O interessante boletim de voto que encima este poste foi o que os austríacos tiveram que preencher quando foram consultados sobre qual era a sua opinião quanto à adesão da Áustria ao resto da Alemanha (o Reich alemão, dirigido por Adolf Hitler) e geralmente designado pela sua expressão no idioma original: Anschluss. O acto eleitoral teve lugar em Março de 1938 e só de olhar para o boletim, mesmo o leitor que não perceba patavina de alemão, não teria quaisquer dúvidas sobre o que se pretenderia dele… O acto em si já estava concretizado, por acção dos responsáveis alemães e demissão dos franceses, italianos e britânicos.
Claro que os tempos eram outros, e permitiam apresentar resultados eleitorais que são escabrosos pelos nossos padrões da actualidade: aprovações numa percentagem superior aos noventa e nove por cento (99,73%, para aqueles que estiverem mais interessados...), que são valores que já só Kim Jong-Il não tem vergonha de apresentar. Mas, com outros números e mesmo com alguma emoção quanto ao desfecho final, o que parece ter regressado à Europa é a prática de recorrer aos actos eleitorais apenas como gesto legitimador, à posteriori, de decisões superiormente tomadas de antemão.
O embaraço e subsequente impasse causado pelos resultados das consultas populares ao Tratado Constitucional promovidas em França e nos Países Baixos em Maio e Junho de 2005, foi demonstrativo de como as rejeições verificadas nunca haviam sido seriamente contempladas num qualquer plano de contingência anexo ao plano geral de aprovação do referido Tratado por todos os países membros da União. O que, por sua vez, acabou por chamar a atenção para o quão pouco, intrinsecamente, as opiniões populares eram levadas em conta no tal processo de construção europeia.
Quando organizados e repetidos consecutivamente até que os resultados venham a ser os convenientes, os referendos ridicularizam-se, conjuntamente com os seus protagonistas. Veja-se o que aconteceu na Grécia, cujo povo votou em referendo pela monarquia em 1920, pela república em 1924, novamente pela monarquia em 1935 (depois de um golpe de estado…), autorizou o retorno do rei do exílio em 1946, e optou finalmente pela república em dois referendos quase consecutivos (porém sob regimes distintos…) em 1973 e 74… Dá para imaginar qual seria o prestígio que a monarquia teria para os gregos, ao fim daqueles 50 anos.
Quanto à aprovação do Tratado Constitucional propriamente dito, ele já foi aprovado popularmente em Espanha e no Luxemburgo e pelos representantes da Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Eslovénia, Estónia, Grécia, Hungria, Itália, Letónia, Lituânia, Malta e Roménia. Está para aprovação pelos parlamentos da Alemanha, Eslováquia e Finlândia. A França e os Países Baixos rejeitaram-no. Quanto aos outros sete: Checos e Suecos anunciaram que não pretendem realizar referendos, mas os outros cinco (Dinamarca, Irlanda, Polónia, Portugal e Reino Unido) sim. É curiosa a coincidência que junta os três países da periferia atlântica (Irlanda, Portugal e Reino Unido) neste grupo - a Noruega e a Islândia não fazem parte da União...
Quando se debate a reanimação do processo de aprovação do Tratado e a forma como essa aprovação se virá a processar em Portugal, tenho poucas dúvidas que o que separará o presidente do primeiro-ministro versa mais a forma e os compromissos previamente assumidos por ambos do que a substância do resultado que desejam: a aprovação. Nessa vertente particular, se houver referendo e mesmo sem a coacção nazi, sinto-me um pouco como um eleitor austríaco, convidado a responder às expectativas – o que dá logo uma vontade danada de votar não!
Mas o que mais me incomoda é esta focalização do debate, por parte de pessoas como Barroso, Sócrates ou Cavaco Silva, nos detalhes e nos aspectos operacionais da coisa, sem saber explicar-nos para onde a coisa vai. Fica uma certa nostalgia de frases grandiloquentes como a que abre as memórias de de Gaulle: Toda a minha vida concebi uma certa ideia da França. Como complemento, era evidente que a sua ideia de Europa girava à volta dessa ideia dessa França… Podia ser antipático – os britânicos que o digam* – mas era transparente…
Claro que os tempos eram outros, e permitiam apresentar resultados eleitorais que são escabrosos pelos nossos padrões da actualidade: aprovações numa percentagem superior aos noventa e nove por cento (99,73%, para aqueles que estiverem mais interessados...), que são valores que já só Kim Jong-Il não tem vergonha de apresentar. Mas, com outros números e mesmo com alguma emoção quanto ao desfecho final, o que parece ter regressado à Europa é a prática de recorrer aos actos eleitorais apenas como gesto legitimador, à posteriori, de decisões superiormente tomadas de antemão.
