O quadro data de 1951, o seu autor é um semi desconhecido Alexei Vasilev, e deram-lhe o título que aparece acima: «Estão a falar de nós no Pravda». É óbvio que não se está diante de uma obra prima. O pintor é competente e o conjunto do quadro até resulta, mas o tema é o que se sabe, obrigatório na sociedade que consagrara o Realismo Socialista - veja-se o vídeo abaixo, não apenas com esta mas com outras obras compatíveis. Essas limitações temáticas não implicam que o quadro não tenha que ser lido. Há cinco trabalhadores rurais que se sentam para almoçar numa pausa da colheita. Um deles, a rapariga de lenço vermelho da esquerda, senta-se em oposição aos outros e é ela que lhes lê um jornal que está pousado no seu colo. Reconhece-se, pelo cabeçalho, que o jornal é o Pravda (o órgão oficial do comité central do Partido Comunista da União Soviética). Mas o cento é a área mais informativa do quadro, de que voltaremos a falar mais adiante. Por detrás, estendem-se trigais a perder de vista, alguns já colhidos e enfardados. Para isso (a mecanização da agricultura é um tema recorrente do Realismo Socialista) terá sido indispensável a existência da ceifeira debulhadora que se vê à distância, do lado direito. Mas o progresso socialista também está representado por comodidades como a motorizada verde do lado esquerdo. A expressão de quem ouve é satisfeita, embora a refeição tenha sido frugal: uma tigela que contivera qualquer coisa e um cântaro cujo conteúdo só se pode adivinhar. Mas a melancia cortada, dá-nos a informação da estação do ano, o Verão, e de que a cena decorre numa das repúblicas mais meridionais da União Soviética. É o padrão tradicional do tapete onde se sentam que identifica definitivamente o local onde a cena tem lugar, a Moldávia.
E é a história particular dessa República soviética que torna mais relevante o facto de que o Pravda de Moscovo fale deles, conforme o título do quadro. A região pertencera ao Império russo até 1918 mas, de 1918 até 1940, a Moldávia fizera parte da Roménia. Uma maioria da população local falava (e fala) romeno. A junção da Moldávia à Roménia fora uma das consagrações práticas do princípio das nacionalidades, um dos quatorze pontos de Wilson. Mas, com a assinatura do Pacto entre Hitler e Estaline em Agosto de 1939, a União Soviética recebera o consentimento da Alemanha para a reconquistar (1940). Mas, um ano depois, a Roménia aliara-se à Alemanha e, com a invasão da Rússia em 1941, reconquistara uma vez mais a Moldávia, apenas para a voltar a perder no fim da Segunda Guerra Mundial (1945). Assim, em 1951, a data da conclusão do quadro, a Moldávia era uma terra soviética há relativamente pouco tempo: pouco mais de meia dúzia de anos. Nesse período, a população moldava fora sujeita a deportações e à imposição das normas soviéticas, nomeadamente a colectivização da agricultura. O ênfase na felicidade dos trabalhadores rurais não é acidental. Assim como não o é o gesto da leitura do jornal. Outra das consequências práticas da anexação soviética é que o idioma romeno que se falava na região passou a ser oficialmente escrito no alfabeto cirílico e não no alfabeto latino, como acontecera até aí e como acontecia na Roménia. Qualquer uma destas duas questões é contornada no quadro: por um lado, a rapariga do lenço vermelho está a ler um jornal russo, escrito em russo e no alfabeto cirílico; por outro, o auditório aparenta idade de, se escolarizado (improvável...), só saberia ler romeno e no alfabeto latino.
Em conclusão, o quadro revela-se uma das mais elementares demonstrações do imperialismo russo, que naqueles anos se congratulava por, com Estaline e na sequência da Segunda Guerra Mundial, ter quase recuperado as fronteiras do império czarista (ficou a faltar a Polónia e a Finlândia...). Em 1951, o ano em que Portugal revogou o seu Acto Colonial, se nos deparássemos com um quadro (ou então uma fotografia) de cinco angolanos, em que um deles - o evoluído - aparecesse a ler um jornal lisboeta que falava deles, a cena seria (e é) para ser classificada como aquilo que é: propaganda colonialista. E, contudo, há comunistas que, precisamente perante os mesmos dados, nunca hão-de perceber o que o comunismo foi...
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