Imaginemos que o cargo de presidente da Comissão Europeia era importante porque acumulava os poderes supremos da União, o que o tornava um lugar cobiçado pelos chefes de estado e de governo dos países integrantes. Imaginemos que o aparelho burocrático em Bruxelas, insatisfeito com o último nomeado para o cargo, montara um esquema que conduzira à sua demissão, tendo sido substituído por outro presidente, mais sensível aos seus problemas…
Entre apontamentos de absurdo e pormenores um pouco forçados, podemos considerar que, mesmo assim, teremos o início do enredo, transposto para os tempos modernos, das convulsões que se estavam a preparar para o ano de 193 no Império Romano. Bruxelas é Roma. As perturbações haviam começado com a deposição do imperador Cómodo, por indecente e má figura (em Dezembro de 192, um pouco à semelhança do que aconteceu à Comissão presidida por Jacques Santer…).
O imperador Cómodo, filho de Marco Aurélio e que se tornou recentemente muito mais famoso quando o vimos lutar em plena arena contra Russell Crowe no filme Gladiator (…pelos vistos, em Hollywood, os monarcas dispõem-se a desafiar campeões desportivos em modalidades violentas!), acabou por ser assassinado depois de 12 anos de poder. E os membros da conspiração escolheram entregar o poder ao Cônsul em exercício que fazia parelha com Cómodo nesse ano: o senador Pertinax.
Publius Helvius Pertinax tinha 66 anos e uma distinta carreira político-militar (eram quase indissociáveis naquela época), tendo ascendido socialmente ao longo dela: o seu pai era um ex-escravo de origem italiana, que havia possivelmente comprado a sua liberdade. Não é de excluir a hipótese que quem estava por detrás da escolha de Pertinax procurasse reproduzir a transição que ocorrera em 96, quando o senador Nerva (96-98) fora o imperador de transição até à instalação de um general respeitado: Trajano.
Tivesse sido essa a ideia original, os acontecimentos não se repetiram porque os tempos tinham mudado imenso no século que passara, e havia, como se veio a descobrir, para além das tradicionais conspirações para derrubar um poder ainda não consolidado, evidentes rupturas na cadeia hierárquica do dispositivo militar imediatamente dependente do imperador. Antes de se passarem três meses, Pertinax foi assassinado durante um protesto promovido por umas centenas de membros da guarda pretoriana.
O que impressiona neste episódio (como noutras revoluções, a do 5 de Outubro ou a de 25 de Abril, entre nós), é a ausência gritante de qualquer reacção por parte da grande maioria das forças às ordens do poder legítimo: o poder imperial romano mostrava estar à mercê de uma pequena turba revoltada. O que se seguiu tem todo o aspecto de velho antepassado de processo revolucionário, no sentido da apropriação pela hierarquia intermédia militar da condução do processo político.
Como uma das grandes fontes de rendimentos dos militares era o prémio concedido pelo imperador por ocasião da sua ascensão ao trono (havia sido o atraso desse pagamento que causara a insurreição que resultara na morte de Pertinax), uma espécie de soviete de pretorianos iniciou as negociações para a nomeação do próximo imperador, baseado no valor do prémio que lhes seria concedido por cada um dos candidatos. Ganhou Dídio Juliano, com um lance de 6.250 dracmas por cabeça…
Só que, por sua vez, a morte de Pertinax, deve ter interrompido outras negociações que o imperador assassinado estaria a entabular com os generais dos grandes concentrações militares de Roma para robustecer o novo poder com a legitimidade militar que lhe faltava em Roma. Sabida a notícia, Clódio Albino na Grã-Bretanha, Pescénio Níger na Síria e Septímio Severo, na Áustria, entraram em ruptura quase simultaneamente com o novo regime, indignando-se todos com o leilão do trono.
A rota era agora de colisão e não dava grande capacidade de manobra diplomática a Dídio Juliano, apesar do novo imperador, de 60 anos, não ser aquela nulidade em que a iconografia política depois o transformou, como o corruptor vilão de toda esta história. Nem a hipótese de se coligar com um dos três focos de poder militar para defrontar os outros dois se chegou a pôr: Septímio Severo, foi extremamente lesto a pôr as suas tropas em movimento e a fechar um acordo com um outro pretendente (Clódio Albino).
