01 novembro 2015

PELO CENTENÁRIO DE UM DIÁRIO DE UM TURCO EM GALÍPOLI

Para os que seguem este blogue com regularidade, recordo que já para aqui transcrevera algumas passagens do diário de um cabo australiano que participara no desembarque de Galípoli, a península da Turquia europeia por onde os britânicos haviam tentado na Primavera de 1915 derrotar os otomanos. A operação saldara-se por um fracasso. Caíra-se num impasse que, desconhecido dos intervenientes, e continuando a contar o tempo pelos centenários, caminhava agora aceleradamente para o fim. É ocasião para transcrever algumas passagens de um outro diário, o de alguém que combatia do outro lado, o dos otomanos, Mehmed  Fasih que, sendo cadete da academia militar em Julho de 1914, promovido aceleradamente a oficial subalterno devido à guerra, é o que de mais parecido existirá com um militar por vocação naquele ambiente para onde foi (re)enviado no Outono de 1915.
18 de Outubro de 1915
Depois da 01H00. O meu abrigo é um buraco pequeno com um telhado de troncos e com uma entrada protegida por uma rede de arame, para impedir a entrada das granadas. Durmo numa cama de madeira com um colchão de palha, coberto por cobertores e um kilim (tapete). Outras peças do mobiliário são um candeeiro de parafina, a minha cafeteira e um fogareiro. Graças a Deus, sinto-me confortável. O meu impedido está no abrigo ao lado. É um bom rapaz obediente, com um coração puro.
02H00. Granadas inimigas a explodir fazem tremer o chão mas falham o alvo. Aterram ou à frente ou atrás das nossas posições. Hoje parece que estão a enviar mais presentes do que é usual. Sinto o receio do inimigo em cada um dos seus movimentos. Talvez os rumores sejam verdadeiros. A infantaria deles está a ser reduzida e substituída por artilharia.

21 de Outubro de 1915
12H00 Depois do almoço fui fazer uma inspecção às fortificações da nossa linha defensiva secundária. Quando lá estive com o meu antigo batalhão (Mehmed Fasih estivera algumas semanas em combate em Galípoli em Maio de 1915, antes de ser ferido e evacuado), tínhamos transformado o sítio num pequeno paraíso. Agora é uma tristeza, está tudo destruído, caótico. O local é tão deprimente que me faz querer chorar. Voltei ao meu abrigo e ataquei o meu cachimbo de tabaco, a primeira vez que o faço em dez dias. Continua o bombardeamento. Algumas granadas caem por perto. Explodem no local onde ontem mataram um dos nossos. Agora ninguém se aproxima de lá. 19H20 Muito cansado e adoentado. Fui-me deitar.

22 de Outubro de 1915
06H00 Acordei. Uma noite confortável. Sinto-me ligeiramente melhor. Os meus homens foram à procura de lenha. O tempo está nublado e ventoso. Continuei na cama.
07H00 Chegou a lenha. Levantei-me, tomei café e fumei o meu cachimbo. Deixei a minha imaginação vaguear por aquilo que poderia constituir a minha felicidade. Isso sim! Todos os caminhos para a felicidade parecem-me vedados. Recito a velha oração lamentando a falta de inspiração divina e encontro paz de espírito na compreensão que a inspiração divina só poderá vir de Deus. Saio do meu abrigo. Há camaradas que me convidam para tomar chá mas declino. Não me sinto com disposição. Sinto-me doente.

