13 abril 2007

ASTÉRIX GASTRÓNOMO

Este poste começa por um outro assunto distinto mas de título parecido: uma rubrica intitulada Astérix Esquerdista que a saudosa revista Tintin* publicou na altura do nosso PREC e da assinatura do programa comum da esquerda francesa entre François Mitterrand (pelos socialistas) e Georges Marchais (pelos comunistas)**. Era assinada por um senhor chamado Numa Sadoul, que numa biografia actual vejo descrito como escritor, entrevistador e homem de imprensa, uma descrição que em nada me melhora a imagem com que dele fiquei.

Contudo devemos dar o desconto de uma época onde o entusiasmo pelo PREC caminhava para a saturação e trechos de diálogo como o que se segue, se tornavam frequentes:
Ah sabe, eu não costumo ligar à política… – dizia o mais evasivo.
Mas tem tudo a ver com política… – contrapunha o mais militante.
Ainda hoje não tenho a certeza se existem limites para que se faça uma associação entre a actividade política e um qualquer outro assunto mas posso assegurar que a estupidez humana é ilimitada…
No referido artigo de Numa Sadoul ela transbordava, pedante, equiparando a dupla Astérix e Obélix à de Mitterrand e Marchais, através de um jogo rebuscadíssimo de interpretações aos textos de Goscinny que se tornava patético. A História pode ser contudo ferozmente vingativa para tais analogias disparatadas, e nos álbuns futuros de Astérix, ainda poderemos vir a descobrir que Astérix colaborou inicialmente com os romanos, no início da invasão romana e que, além disso, tem uma filha, de que Goscinny nunca nos falou…

Agora falando de Astérix gastrónomo, o que eu aprecio no desempenho de Astérix nas suas aventuras é que, ao contrário do pretensiosismo das correntes representadas, por exemplo, pelo Guia Michelin, ela se exprime em receitas bem simples. Paradoxalmente, é à cozinha romana que Goscinny resolveu atribuir o pseudo-requinte daqueles pratos sofisticados que não se conseguem designar de um só fôlego***, tão em voga na nouvelle cuisine francesa. A esses, Obélix faz uma apreciação sucinta (Astérix Gladiador, prancha 26): - Salgado!
É claro que Obélix não pode ser padrão para a apreciação do que é sofisticado, a atender neste diálogo com Astérix (Astérix e os Normandos, prancha 8), quando se queixava de estar pesado depois das dúzias de ostras que havia comido:
– Obélix, já te disse que as ostras são como as nozes: só se come o interior…
– Mas eu como as nozes como as ostras: inteiras!
Mas reconheçamos-lhe a habilidade de saber o que quer e ter alterado a ementa do rancho quando assentou praça em Astérix Legionário (pranchas 21 e 27).

Ao contrário da imagem que geralmente dão de si no estrangeiro os seus longínquos descendentes do século XXI, os gauleses sempre tiveram uma grande capacidade para apreciarem as cozinhas locais (A Grande Travessia, prancha 14), excepção feita, claro está, ao caso britânico (Astérix entre os Bretões, prancha 11) ou ao caso pontual de um insuportável queijo corso (Astérix na Córsega, prancha 16). Mas, de resto, parecem incorporar-se facilmente nos costumes e apreciar a comida alheia (Astérix e os Belgas, prancha 17).
Houve até um episódio em que a dupla se deu mesmo ao luxo de se tornar criadora culinária com uma receita arrasadora (um frango por depenar, doces, pimenta, sal, rins, figos, sabão de Massília, mel, chouriços, ovos, pepinos de Granada, pimenta e pimentões…) que se afirmou sobretudo pelas suas propriedades farmacológicas, embora o sempre exigente Obélix, quando teve oportunidade de a provar, tenha achado a sua própria criação… insípida (Os Louros de César, prancha 19).

Mas o verdadeiro gastrónomo da aldeia não é nenhum dos dois heróis principais e sim o Chefe Abraracourcix. A história de O Escudo de Arverne gira à volta de uma cura de águas que o Chefe se vê obrigado a fazer por causa do fígado. A sucessão de banquetes que ele organizou, seleccionando as estalagens até à cidade das termas onde se ia tratar, e as frases com que se auto justificava enquanto se servia, na prancha 5, considero uma das melhores das aventuras de Astérix. E no final, depois de emagrecer até ao irreconhecível, ao revisitá-las na viagem de regresso, chega à aldeia com a mesma silhueta com que partira…
* Números 23 e 24 do 8º ano, Outubro e Novembro de 1975.
** Tecnicamente, havia mais um parceiro, os radicais de esquerda (de Robert Fabre), tão relevantes e tão autónomos em relação aos socialistas franceses como entre nós o era o MDP/CDE (José Manuel Tengarrinha) em relação ao PCP.
*** Velouté à la lentille verte du Puy émulsionné à l'huile de noisette é um exemplo recolhido ao acaso…

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