03 abril 2018

A «BATALHA» DE MANNERS STREET

Sábado, 3 de Abril de 1943. Decorria a Segunda Guerra Mundial mas, desta vez, a «batalha» é para ser entendida no sentido figurado. Teve lugar em Wellington, a capital da Nova Zelândia (Manners Street - fotografada acima em 1942 - é uma das artérias principais da cidade) e os «beligerantes» foram as tropas norte-americanas que então ali estavam estacionadas (que «empenharam» cerca de 500 «combatentes») contra os militares neozelandeses a que se juntaram civis locais para «equilibrar» os efectivos da refrega - cerca de um milhar no total. Note-se que os tumultos generalizados em cidades onde os soldados norte-americanos se podiam recrear eram então frequentes, até mesmo nos próprios Estados Unidos, de que um exemplo famoso foram os tumultos das «fatiotas» ("Zoot Suit Riots") que tiveram lugar em Los Angeles, distúrbios que eu já tive aqui oportunidade de referir no Herdeiro de Aécio. Contudo, os distúrbios desse mesmo género que irrompiam no estrangeiro, nos países atrás das linhas da frente onde as tropas norte-americanas estavam acantonadas, casos da Austrália, do Reino Unido ou, neste caso, da Nova Zelândia, eram mais delicados e, ao mesmo tempo, consequência e causa de dificuldades de relacionamento entre os soldados americanos e as sociedades que os acolhiam, a que nem sequer o facto de empregarem um idioma comum parecia obviar*. Sendo incidentes a que não se podia aplicar a justificação canónica da proximidade da tensão dos combates, tornavam-se em potenciais problemas diplomáticos, mau grado a nítida vontade das duas partes em encerrar e abafar os incidentes. A «batalha» de Manners Street não foi o primeiro nem o último de tais tumultos. Nem sequer terá sido o maior, numa lista extensa mas que se sabe não ser completa, e cujo factor comum foi o empenho como foram abafados pelas autoridades da época. Mas, para além dos ciúmes despeitados que a presença dos yankees costumava despertar em todos os países que os alojavam, este episódio terá sido de todos os que se conhecem razoavelmente, aquele em que o choque de culturas a respeito da questão racial terá assumido proporções mais evidentes.
A «batalha» em si contar-se-á em poucas frases desde que se conheça o enquadramento da situação: naqueles anos cerca de 1 a 3% da população residente na Nova Zelândia era composta por militares americanos; no entanto e simultaneamente, a Nova Zelândia empenhava uma unidade expedicionária (composta por efectivos quase equivalentes aos americanos na Nova Zelândia) que combatia desde 1941 na África do Norte e na Europa mediterrânica. Como se imagina, as licenças do pessoal que compunha essa unidade não eram fáceis, dado que a Nova Zelândia ficava literalmente do outro lado do Mundo. Havia assim alguma sensação na sociedade neozelandesa que uma boa parte do seu esforço de guerra estava empenhado, por uma questão de prestígio no seio da Commonwealth, numa guerra que não era a sua, enquanto a que se travava à sua porta era entregue a outrem. O outro factor que teve a ver ainda mais directamente com os tumultos, prende-se com o estatuto que os polinésios (maoris) gozavam na sociedade neozelandesa que é impar. Apesar de serem uma minoria, a nação neozelandesa no seu conjunto apropriou-se das tradições guerreiras dos maoris como sinal identitário: significativamente, a selecção neozelandesa de rugby - os All Blacks - começa as suas actuações com um haka e é impossível imaginar as suas homólogas australiana ou sul-africana a fazerem algo de remotamente parecido; ou então as selecções brasileira de futebol ou canadiana de hóquei no gelo a reclamarem-se das suas ascendências ameríndias. Explicado assim, creio que é fácil fazer perceber o que aconteceu há 75 anos, quando os americanos terão tentado implementar os seus padrões raciais no Clube Militar da Manners Street, bloqueando o acesso aos maoris, assim como era corrente que acontecesse com os negros no sul dos Estados Unidos. Seguiu-se uma enorme batalha campal de contornos e consequências difusas que terá durado duas horas, provavelmente mais, que o rigor dos relatórios de época deixa imenso a desejar. Sobre as baixas, nada se sabe. Mas, já pelos padrões da época e muito mais pelos actuais, é difícil não deixar de simpatizar com a causa dos neozelandeses. Na fotografia mais próxima do assunto que encontrei na rede, tirada em meados de Abril de 1943 em Wellington, vê-se a banda dos Marines a ensaiar. Gostaria de imaginar que se trata de uma operação de relações públicas e de um gesto de reconciliação com os habitantes de Wellington depois da «batalha» de Manners Street...
* Esperanças teóricas e ingénuas nesse sentido podem ser compreendidas através da ideia que assolou o presidente americano Franklin Roosevelt por esses anos, que, na eventualidade de uma ocupação dos Açores pelos Estados Unidos, a aceitação do gesto pelos portugueses seria facilitada se as tropas de ocupação fossem... brasileiras.

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