4 de Novembro de 1915
20H30 Intensifica-se o fogo sobre a nossa esquerda. Corro para as trincheiras. Os nossos soldados esquivam-se, à nossa esquerda estão mesmo a apanhar. O inimigo está a despejar a artilharia em cima de nós. Graças a Deus que as granadas não estão a acertar nas nossas trincheiras. O inimigo está a usar muitos foguetes para iluminar tanto as nossas linhas da retaguarda como as da frente. O benefício da iluminação acaba por ser mútuo. As granadas não parem de cair.
21H00 Da retaguarda ouve-se Allah! Allah! – o grito de encorajamento das nossas tropas. Seguem-se barulhos e depois silêncio. Então subitamente, o fogo irrompe e as granadas começam a aterrar à nossa retaguarda. 24H00 Enchi um cachimbo e pus a cafeteira ao lume. O tempo está ameno e descoberto. Um tiro ouve-se de quando em vez. Embora eu continue a apanhar os piolhos há sempre mais – não me consigo ver livre deles e ainda ando cheio de comichão. Tenho o corpo cheio de borbulhas vermelhas e róseas.
5 de Novembro de 1915
05H30 Às vezes há minutos seguidos em que não se ouve um tiro. Durante esses momentos em que o silêncio está em perfeita sintonia com a manhã que irrompe banhada pela luz da aurora, penso sobre o futuro e o passado. Oh que memórias agridoces dos dias que agora parecem fantasias da minha imaginação. São tão encantadores e parte-me o coração pensar neles, tento não o fazer, mas não o consigo.
08H00 O comandante de batalhão pede-me que o acompanhe numa volta pelas trincheiras. Apontou para um recanto acolhedor, sugerindo: “Sentemo-nos e fumemos uma cachimbada”. O local permite uma excelente vista dos arredores, embora esteja protegido por uma formação rochosa. Uma localização ideal para umas fumaças matinais ou ao fim da tarde. Começámos a volta. Enquanto caminhávamos deparámo-nos com um grupo de maqueiros carregando uma maca: “É o sargento Nuri.” Oh, meu Deus! A quantas mais tragédias me vais fazer assistir? Nuri fora atingido no peito, na cabeça, num braço e nas duas pernas. Cabeça e peito tinham ferimentos expostos. O cabelo estava misturado em tudo, o uniforme ensopado em sangue. Estava pálido, a boca entreaberta. Conseguem-se ver os dentes brancos entre os lábios. Os olhos estavam entreabertos, fixando o céu. Ainda se podiam destrinçar os seus traços fisionómicos, ainda atraentes. As mãos estavam fechadas sobre o peito. Parecia estar a amaldiçoar aqueles que o destruíram. Não consigo suportar mais aquilo.
Este rapaz era o responsável pelo treino dos novos reforços do batalhão. Não tinha nada que estar nas primeiras linhas. Durante os intervalos de almoços, porém, não havia maneira de o fazer estar quieto.
Tinha estado à porta do meu abrigo na noite anterior.
Meu bey (forma deferencial turca de tratamento), disse no seu tom de voz inconfundível, trouxe-lhe mais algumas munições. E agora veja-se lá! A perda de um soldado como ele perturba-me bastante. Já fui testemunha de tantas mortes e tragédias, mas nenhuma me afectou tão profundamente quanto esta. Os maqueiros pegaram na maca e prosseguiram.
Continuámos a nossa volta, mas tornou-se-me muito difícil prosseguir. Tinha-me decidido a comandar a guarda de honra de um subordinado pelo qual tinha tanto respeito. Pedi licença ao comandante de batalhão e apressei-me para chegar a tempo ao cemitério.
Obtive uma autorização especial para enterrar Nuri no talhão dos oficiais, o olival do barranco de Karaburun. Escolhi um local sob uma esplêndida oliveira. Muitos dos nossos mártires jazem no local e Nuri passará a ser mais um deles. Colocámos o seu corpo de forma a que a sua cabeça ficasse por debaixo da árvore. Apanhei ramos de oliveira e louro para os distribuir à volta do corpo. Quando o fixei, a minha dor fez-se sentir de forma tão sensível que me fui abaixo quando atirei o primeiro punhado de terra para o enterro.
Deixei as lágrimas fluir enquanto me dirigia a Nuri: “
Oh meu filho! É-me tão penoso pôr-te a descansar assim”. Os presentes começaram a chorar. Um dos seus camaradas conta-nos como Nuri lhe havia dito quando haviam chegado à frente os dois: “Imploro a Deus que me deixe tornar num mártir!” Oh Nuri! Os teus votos estão satisfeitos.
Enterrámo-lo. Foi vontade de Deus que tivesse sido eu a proferir o verso de abertura do Corão na ocasião. Quem se seguirá? Torno a ter dificuldade em controlar-me. Lágrimas quentes descem-me pelas faces. Haverá um dia em que tudo isto terá fim, como acontece a todas as coisas. Despeço-me e afasto-me na sepultura.
7 de Novembro de 1915
22H30 Está frio. O vento sopra cada vez com mais força. Vai uma enorme distância entre os pobres desgraçados que travam os combates e aqueles que apenas falam de heroísmo e de vitória enquanto se prepararam para a sua noite de núpcias com os seus pénis na mão, como se costuma dizer. Que tragédia será se todos aqueles que aqui ainda combatem tiverem que morrer como todos os que os precederam. Tudo para que um punhado de cobardes possam provar o sabor da fama.
23H30 Os sargentos saem. Cansado e ensonado, encostei-me a uma parede e deu-me para cantar baixinho.

