Antes do de hoje, só recordo duas outras ocasiões em que terei acompanhado com detalhe as cerimónias fúnebres de um governo prestes a ser derrubado. Foram ambas logo nos anos iniciais da nossa Democracia, quando a novidade desses procedimentos suscitava a nossa natural curiosidade. O primeiro caso foi nos finais do Outono de 1977, princípios de Dezembro, e o que estava em causa era a sobrevivência do primeiro governo do regime, apresentado pelo Partido Socialista no Verão do ano anterior (Só! Só! Só PS!). O governo só dispunha de maioria relativa e ia ser metralhado por três moções dos partidos da oposição. Um optimista como Soares ainda esperou que a oposição cruzasse as votações (i.e., que cada partido só votasse a moção que apresentara) e o governo sobrevivesse. Mas não foi assim e isso parece ter sido uma surpresa. Haverá por aí um vídeo (que já revi mais do que uma vez) com o momento da votação em que se pede aos deputados da primeira fila que se levantem e, ao verificar-se que todas as bancadas da oposição o haviam feito em simultâneo, ouve-se uma voz em off que constata: o governo acaba de ir ao ar!
Na outra ocasião que me lembro (como, de resto, acontecerá hoje) já não houve esse dramatismo. De uma certa forma, tenho pena que o PCP tenha estragado no Domingo aquilo que podia ser uma excelente cenografia parlamentar ao longo destes dois dias. O sentido da votação dos grupos parlamentares ser conhecida de antemão retira emoção às cerimónias, especialmente quando se trata de uma morte anunciada. Um Verão era por definição para um estudante ocioso e o de 1978 não foi diferente dos demais o que me permitiu acompanhar com algum desfrute os procedimentos da tomada de posse do III governo constitucional, constituído por iniciativa presidencial de Eanes e chefiado por Nobre da Costa. Que, como este de Passos Coelho, já se sabia que iria chumbar. Perdendo, o primeiro-ministro esteve bem, aproveitando a sua boa presença televisiva e aquilo que na política portuguesa rende sempre: a capacidade de se apresentar como vítima. Faltando a emoção, não me recordo de momentos memoráveis como a anterior, mas há uma cena em que Freitas do Amaral se passou, perdendo a fleuma, a compostura e a simpatia do seu eleitorado natural, transferida momentaneamente para o seu antagonista Nobre da Costa (também ele uma figura distinta).
Não sei como será hoje, mas quando ontem vi a expressão de Cecília Meireles (deputada do CDS/PP), ao receber a resposta envolta em charme de Pedro Passos Coelho a uma pergunta-frete que lhe fora encomendada (qualquer coisa a respeito do cumprimento do défice de 2015), apercebi-me melhor do fim de ciclo que, paradoxalmente, estava a ser proclamado mas do outro lado das bancadas. Eu bem sei que Cecília Meireles tem aquela expressão fechada de quem considera um sorriso uma forma de tributação fiscal – e ela não gosta visivelmente de pagar impostos... Mas manda o protocolo destas coisas que a deputada que apoia o governo finja sentir-se afectada com o charme derramado por aquele que o dirige. O pormenor é que Cecília Meireles nem sequer tentou... o que me leva à suspeita que, apesar de não ser notícia de jornal (andam entretidos com o Assis...), antecipando o desfecho é muito bem capaz de não haver muito love lost entre as duas formações do PàF. Uma última nota, esta cinematográfica: quem conhecer o enredo de Os Cavalos Também se Abatem (They Shoot Horses, Don't They? no original), cuja acção decorre durante o auge da Grande Depressão (1932) e tem por tema precisamente as suas consequências, aperceber-se-á que a minha invocação inicial é bem mais do que apenas um jogo de palavras.
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