03 março 2024

A ABOLIÇÃO DO CALIFADO E A PERSONALIDADE DO ÚLTIMO CALIFA

Convirá explicar previamente ao leitor menos sensibilizado para as nuances de que se revestira o poder otomano, que, durante mais de 400 anos, o sultão que reinara a partir de Constantinopla, fora também o califa, agregando em si os poderes temporal e espiritual, o monarca absoluto de todos os súbditos do império otomano, mas simultaneamente o líder da Umma, a comunidade espiritual dos muçulmanos de todo o mundo. Este último poder era mais simbólico que efectivo e fora por isso que, quando a Assembleia Nacional turca decretara a abolição do sultanato em 1 de Novembro de 1922, expulsara o sultão Mehmed VI do trono, mas permitira que este tivesse um sucessor no cargo de califa na pessoa do seu primo Abdul Mejide II.
Que me perdoem esta indispensável explicação prévia, mas sem ela não se compreenderia o significado de, dezasseis meses depois, a 3 de Março de 1924 (cumprem-se hoje precisamente cem anos), ter sido por sua vez Abdul Mejide II a ser deposto. Os novos poderes turcos assumiam-se ostensivamente laicos e pretendiam descartar-se completamente da questão religiosa. Foi deste modo que deixou de haver um califa, algo que era inédito desde o surgimento do Islão no século VII. Nestes cem anos que entretanto decorreram, apesar de algumas tentativas mais sérias e de outras mais caricatas, nunca mais esse cargo, largamente honorífico e assente na aceitação consensual das múltiplas correntes da comunidade, nunca mais veio a ser restaurado.
Esta abolição foi um episódio com significado para o mundo muçulmano mas que deixava o mundo ocidental praticamente indiferente. É muito significativo disso que, tendo a deposição ocorrido a 3 de Março, é só a 16 desse mês que vemos um quotidiano francês (Le Petit Journal) a dedicar uma capa ilustrada ao que acontecera. Uma ilustração muito imaginada, de resto, já que a verdadeira fotografia do momento é muito mais sóbria quanto ao número de pessoas presentes... Assim como mais digna se apresenta a pose deste último califa. Abdul Mejide II parece ter sido um daqueles príncipes com alguns interesses intelectuais e méritos, considerado hoje um pintor de talentos médios. Exibo aqui dois dos seus quadros, em que se destaca a sua primeira mulher (teve quatro, como qualquer bom muçulmano), Şehsuvar Hanım.
No primeiro deles, intitulado Goethe no harém, ela aparece deitada num divã segurando um livro do poeta alemão. No segundo, cujo título é Beethoven no palácio, a princesa aparece a tocar violino, enquanto outros membros da família tocam outros instrumentos de uma composição que se presume ser do compositor alemão. Pintados em 1915 e 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, quando vigorava uma aliança próxima entre a Turquia e Alemanha, qualquer dos quadros dá-nos uma imagem de um (futuro) califa muito impregnado da cultura ocidental e alemã... A comparar com as imagens que hoje circulam dos clérigos muçulmanos, este exemplo é o que de mais parecido se pode arranjar de um outro famoso califa cosmopolita e desprendido, esse de ficção, Haroun el-Poussah, o califa de Bagdade a quem o ignóbil grão-vizir Iznogoud cobiça o estatuto...

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