30 novembro 2007

O TOP DO ROCK EM STOCK E OS CONCURSOS DA BLOGOSFERA

Eu tinha um amigo, o José Carlos, que, nos princípios dos anos 80, era um ouvinte e fã incondicional do Rock em Stock, um programa que passava na Rádio Comercial, apresentado por Luís Filipe Barros. Era de um entusiasmo tal que chegava aos limites do religioso o rigor com que acompanhava semanalmente o top donde constavam os singles e os LPs mais votados pelos ouvintes, cuja classificação e evolução anotava conscienciosamente.
Um certo dia, descobriu-o descoroçoado e desiludido: a parcialidade do apresentador em prol de certos grupos, de há muito suspeitada, revelara-se em todo o seu esplendor quando interrompera a transmissão de um top (oh, heresia!...) para passar um disco de um dos grupos protegidos, os Devo, que acabara justamente de chegar… Uma m…. de disco ainda por cima! Mais céptico e menos entusiasta por rock do que ele, lá fiz o que pude para o consolar…
Evoca-se-me este episódio sempre que me deparo com concursos em que os animadores dos mesmos, passando por animá-los, levantam as suspeitas de os querer animar em favor de alguns concorrentes. Já passaram mais de 25 anos e mesmo aquele meu amigo, que era um pouco ingénuo, logo ali ganhou a maturidade para deixar de acreditar no rigor e seriedade dos entusiasmos e animações do Luís Filipe Barros…
A idade madura tornou-nos a todos ainda mais precavidos e, seja qual for o concurso e, por exemplo, por muito que queira acreditar que o Pedro Correia possa ser um bom rapaz animado, não há boa reputação que substitua a visão tranquilizadora daquelas tradicionais expressões bisonhas dos representantes do governo civil que apareciam antes do sorteio do totoloto para nos transmitirem a sensação que aquilo é coisa séria, em que podemos confiar…
Já chegou a classificação que o LP dos Devo atingiu na semana seguinte…

PAQUISTANESES DE UM PAQUISTÃO DESAPARECIDO – OS BIHARIS MUÇULMANOS

Raro será o livro sobre o Paquistão e a sua história que não comece pela questão da sua própria identidade nacional. Idealizado como o Estado que agruparia os muçulmanos da Índia para os preservar da dominação hindu que se seguiria à independência, aos 60 anos de existência, os sucessivos dirigentes do Paquistão já quiseram fazer dele coisas distintas, mas em nenhuma dessas versões ele parece ter encontrado a tranquilidade para viver consigo mesmo.

Mais uma vez, os acontecimentos recentes que ali têm ocorrido relembram isso, mas o propósito deste poste é o de contar uma pequena história de uma pequena comunidade de refugiados (ínfima pelos padrões indianos: 300 a 500 mil pessoas…) que, como acontecia com os palestinianos, não têm nacionalidade. Mas, para contar a sua história, é preciso regressar a 1947 e às vicissitudes que acompanharam a divisão da Índia britânica entre a Índia e o Paquistão.
Se o Paquistão era um Estado a formar com as províncias indianas onde houvesse uma maioria de população muçulmana, então os acasos da geografia humana haviam pregado uma partida ao futuro país porque existiam duas regiões de predomínio muçulmano no subcontinente: uma a Ocidente, sobre o Rio Indo, outra a Oriente, sobre o delta dos Rios Ganges e Bramaputra. Como se vê pelos mapas, o Paquistão nasceu logo dividido em duas regiões apartadas por mais de 1.500 quilómetros…

Mais do que isso, quase metade de toda população muçulmana da Índia colonial estava espalhada por detrás das novas fronteiras do novo Estado indiano de maioria hindu. De igual forma, havia importantes minorias não muçulmanas no novo Paquistão. Os anos de 1947 e 1948 assistiram a um fluxo de milhões de deslocados que se cruzavam num sentido e noutro porque haviam ficado do lado errado da fronteira. Entre os que fizeram essa viagem contavam-se os biharis que se mudaram para o Paquistão Oriental.
Bihari é a designação de um nativo do Bihar, um estado predominantemente hindu e um dos mais pobres da Índia actual. Mas os biharis muçulmanos que emigraram para o Paquistão em 1947 eram particularmente mais qualificados que a média geral da população, sentindo-se ameaçados no seu estatuto sócio-económicos pela nova situação política que se viria a desenvolver com a independência. E, por causa da proximidade geográfica, esses emigrantes preferiram partir para o Paquistão Oriental, onde se instalaram.