Septímio Severo chegou rapidamente a Roma, vindo da Áustria. Rapidamente, na terminologia da época, foram dois meses… Em Junho de 193 entrava na capital e Dídio Juliano era morto. Socialmente, uma pessoa como Septímio era uma novidade à frente dos destinos de Roma: era originário da Líbia, de uma colónia de fundação cartaginesa, de uma família que, tanto quanto se sabe e embora próspera (comprara um domínio em Itália para adquirir estatuto), era da mais rija cepa africana.
Mas engana-se quem julgar que Septímio Severo era um labrego da província que subira por mérito a cadeia hierárquica militar e acabara imperador no percurso. Fez os seus estudos em latim e grego como qualquer patrício da época, e a sua carreira, iniciada sob Marco Aurélio, tem alguns apontamentos de destaque, e alguns retrocessos, como a de Pertinax, por exemplo. Mas há dois pormenores acessórios que vão dar dele um aspecto de forasteiro em Roma: a sua tez, mais escura que o habitual, e o seu sotaque.
Mas se Septímio Severo era escuro, a disputa que se iria travar seria entre homens escuros, pois o seu adversário, de quem pouco hoje se sabe, chamava-se Pescénio Níger, um nome que inclui uma alcunha (Níger - negro) provavelmente alusiva ao seu tom de pele. A proclamação de Pescénio Níger como imperador que desafia o poder central de Roma, representado por Dídio Juliano, deve ter ocorrido em Abril ou Maio de 193 e, ocorrida na Síria, foi acompanhada pelas restantes províncias do Oriente.
Parece haver na candidatura de Pescénio Níger ao trono tanto de pessoal quanto de estrutural. As províncias que o apoiam são aquelas que vieram a constituir dali a duzentos anos o Império Romano do Oriente. Por outro lado, destronado Dídio Juliano, o regime dos pretorianos e a razão de ser das respectivas revoltas, não parece descabido sustentar que pudesse ter havido um acordo entre Septímio Severo e Pescénio Níger, tal qual o primeiro fizera com Clódio Albino, sedeado na Grã-Bretanha.
E foi Septímio Severo que tomou a iniciativa de invadir os territórios obedientes a Pescénio Níger. Os relatos não deixam dúvidas quanto ao que aconteceu, embora as fontes, mesmo as mais antigas, não são concordantes sobre as datas em que aconteceu. Houve uma vitória inicial das tropas orientais, seguida de três vitórias das ocidentais, culminando na captura de Antioquia, capital da Síria e na morte de Pescénio Níger (194). Mas o último bastião a render-se foi Bizâncio, que viria a ser a famosa Constantinopla.
Chegados a este ponto da narrativa, é normal que os historiadores antecipem que Clódio Albino venha a ter o mesmo destino. E é de supor que o próprio Clódio Albino (por quem se haviam pronunciado as províncias do Ocidente: Bretanha, Gália e Hispânia) também antecipasse que o acordo com Septímio Severo não passasse de umas tréguas tácitas. Factores que hoje nos escapam devem-no ter inibido de assumir a iniciativa enquanto os seus dois rivais se disputavam no Oriente.
A verdade é que partiu mais uma vez de Septímio Severo, em Dezembro de 195, a iniciativa de hostilizar o seu rival, pondo Clódio Albino fora da lei com o auxílio do Senado de Roma, órgão onde, apesar disso, ele dispunha de uma facção minoritária que lhe era simpática. No início de 196, Albino retorquiu, assumindo a disputa e o título de imperador. Só em Fevereiro de 197 é que se travou a batalha decisiva na Gália (perto de Lyon), vencida por Septímio, que ganhou finalmente todo o império… e a História.
Há algo de vagamente familiar na descrição de um centro fraco (Roma ou Bruxelas) com o poder efectivo a residir nos exteriores, sejam eles os maiores exércitos romanos ou os maiores países europeus. Não é um grande prodígio de imaginação fazer as equivalências entre Septímio Severo, Pescénio Níger e Clódio Albino e Ângela Merkel, Tony Blair e Jacques Chirac. Nem surpreende ver chegar um membro da ponta meridional do império à capital (Durão Barroso), embora provavelmente mais claro que Septímio…
Entre apontamentos de absurdo e pormenores um pouco forçados, podemos considerar que, mesmo assim, teremos o início do enredo, transposto para os tempos modernos, das convulsões que se estavam a preparar para o ano de 193 no Império Romano. Bruxelas é Roma. As perturbações haviam começado com a deposição do imperador Cómodo, por indecente e má figura (em Dezembro de 192, um pouco à semelhança do que aconteceu à Comissão presidida por Jacques Santer…).
