03 março 2020

A PRÓXIMA DERROTA ANUNCIADA DOS ESTADOS UNIDOS

Com uma notável discrição política e mediática, os Estados Unidos assinaram em finais de Fevereiro um documento visando pôr fim ao seu engajamento de 18 anos no Afeganistão. Tais serão as cautelas na viabilidade do que foi assinado, que se foi muito cuidadoso no título escolhido: é um acordo, mas não de paz, antes para trazer a paz. Se calhar, ficamo-nos mesmo pelas intenções: dois dias depois da cerimónia da assinatura, o anúncio de uma facção dos taliban de que eles vão prosseguir com os seus ataques contra as forças governamentais (embora não contra as tropas americanas), arrisca-se a fazer descarrilar o comboio do que terá sido acordado e logo na primeira agulha. Mas não se tratará propriamente de uma novidade: as pantominas da diplomacia externa da administração americana sob Donald Trump tornaram-se numa «constante da vida» (para glosar os dois primeiros versos da «pedra filosofal»).

E contudo, a cena desta assinatura remete para outros tempos, quando os norte-americanos se davam a outros respeitos. Esta cerimónia de Doha induz a uma analogia quase imediata com um outro processo negocial em circunstâncias muito parecidas, Paris em 1973, quando eles estavam à procura de uma retirada honrosa do Vietname. Também naquela ocasião e apesar das aparências satisfeitas dos intervenientes, existia a sensação de que os Estados Unidos se haviam descartado completamente dos interesses daqueles que haviam sido até aí os seus aliados na região (o governo sul-vietnamita). O que eximia Kissinger (e Nixon) das criticas da derrota era o benefício da dúvida do que seria o futuro, dúvidas essas que, dois anos depois, vieram a ser esclarecidas... 47 anos depois e tomando em conta o precedente, já não há dúvidas: os Estados Unidos também perderam esta guerra no Afeganistão.

O objectivo proclamado dos taliban é, não apenas simples, como também o mesmo que fora quanto os soviéticos haviam ocupado o país em 1979: correr com as tropas estrangeiras. E é isso que eles parecem em vias de conseguir dentro de 14 meses. Quanto aos americanos, os seus objectivos no longínquo e já esquecido ano de 2001, eram os seguintes: a) derrotar os taliban: eles ainda ali estão; b) controlar os circuitos de produção e distribuição dos opiáceos que os sustentam: também parece ter falhado; c) criar um governo afegão alternativo, legítimo e eficaz: não parece que exista; d) criar forças armadas que o suportassem contra os taliban: se as houvesse, a retirada já se teria processado há muito tempo. Mas tudo isto é a irrelevante realidade afegã. O que é importante é considerar estes acontecimentos à luz da disputa eleitoral deste ano nos Estados Unidos: onde Donald Trump quer exibir a coisa que foi assinada como uma peça de campanha.

Não foi Donald Trump a começar o envolvimento dos Estados Unidos no Afeganistão. George W. Bush terá obedecido a um impulso de retaliar mas terá sido sobretudo a Barack Obama, que lhe sucedeu, que terá faltado a coragem política de assumir o fiasco em que esse envolvimento se tornara. E para este desfecho, os Estados Unidos também não se poderão queixar, nestes 18 anos, de falta de solidariedade dos seus aliados em geral, os da NATO em particular. Mas é à luz desta última realidade que vale a pena voltar a Donald Trump e às lições de moral como ele tem marcado as cimeiras da organização com as suas recriminações para que os seus aliados gastem mais com a defesa. Quanto a isso, e comparando com o resto do Mundo, há imensas maneiras de demonstrar que os Estados Unidos é que vão com o passo trocado na formatura. Há várias maneiras de o concluir a partir dos dados deste gráfico que se exibe abaixo:
Constata-se que: os Estados Unidos gastam quase 40% das despesas mundiais com a defesa. Que os seus gastos são o quádruplo do seu mais imediato rival, a China, e o décuplo do seu tradicional rival, a Rússia. Que aquilo que eles gastam com a defesa equivale em valor ao total dos gastos dos dez outros países que mais gastam com a defesa a seguir a si - dos quais sete são seus aliados desde há setenta anos. E no entanto, apesar de todos aqueles recursos pletóricos, o Estados Unidos preparam-se para assumir finalmente uma derrota político-militar num país que está situado num dos rincões mais remotos do Mundo e onde intervieram para dar satisfação a uma opinião pública que não sabia muito bem quem culpar pelo que acontecera em 11 de Setembro de 2001. Lá se comprova mais uma vez o ditado de que «o dinheiro não compra tudo e que nem tudo se compra com dinheiro».

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