É engraçada a história de como encontrei a obra deste historiador britânico pela primeira vez: numa tradução francesa de uma história sua sobre a Grécia sob a ocupação alemã (1941-44)! (Ver como se viveu por outras paragens europeias a Segunda Guerra Mundial é um exercício mais instrutivo do que enfiar o nariz cá pela terrinha e culpar Salazar por todas as desditas.) Depois apercebi-me que o autor contaria cá em Portugal com um clube de fãs: de facto, não será comum que um historiador da sua projecção tenha tantos livros traduzidos para português e editados em Portugal: O Império de Hitler, editado por cá em Maio de 2013, originalmente de 2008, O Continente das Trevas, editado depois, em Novembro de 2014, mas que fora publicado inicialmente em 1998 e finalmente este Governar o Mundo, editado já em Junho deste ano, a versão original é de 2012. Qualquer deles é interessante, as ideias que se apresentam fogem ao convencional, há passagens tão bem seleccionadas que apetece transcrever. O que não tenho a certeza é se aquilo que se debate naquelas páginas, precisamente por causa da sua sofisticação, produzirá alguma consequência significativa no comportamento dos actores, se Mazower não será mais uma reedição de outros autores que caíram no gosto e no goto do público (exemplo de Niall Ferguson) sem que as suas teses tivessem influenciado aquilo que veio a ser produzido pelos seus pares. Mas, mais uma vez, apetece-nos recuperar algumas passagens deste Governar o Mundo, caso destes parágrafos a respeito da mais recente crise que envolveu Portugal:
«Os custos reais deste modelo de integração internacional revelaram-se com uma rapidez espantosa quando o colapso financeiro de 2008-9 se metamorfoseou na crise da dívida pública de 2010. Com o fim do conto de fadas, o euro ficou mergulhado na incerteza. Os keynesianos disseram que a implementação de políticas de crescimento teriam provavelmente evitado o pior da crise porque o total das verbas necessárias para lidar com a dívida da Europa do Sul teria sido inferior, por exemplo, às gastas no âmbito do Plano Marshall em 1947. Mas nunca saberemos porque a sua implementação foi impedida pelas regras da Zona Euro e pela resistência política da Alemanha. Os países que se encontraram no meio da tempestade foram empurrados para a austeridade: o rendimento nacional contraiu-se rapidamente, os salários caíram, o desemprego disparou, em especial, entre os jovens, e as realizações da assistência social das décadas anteriores foram invertidas. (...)
Durante as negociações realizadas em 2010-11 para manter a Grécia no euro, os políticos viram-se limitados pela necessidade de evitar um «evento de crédito» cuja adjudicação não dependia deles nem de nenhum funcionário eleito, mas sim das deliberações de uma comissão da Associação Internacional de Swaps e Derivados, que se compõe principalmente de banqueiros. Os seus membros devem supostamente pôr de lado os conflitos de interesse decorrentes da posição das suas empresas e falar pelo conjunto do sector mas a falta de transparência do processo torna impossível saber se é assim. Também foi concedido um poder imenso a algumas agências de notação americanas, que chegaram há relativamente pouco tempo à avaliação de riscos globais (e que não têm sido nada de especial nesta actividade). Nenhum destes grupos adquiriu o seu poder automaticamente; conquistaram-no através de lóbi eficaz e de uma série de decisões políticas tomadas nos anos anteriores que permitiram que os mercados de capitais se regulassem praticamente a si próprios.
Só em 2008 começou a classe política europeia a reconhecer, nas palavras do presidente alemão, Horst Kohler , que os mercados financeiros eram "um monstro que tem de ser domado". A comprovação de que o sistema financeiro estava completamente viciado começou a afirmar-se com o aparecimento de provas inequívocas de que um pequeno número de bancos estava coludido na fixação do cálculo da taxas de juros interbancária do mercado de Londres ( Libor) - a taxa de juro básica subjacente ao valor impressionante de 350 triliões (mal traduzido: na realidade biliões) de dólares de veículos financeiros. A falta de interesse inicialmente gerada por esta história extraordinária - além das páginas do Financial Times - é bastante instrutiva. Se na vida financeira moderna os acrónimos são impenetráveis, as questões são tecnicamente complexas, a terminologia é eufemística, nada disto acontece por acaso: estes factores funcionam para realçar a mística do "mercado", em cujo nome ocorreram estes desenvolvimentos, e para dissimular as suas imperfeições e assimetria.
No entanto, ao mesmo tempo que estes elementos eram mais bem compreendidos, a crise revelou a habilidade dos mercados financeiros para protegerem os lucros privados e tornarem públicas as perdas, neste caso, numa escala colossal. Em 2008-9, os pacotes de resgate dos governos para o sector financeiro foram tão grandes que aumentaram o rácio endividamento/PIB de alguns países em 20/25%. Paradoxalmente, enquanto os governos ficaram enfraquecidos e, em muitos casos, entraram em crise, os participantes nos mercados receberam a assistência mas ao mesmo tempo mexeram-se rapidamente e com êxito para frustrarem qualquer todo e qualquer desafio regulatório sério. Os políticos denunciaram a irresponsabilidade dos banqueiros mas não lhes deram uma resposta eficaz. Pelo contrário, ajudado pelo dinheiro barato disponibilizado pelos bancos centrais - a flexibilização quantitativa representou uma forma extremamente tosca de estímulo monetário, a única forma de incentivo que restava a uma época que já não acreditava no planeamento - e sem ser afectado por nenhum imposto sobre as transacções financeiras globais, nem por pressões regulatórias significativas, o mercado dos derivados, que esteve na raiz dos problemas, tem continuado a crescer e o sector financeiro tem seguido em frente com muitos dos veículos novos e não colateralizados que contribuíram para a crise. Recorrendo a uma combinação e lisonjas e ameaças, os seus participantes principais demonstraram muito mais capacidade de acção colectiva, afirmação e sobrevivência do que os líderes dos estados europeus.»
Em toda a descrição acima só ficou a fazer falta, na história recente que nos diz directamente respeito, a peculiaridade portuguesa do estouro do BES no Verão de 2014. A extensa citação acima é de apenas de 4 páginas (pp. 440-443), ainda para mais incompletas, de Governar o Mundo. E se o leitor deste meu poste chegou até aqui, permita-me felicitá-lo, pois é um leitor atípico do que costuma ser a prática das redes sociais.
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