O imperador Cómodo, filho de Marco Aurélio e que se tornou recentemente muito mais famoso quando o vimos lutar em plena arena contra Russell Crowe no filme Gladiator (…pelos vistos, em Hollywood, os monarcas dispõem-se a desafiar campeões desportivos em modalidades violentas!), acabou por ser assassinado depois de 12 anos de poder. E os membros da conspiração escolheram entregar o poder ao Cônsul em exercício que fazia parelha com Cómodo nesse ano: o senador Pertinax.
Publius Helvius Pertinax tinha 66 anos e uma distinta carreira político-militar (eram quase indissociáveis naquela época), tendo ascendido socialmente ao longo dela: o seu pai era um ex-escravo de origem italiana, que havia possivelmente comprado a sua liberdade. Não é de excluir a hipótese que quem estava por detrás da escolha de Pertinax procurasse reproduzir a transição que ocorrera em 96, quando o senador Nerva (96-98) fora o imperador de transição até à instalação de um general respeitado: Trajano.
Tivesse sido essa a ideia original, os acontecimentos não se repetiram porque os tempos tinham mudado imenso no século que passara, e havia, como se veio a descobrir, para além das tradicionais conspirações para derrubar um poder ainda não consolidado, evidentes rupturas na cadeia hierárquica do dispositivo militar imediatamente dependente do imperador. Antes de se passarem três meses, Pertinax foi assassinado durante um protesto promovido por umas centenas de membros da guarda pretoriana.
O que impressiona neste episódio (como noutras revoluções, a do 5 de Outubro ou a de 25 de Abril, entre nós), é a ausência gritante de qualquer reacção por parte da grande maioria das forças às ordens do poder legítimo: o poder imperial romano mostrava estar à mercê de uma pequena turba revoltada. O que se seguiu tem todo o aspecto de velho antepassado de processo revolucionário, no sentido da apropriação pela hierarquia intermédia militar da condução do processo político.
Como uma das grandes fontes de rendimentos dos militares era o prémio concedido pelo imperador por ocasião da sua ascensão ao trono (havia sido o atraso desse pagamento que causara a insurreição que resultara na morte de Pertinax), uma espécie de soviete de pretorianos iniciou as negociações para a nomeação do próximo imperador, baseado no valor do prémio que lhes seria concedido por cada um dos candidatos. Ganhou Dídio Juliano, com um lance de 6.250 dracmas por cabeça…
Só que, por sua vez, a morte de Pertinax, deve ter interrompido outras negociações que o imperador assassinado estaria a entabular com os generais dos grandes concentrações militares de Roma para robustecer o novo poder com a legitimidade militar que lhe faltava em Roma. Sabida a notícia, Clódio Albino na Grã-Bretanha, Pescénio Níger na Síria e Septímio Severo, na Áustria, entraram em ruptura quase simultaneamente com o novo regime, indignando-se todos com o leilão do trono.
A rota era agora de colisão e não dava grande capacidade de manobra diplomática a Dídio Juliano, apesar do novo imperador, de 60 anos, não ser aquela nulidade em que a iconografia política depois o transformou, como o corruptor vilão de toda esta história. Nem a hipótese de se coligar com um dos três focos de poder militar para defrontar os outros dois se chegou a pôr: Septímio Severo, foi extremamente lesto a pôr as suas tropas em movimento e a fechar um acordo com um outro pretendente (Clódio Albino).
Septímio Severo chegou rapidamente a Roma, vindo da Áustria. Rapidamente, na terminologia da época, foram dois meses… Em Junho de 193 entrava na capital e Dídio Juliano era morto. Socialmente, uma pessoa como Septímio era uma novidade à frente dos destinos de Roma: era originário da Líbia, de uma colónia de fundação cartaginesa, de uma família que, tanto quanto se sabe e embora próspera (comprara um domínio em Itália para adquirir estatuto), era da mais rija cepa africana.
Mas engana-se quem julgar que Septímio Severo era um labrego da província que subira por mérito a cadeia hierárquica militar e acabara imperador no percurso. Fez os seus estudos em latim e grego como qualquer patrício da época, e a sua carreira, iniciada sob Marco Aurélio, tem alguns apontamentos de destaque, e alguns retrocessos, como a de Pertinax, por exemplo. Mas há dois pormenores acessórios que vão dar dele um aspecto de forasteiro em Roma: a sua tez, mais escura que o habitual, e o seu sotaque.