9 de Novembro de 1915
16H00 O nosso comandante deu-nos boas notícias. Chegaram 300 vagões de munições, além de peças de artilharia de 21 e 24 cm e obuses de 15 cm. Teremos agora capacidade de bombardear o inimigo por 70 horas em vez das 22 originalmente previstas, a que se seguirá uma nova ofensiva.
A perspectiva de um sucesso para breve entusiasma-me tanto que me ofereci ao comandante de batalhão como fedai
(à letra o que se sacrifica. Os palestinianos popularizaram a designação) na próxima ofensiva. Ele ficou exultante.

21H00 Regressei ao meu abrigo. Abdulhalim Efendi ofereceu-me tahini halva e pão, que eu comi com gosto, por causa da fome que tinha.
22H00 Fui para a cama e adormeci ao som das granadas de artilharia e das balas dos franco-atiradores.

17 de Novembro de 1915
18H00 Chuva forte, tocada pela ventania, encharcando tudo. O meu próprio abrigo está inundado. Era agora que eu adorava ver aquelas pessoas que dizem que ser-se soldado é fácil, que estamos a ser demasiadamente bem pagos, a passar uma noite a dormir na lama. Será que se atreveriam a repetir o que haviam dito? Creio que não. Tenho 21 anos e o meu cabelo e barba estão a tornar-se grisalhos. O meu bigode é branco. A minha cara enrugada e o meu corpo apodrece. Não consigo suportar o que suporto por muito mais tempo. Ser um oficial otomano parece limitar-se a aguentar com granadas e bombas.

22 de Novembro de 1915
05H00 Sonhar acordado com uma família feliz. Será que vou sobreviver para ver o dia em que os terei? Eu sei que deveria estar infinitamente agradecido por tudo aquilo que tenho, mas porque é que, até hoje, não tive possibilidade de encontrar a felicidade real, daquele género que liberta o coração e conforta a alma? Deus meu! Será que me concederás essas coisas em vida?
E quanto aos meus homens? Tivemos até agora sete levas de reforços. Originalmente havia 200 em cada uma das nossas companhias, mas agora estamos reduzidos a 50 ou menos em cada uma delas. Os restantes tornaram-se mártires, ou estão feridos ou desaparecidos. Quanto aos oficiais, nenhum de nós escapou incólume. Esta luta continuada esgotou-nos.

08H00 Um frio de rachar morde-nos as mãos e as caras expostas. Se isto já está assim por agora imagino o que se irá passar. O que é que nos espera? Aconteça o que acontecer, havemos de nos habituar. Se tivermos de morrer duas vezes, até a isso nos habituaremos.

24 de Novembro de 1915
15H30 Quando cheguei à nossa trincheira deparei-me com o que fora uma grande poça de sangue. Coagulara e escurecera. Reconheciam-se pedaços de cérebro, osso e carne lá misturados. Um dos rastos de sangue conduzia à frente do meu abrigo. É o percurso dos maqueiros quando transportam os mortos da trincheira para a retaguarda. Fiquei preocupado ao entrar no abrigo. Estou a tornar-me cobarde. Tenho-me tentado convencer que o medo é fútil, seja onde for que estejamos, a morte há-de nos encontrar se for a nossa hora. Tenho que ser o mais cauteloso que puder, mas o que tiver de ser, será.
27 de Novembro de 1915
10H30 Encontrámos Agati (um oficial de outra companhia) desapontadíssimo. Mesmo depois de espicaçar os seus homens à baioneta, alguns deles recusaram-se a abandonar a trincheira e desataram a gritar como mulheres. Os que avançaram sofreram imensas baixas provocadas pelo fogo inimigo. Aquela unidade está totalmente desmoralizada.