O embaraço e subsequente impasse causado pelos resultados das consultas populares ao Tratado Constitucional promovidas em França e nos Países Baixos em Maio e Junho de 2005, foi demonstrativo de como as rejeições verificadas nunca haviam sido seriamente contempladas num qualquer plano de contingência anexo ao plano geral de aprovação do referido Tratado por todos os países membros da União. O que, por sua vez, acabou por chamar a atenção para o quão pouco, intrinsecamente, as opiniões populares eram levadas em conta no tal processo de construção europeia.
Quando organizados e repetidos consecutivamente até que os resultados venham a ser os convenientes, os referendos ridicularizam-se, conjuntamente com os seus protagonistas. Veja-se o que aconteceu na Grécia, cujo povo votou em referendo pela monarquia em 1920, pela república em 1924, novamente pela monarquia em 1935 (depois de um golpe de estado…), autorizou o retorno do rei do exílio em 1946, e optou finalmente pela república em dois referendos quase consecutivos (porém sob regimes distintos…) em 1973 e 74… Dá para imaginar qual seria o prestígio que a monarquia teria para os gregos, ao fim daqueles 50 anos.
Quanto à aprovação do Tratado Constitucional propriamente dito, ele já foi aprovado popularmente em Espanha e no Luxemburgo e pelos representantes da Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Eslovénia, Estónia, Grécia, Hungria, Itália, Letónia, Lituânia, Malta e Roménia. Está para aprovação pelos parlamentos da Alemanha, Eslováquia e Finlândia. A França e os Países Baixos rejeitaram-no. Quanto aos outros sete: Checos e Suecos anunciaram que não pretendem realizar referendos, mas os outros cinco (Dinamarca, Irlanda, Polónia, Portugal e Reino Unido) sim. É curiosa a coincidência que junta os três países da periferia atlântica (Irlanda, Portugal e Reino Unido) neste grupo - a Noruega e a Islândia não fazem parte da União...
Quando se debate a reanimação do processo de aprovação do Tratado e a forma como essa aprovação se virá a processar em Portugal, tenho poucas dúvidas que o que separará o presidente do primeiro-ministro versa mais a forma e os compromissos previamente assumidos por ambos do que a substância do resultado que desejam: a aprovação. Nessa vertente particular, se houver referendo e mesmo sem a coacção nazi, sinto-me um pouco como um eleitor austríaco, convidado a responder às expectativas – o que dá logo uma vontade danada de votar não!
Mas o que mais me incomoda é esta focalização do debate, por parte de pessoas como Barroso, Sócrates ou Cavaco Silva, nos detalhes e nos aspectos operacionais da coisa, sem saber explicar-nos para onde a coisa vai. Fica uma certa nostalgia de frases grandiloquentes como a que abre as memórias de de Gaulle: Toda a minha vida concebi uma certa ideia da França. Como complemento, era evidente que a sua ideia de Europa girava à volta dessa ideia dessa França… Podia ser antipático – os britânicos que o digam* – mas era transparente…
O que falta perceber é o que agora está realmente em causa para além da resma de páginas de um documento produzido por uma comissão que parece ter exorbitado as suas funções. E, como creio que essa ignorância é compartilhada tanto por mim como pelo deputado que em minha representação a votar no parlamento, até compreendo o pragmatismo de alguns argumentos utilitários (como neste poste) em favor da aprovação parlamentar. Mas há que não esquecer os riscos...
Este faz-de-conta eleitoral a respeito da construção europeia lembra, em mais do que um aspecto, aquelas eleições das chamadas democracias populares da antiga Europa de Leste onde não havia opinião pública, não estavam previstas surpresas e onde nunca houve surpresas. Até 1989, quando os vários regimes comunistas entraram todos em colapso por não haver quase ninguém para os defender... Posto(s) perante o mesmo desafio, com quem é que o(s) regime(s) da construção europeia contaria(m) actualmente?
* Nos anos 60, a França vetou o pedido de adesão do Reino Unido à (na altura) CEE.
Excelente post!
ResponderEliminarObrigado, Sofia!
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