No século XIX houve um poeta francês chamado Alphonse de Lamartine (1790-1869) que se julgava o detonador da revolução parisiense de Fevereiro de 1848, revolução essa que veio a derrubar o rei Luís Filipe de Orleães. Tudo porque, num discurso inflamado num banquete que reunira todos os vultos da oposição ao regime, pronunciara um discurso de uma eloquência apaixonada que ele cria ter ateado a fogueira da revolta. «Se suceder as baionetas destruírem a lei, então eu sei, senhores, que defenderemos a liberdade e o futuro do povo, primeiro, com as nossas palavras, depois, com as nossas vidas. Hoje, as palavras devem dar lugar ao actos.» Ergueram-se barricadas e dois dias depois o rei abdicara e o regime caía. Tudo se circunscrevera a Paris. A revolta custara a vida a cerca de 350 parisienses numa urbe que então já contaria com um pouco mais de um milhão de habitantes. Pelo resto da sua vida, Lamartine permaneceria genuíno no desgosto como assumia como predominantemente suas as responsabilidades pelo sangue derramado durante aquela jornada. Era comovente e, ao mesmo tempo, patético. Jornada sangrenta que tivesse sido, para comparação, diga-se que durante a epidemia de cólera de 1832 haviam morrido 32.000 parisienses... E os revoltosos não haviam partido para erigir e guarnecer barricadas por causa do entusiasmo de um orador no fim de um repasto.
Desde 1848 muitas explicações se sucederam para o que aconteceu nos últimos dias de Fevereiro de 1848, mormente o efeito de contágio que o episódio provocou pelo resto da Europa. A explicação que terá tido mais «saída» até aos finais do século XX foi a de Karl Marx. Hoje a revolução de 1848 está muito esquecida, e as pretensões pueris de Lamartine ainda mais. O que não invalida que se encontre por aí muita gente que, mesmo que não saiba de quem se trata, compartilha com ele a ilusão do poder das palavras. Caso de João Miguel Tavares no seu texto de ontem no Público, queixando-se do impacto da palavra guerra para descrever o que está a acontecer à economia. O comportamento das pessoas e o impacto económico que a cessação de muitas actividades estará a ter, é coisa que não me parece que possa depender da semântica escolhida para os descrever. É uma daquelas situações especiais na História em que são as circunstâncias do que está a acontecer que arrastam atrás de si as palavras e o formato de como os acontecimentos são descritos limita-se a ser uma mera consequência dos factos. O pânico existe, está espalhado, encontramo-lo por todo o lado e até nos pequenos gestos, não se espalhou por alguém lhe ter chamado uma guerra. João Miguel Tavares tem esta ilusão de que as coisas poderiam mudar por causa do que se escreve, assim como Lamartine se iludia de que os combatentes tinham ido combater para as barricadas inspirados pelo seu discurso.
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