percebemos como os atletas têm que se vergar às vontades de quem faz as coisas acontecerem. Sobre a moral destes últimos (e estou a pensar em alguns nomes nacionais, gente recomendável…) suponho que nem vale a pena falar… O que vale a pena informar é que a prática é tão antiga que já os gladiadores eram tutelados pelo seu lanista… A profissão de Pinto da Costa não será tão antiga como outras, mas é muito antiga, mesmo assim.

* Ben Johnson do Canadá, Carl Lewis e Dennis Mitchell dos Estados Unidos e Linford Christie da Grã-Bretanha. A excepção (que vale a pena destacar) foi o norte-americano Calvin Smith (4º classificado).
** 1957 e 1961 a 1964.
*** Até que as exigências dos países ocidentais na Guerra-Fria a fizeram desaparecer: os atletas do Leste eram todos amadores; só treinavam, mas tinham outras profissões oficiais (polícia, bombeiro, etc.), sobre as quais mostravam não saber nada.

1 comentário:

  1. Diria mesmo que essa sim ( e não a outra)é a mais antiga profissão do mundo.
    Da outra, só restam os filhos...

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