4 de Dezembro de 1915
04H30 O meu impedido tentou acordar-me antes para fazer o relatório mas não o conseguiu. Estou agora a redigi-lo. Está tudo tão calmo que voltei para a cama. Dormitava quanto houve uma terrível explosão por perto. A terra caía em cima do meu abrigo, eu puxei o cobertor para proteger a cabeça e dei curso ao que seria o meu futuro. Será que virei a ter uma namorada? Senhor Deus, criador do Céu e da Terra e de todas as criaturas! Por favor deixa-me viver para que eu veja o dia em que possa usufruir dessas bênçãos. De outra forma, a minha vida será repleta de desejos e penas. Tento dormir mas passei a maior parte do tempo semi-acordado.

9 de Dezembro de 1915
15H00 Tinha começado a caminhar e não havia dado ainda dez passos quando ouvi o barulho característico de um obus a aproximar-se de onde eu estava. Apercebi-me que teria de me atirar para uma das trincheiras de apoio, que o obus soa a como se viesse apontado a mim. A explosão é impressionante. Segue-se o choque violento que me jogou contra os bordos da trincheira. Sinto uma dor na minha virilha esquerda. Aperto a minha mão em cima do sítio onde me dói e corro para o meu abrigo. O caminho está destroçado, coberto de terra solta. Há fragmentos de projéctil por todo o lado e o cheiro ácido do explosivo ataca-me as narinas. Aqui pode-se estar numa situação em que se confronta a morte em qualquer momento. Oh meu Deus! Em beneficio do teu santo nome, protegei-nos por favor!

13 de Dezembro de 1915
10H00 Fui ver o que os meus homens estavam a fazer. Sempre que passo pelo olival fico perturbado pela recordação de todos os que ali estão enterrados. O meu coração continua a dizer-me que no fim da guerra eles ressuscitarão para a vida. Oh meu Deus! Mostra misericórdia por todos aqueles que ainda estão em vida! E guia-nos! 18H00 Os meus homens estão a cantar as suas canções tradicionais. Falam de uma tristeza profunda e de um sentido de luto. Eles estavam a cantar essas mesmas canções na altura em que partimos de Mersin para vir para aqui. Só que a maioria dos que as cantavam na altura estão agora debaixo de terra.

19 de Dezembro de 1915
03H35 O comandante de batalhão chegou com a ordem para que preparemos rapidamente uma patrulha de reconhecimento. O inimigo havia retirado de Anafarta, expondo todo o seu flanco direito. Ofereci-lhe uma chávena de chá. A patrulha foi aprontada. Explicou-se-lhe que deveriam internar-se na terra-de-ninguém a partir do ponto onde a mina fora detonada.

Mehmed Fasih termina assim o seu diário que abrange praticamente todo o Outono de há cem anos. Na verdade, o inimigo australiano havia retirado de Galípoli (20 de Dezembro de 1915), quase oito meses depois de lá ter desembarcado, reconhecendo a inutilidade dos seus esforços e o fracasso da operação. Mas a guerra (e a carreira militar) não haviam acabado para Mehmed Fasih. Transferido para a Palestina, onde os turcos ainda defrontavam os britânicos baseados no Egipto, Fasih acabou aprisionado por estes últimos na península do Sinai, perto de Gaza, em Outubro de 1917. Mas isso esteve longe de ser o fim da sua carreira militar. Libertado com o fim da guerra em Novembro de 1918, veio a juntar-se às forças republicanas laicas de Mustafa Kemal que iriam governar e tutelar a Turquia durante o resto do Século XX. Quando da secularização da Turquia adoptou o nome de Kayabali; Mehmed Fasih Kayabali. Casou em 1924, teve dois filhos e uma carreira militar bastante bem sucedida: alcançou a patente de tenente-general em 1953 e foi nomeado chefe de estado-maior do exército turco em 1955. Aposentou-se em 1960. Faleceu em 1964 com 70 anos de idade. De notar o pormenor de o seu diário ter sido escrito em alfabeto arábico quando, a partir de 1928 e por causa das reformas de Kemal, o turco passou a ser escrito - ainda hoje o é - no alfabeto latino.

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