O comportamento de alguns jornalistas ditos económicos, daqueles dados a analisar coisas, faz-me lembrar o comportamento tradicional dos seus colegas de uma outra especialidade, especialidade essa que, apesar de característica noutros países, nunca vingou em Portugal: os jornalistas das páginas de apostas desportivas, nomeadamente as apostas sobre corridas de cavalos. Porquê? Porque mesmo não sabendo nada de específico a respeito de uma determinada corrida, os jornalistas de apostas estão obrigados a manifestar uma opinião, mesmo que ela não passe de uma reciclagem camuflada – e essa camuflagem pode ser mais ou menos bem-sucedida – do favoritismo que é atribuído pelo público a cada cavalo (acima), as denominadas odds – e aqui, tanto nas apostas como na economia, os anglicismos técnicos trazem um apport de respeitabilidade ao analista. É questão assente que um jornalista de apostas não pode não ter um favorito num Derby. Na prática, e porque o assunto apenas está embrulhado por uma camada diáfana de cientificismo, a página de apostas desportivas nos jornais estrangeiros assim como a maioria dos artigos dedicados à economia nos jornais portugueses tendem a tornar-se num ecossistema fechado. Pela própria essência do seu discurso, um Camilo Lourenço, por exemplo¹ e se ele tiver um grande auditório, há-de ser um grande auditório cativo (no caso de não ter, é um mistério jornalístico porque lhe continuam a dar notoriedade...). O preâmbulo já vai longo, mas é útil para retratar a traços grossos as características do protagonista da historieta que se segue. Que começa com mais uma notícia recente e alarmista, na linha das que interessam por provocarem o clickbait, a notícia do crescimento da “dívida directa do Estado em Abril deste ano para 245,5 mil milhões, representando 127,1% do PIB”.
A questão da nossa dívida pública presta-se à confusão, já que há (pelo menos) dois organismos a contabilizá-la (o IGCP e o Banco de Portugal), os critérios de contabilização variam, pode ser apresentada em valor absoluto ou em % em referência ao PIB e a variação de um mês para o outro é circunstancial, pode nada nos dizer sobre a tendência. É um tópico já muito mastigado, que, apesar de se ter prestado a projéctil de arremesso político, como o fez o Observador até há uns dois anos, hoje caiu em desuso para tais propósitos. Não é por ali que se amachuca a reputação de Centeno. Para os genuinamente interessados, há até um blogue maçudamente dedicado ao assunto. E depois há aqueles jornalistas económicos e aparentados que acima descrevi, e que não se podem dar ao luxo de confessar que não têm qualquer palpite (tip) sobre qual o favorito para uma qualquer corrida. Vão a todas. Mesmo quando a notícia saiu de moda como aqui, têm que ir às sobras do jantar e dizer qualquer coisa. O problema é quando essa coisa é escrutinada... e essa coisas são facilmente escrutináveis usando o Google. Assim, aquilo que em Abril de 2018 é para ser subentendido como algo inequivocamente grave, 245,5 mil milhões de dívida, correspondentes a 127,1% do PIB (acima), comparar-se-ão favoravelmente com a situação de há um ano, Abril de 2017, em que os números eram 247,4 mil milhões e 130,6%, respectivamente (abaixo). Mas o corolário da historieta não é a notícia a que, como é costume quando os autores são estes jornalistas ditos económicos, lhe falta o contexto que lhe reduziria o impacto. O corolário é a reacção de um desses ditos jornalistas analistas quando se lhe envia um comentário assinalando a contradição do que escreveu: o comentário é apagado, o autor desamigado, porque este género de jornalismo económico não será para ser uma ciência, factualmente confirmada ou desmentida, antes algo em que, vivendo como um ecossistema nas e para as redes sociais, se evita a discordância, porque a Verdade ali até pode ser tóxica.
¹ «Numa altura particularmente conturbada para os lados do Sporting e de Bruno de Carvalho, a principal questão a resolver até nem é a sua liderança mas tem um nome: empréstimo obrigacionista (...)», Camilo Lourenço, 11 de Abril de 2018.
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