Mas se Septímio Severo era escuro, a disputa que se iria travar seria entre homens escuros, pois o seu adversário, de quem pouco hoje se sabe, chamava-se Pescénio Níger, um nome que inclui uma alcunha (Níger - negro) provavelmente alusiva ao seu tom de pele. A proclamação de Pescénio Níger como imperador que desafia o poder central de Roma, representado por Dídio Juliano, deve ter ocorrido em Abril ou Maio de 193 e, ocorrida na Síria, foi acompanhada pelas restantes províncias do Oriente.
Parece haver na candidatura de Pescénio Níger ao trono tanto de pessoal quanto de estrutural. As províncias que o apoiam são aquelas que vieram a constituir dali a duzentos anos o Império Romano do Oriente. Por outro lado, destronado Dídio Juliano, o regime dos pretorianos e a razão de ser das respectivas revoltas, não parece descabido sustentar que pudesse ter havido um acordo entre Septímio Severo e Pescénio Níger, tal qual o primeiro fizera com Clódio Albino, sedeado na Grã-Bretanha.
E foi Septímio Severo que tomou a iniciativa de invadir os territórios obedientes a Pescénio Níger. Os relatos não deixam dúvidas quanto ao que aconteceu, embora as fontes, mesmo as mais antigas, não são concordantes sobre as datas em que aconteceu. Houve uma vitória inicial das tropas orientais, seguida de três vitórias das ocidentais, culminando na captura de Antioquia, capital da Síria e na morte de Pescénio Níger (194). Mas o último bastião a render-se foi Bizâncio, que viria a ser a famosa Constantinopla.
Chegados a este ponto da narrativa, é normal que os historiadores antecipem que Clódio Albino venha a ter o mesmo destino. E é de supor que o próprio Clódio Albino (por quem se haviam pronunciado as províncias do Ocidente: Bretanha, Gália e Hispânia) também antecipasse que o acordo com Septímio Severo não passasse de umas tréguas tácitas. Factores que hoje nos escapam devem-no ter inibido de assumir a iniciativa enquanto os seus dois rivais se disputavam no Oriente.
A verdade é que partiu mais uma vez de Septímio Severo, em Dezembro de 195, a iniciativa de hostilizar o seu rival, pondo Clódio Albino fora da lei com o auxílio do Senado de Roma, órgão onde, apesar disso, ele dispunha de uma facção minoritária que lhe era simpática. No início de 196, Albino retorquiu, assumindo a disputa e o título de imperador. Só em Fevereiro de 197 é que se travou a batalha decisiva na Gália (perto de Lyon), vencida por Septímio, que ganhou finalmente todo o império… e a História.
Há algo de vagamente familiar na descrição de um centro fraco (Roma ou Bruxelas) com o poder efectivo a residir nos exteriores, sejam eles os maiores exércitos romanos ou os maiores países europeus. Não é um grande prodígio de imaginação fazer as equivalências entre Septímio Severo, Pescénio Níger e Clódio Albino e Ângela Merkel, Tony Blair e Jacques Chirac. Nem surpreende ver chegar um membro da ponta meridional do império à capital (Durão Barroso), embora provavelmente mais claro que Septímio…
Haverá quem comente (e goze com) os sotaques de Barroso? No geral, o jogo agora é, felizmente, muito menos sangrento mas, na sua essência, parece haver muitos aspectos em que o jogo voltou a ser o mesmo…
Legendas das imagens: Manneken Pis (estátua que é considerada o símbolo de Bruxelas), moeda cunhada em nome de Pescénio Níger, busto de Clódio Albino e Arco do Triunfo mandado erigir por Septímio Severo em Roma.
Aprende-se cada coisa com a leitura deste “blog”!
ResponderEliminarSe tivesse visto os nomes de “Pertinax” e de “Pescénio Níger”, sem saber de onde vinham, entregava a paternidade à dupla Goscinny/Uderzo!
Quanto ao Septímio Severo, o único com nome “decente”, embora um velho conhecido, não o via em tão más companhias…
Como a História nos pode enganar!
Não jurarei sobre o rigor dos aportuguesamentos dos dois nomes, respectivamente Publius Helvius Pertinax e Caius Pescennius Niger Justus, mas valha a verdade que me ficou por contar a hipótese que Clódio Albino (Decimus Clodius Septimius Albinus) fosse (ou tivesse tido um antepassado) de tez muito clara, pálida, conforme o seu nome sugere.
ResponderEliminarMas teria sido um trocadilho fácil: Septímio entre o preto e o branco...