Mesmo quem viveu aqueles tempos longínquos de há quarenta anos já se deve ter esquecido como a popularidade da telenovela brasileira Gabriela não foi um fenómeno imediato. A sua estreia teve lugar em 16 de Maio de 1977, teve um acolhimento bastante desdenhoso por parte da intelectualidade instalada e foi só a pulso que, nos meses seguintes, a telenovela (que era transmitida cinco vezes por semana, por volta da hora de jantar) foi ganhando paulatinamente a sua audiência. Só em pleno Verão de 1977 (ou seja, há precisamente quarenta anos) é que ela alcançara o estatuto de estrelato (há quem a designe por Fase de Tematização), antes de se vir a tornar icónica, lá mais para o Outono de 1977, absolutamente obrigatória de acompanhar, alterando os horários dos teatros e as marcações das reuniões parlamentares. Por essa altura até o reconhecidamente circunspecto e sisudo Álvaro Cunhal se permite desculpar-se de um atraso a um compromisso da própria agenda televisiva por ter ficado a assistir à telenovela Gabriela.
Mas o que é interessante recuperar para a história que hoje publico é o carácter pedagógico político de que a telenovela se podia revestir. Apesar da sua origem brasileira (os modelos sociais sul-americanos não são de transposição fácil para a realidade europeia) e apesar da acção decorrer numa sociedade rural que se situava cinquenta anos antes da data da transmissão (década de 1920), havia uma predisposição benévola do auditório para transpor os estereótipos do ecrã para a realidade portuguesa, embora naturalmente distorcidos em função das convicções políticas próprias: para o major Otelo Saraiva de Carvalho, o vilão da telenovela, o Coronel Ramiro Bastos, era uma figura parecida com o General António de Spínola; e do outro lado do espectro político, Ribeiro e Castro do CDS, pedia que não se partidarizasse a telenovela. De facto, lembro-me que, a respeito de Gabriela e em termos de opinião política, acabava por lá caber tudo. E esse tudo acabou varrido da memória, mesmo o que era verdadeiramente interessante.
Tomemos o exemplo incontornável desta personagem acima, o doutor Ezequiel Prado, que na novela era protagonizada pelo actor Jaime Barcelos. O doutor Ezequiel Prado era um insigne causídico de Ilhéus, reputado pelas suas ideias liberais e libertinas e por isso arqui-rival do seu colega Maurício Caires (Paulo Gonçalves - o rosto do conservadorismo moralista na cidade), mas muito superior a ele na exuberância, na pena e na eloquência, que alegadamente melhorava até quanto mais etilizado se apresentasse o advogado, e isso independentemente do valor e da justiça da causa que abraçasse. Era das personagens mais simpáticas do elenco mas nós, os telespectadores atentos que ali tentávamos aprender alguns rudimentos práticos de política, bem depressa compreendemos que contar com o doutor Ezequiel Prado para a disputa política que se travava em Ilhéus era tempo perdido. Todo aquele brilhantismo formal (que o tempo até tornara anacrónico) de nada servia em prol da causa da modernidade representada pelo doutor Mundinho (José Wilker).
Por muito que o acompanhasse com uma lucidez que faltaria aos demais, o doutor Ezequiel Prado era inútil para o combate político que então se travava em Ilhéus mas isso não seria defeito dele, era apenas feitio e opção: as suas prioridades iriam para o bataclã. Era divertido ouvi-lo mas era estúpido levá-lo a sério, algo que, se calhar, nem o próprio faria. Saber distinguir entre os actores e os comentadores políticos foi uma lição antiga que aprendi com Gabriela, que me esforço por não esquecer e que regularmente vejo por aí esquecida, com os papéis misturados. Tome-se o (um) exemplo de Vasco Pulido Valente que (também) de há quarenta anos para cá consegue ofuscar alguns sectores da nossa intelectualidade com o seu brilhantismo também formalmente escorreito e com o teor ribombante das opiniões (controversas...) que emite. As admirações que suscita parecem despertar nele próprio um efeito inebriante que, a contrário do que aconteceria com Ezequiel Prado, fazem-no levar-se a sério nessa sua embriaguez (que não se é apenas) retórica...
Só "retórica"?????
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