O Paquistão Oriental pode ser considerada uma outra aberração da Partição de 1947, resultado da aplicação do critério religioso à construção de fronteiras numa região (Bengala) onde a identidade cultural a desaconselharia. Ficou a existir um Bengala Oriental (muçulmana) ao lado de uma província indiana de Bengala Ocidental (hindu, com a cidade capital: Calcutá), compartilhando a mesma língua e cultura bengali, reputada mundialmente desde a atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1913 a Rabindranath Tagore.
Como o idioma nacional do novo Paquistão passou a ser o urdu (ainda é assim, é esse idioma do exército e dos discursos de Musharraf), que era o idioma materno dos biharis fugidos da Índia, e também devido às suas qualificações, estes dispuseram de oportunidades melhores de colocação nos novos postos administrativos do Paquistão Oriental do que os bengalis locais, a ponto de estes últimos passarem a equiparar os primeiros a representantes de um poder central (sedeado no Paquistão Ocidental) que lhes era alheio.

Com a independência do Paquistão Oriental, rebaptizado Bangladesh, em 1971, os biharis – na altura estimados em cerca de um milhão – foram escorraçados pelo novo poder político e começou o seu calvário de refugiados apátridas que perdura até hoje: já se havia passado uma geração (24 anos) desde que os mais velhos haviam abandonado a Índia – embora expulsos do Bangladesh, esta já não os considerava seus nacionais. O Bangladesh, por sua vez, considerava-os nacionais paquistaneses…
Mas o Paquistão, por sua vez, nunca mostrou particular interesse em assumir a responsabilidade total pela sua repatriação, argumentando que tendo optado pela emigração para o Paquistão Oriental em 1947, eles se haviam tornado, por inerência dos acontecimentos de 1971, cidadãos do Bangladesh. Nos 36 anos seguintes, soluções parciais (retorno ao Bangladesh, dispersão pela Índia, emigração para o Paquistão, o Golfo Pérsico ou a Europa) reduziram o seu número a metade ou a um terço do milhão original.

Proporcionalmente, no subcontinente indiano, estes 300 a 500 mil refugiados apátridas de origem bihari e cultura urdu são uma mera gota de água no oceano populacional dos quase 1.500 milhões de habitantes que ele contém. Mas nada os consegue substituir no simbolismo que representam de filhos rejeitados de um projecto nacional que, mais de 60 anos depois de ter sido ambicionado, concretizado e proclamado, continua a não ter a segurança de haver protagonistas vivos que expliquem claramente o que ele é…

29 novembro 2007

OS INTOCÁVEIS

Os Intocáveis do FBI capitaneados por Elliot Ness passavam os episódios da série a azucrinar a existência dos rapazes de Al Capone e o próprio, mas a verdade do que realmente aconteceu é que, falho de outros processos para o condenar por todas as suas actividades ilegais (incluindo assassinatos), o FBI só conseguiu levar Capone a Tribunal por evasão fiscal… Depois, ali, a acusação conseguiu apimentar o caso de tal forma que Capone foi condenado a 11 anos de prisão, dos quais cumpriu sensivelmente metade…
A estadia na prisão destruiu a estrutura informal do bando de Capone e este episódio costuma ser apresentado pela perspectiva do mérito imaginativo dos agentes da Lei, que conseguiram condenar Capone, apesar de tudo. Visto numa outra perspectiva, é um fracasso enorme do aparelho policial, que não conseguiu obter provas para as acusações verdadeiramente graves que incidiam sobre Capone. Aplaudir a condenação de Capone a qualquer coisa apenas por ele ser quem é, é esquecer a venda da estátua da justiça…
Outra história: aqui há uma meia dúzia de dias, na sua crónica dominical do Público, António Barreto fez um certo furor apontando alguns dos absurdos provocados pela adopção dos regulamentos sobre restauração oriundos de Bruxelas. Barreto é um cronista consagrado, alguém que pensa lucidamente, e por isso considero mais do que involuntária a falta de distinção na sua crónica entre as responsabilidades de quem produz a legislação e as de quem tem que a implementar - a famigerada ASAE
Bem sei que o impacto de apontar o dedo para uma organização concreta recolhe muito mais popularidade que a abstracção de culpabilizar todo um aparelho legislativo que transpôs acéfala e metodicamente todas as normas comunitárias relacionadas com a restauração, absortas da realidade nacional. Mais demagógico ainda, há agora a possibilidade, de argumentar que o ideal europeu também se pode concretizar na proibição de poder beber uma imperial frequinha como a de baixo, numa qualquer esplanada, entre outros absurdos (os copos têm de ser de plástico…).
Mas, prova de que os absurdos argumentativos andam de um lado para o outro em todo este assunto, parece que há quem queira levar uma outra questão aparentada (a da desvantagem da pastelaria e dos salgados caseiros sobre os produzidos industrialmente) para o campo da justiça fiscal… Se bem compreendi a lógica do argumento, agradece-se que um dos efeitos colaterais das fiscalizações da ASAE seja a de repor a equidade fiscal num ramo de actividade que há trinta anos o faz à revelia das obrigações fiscais.
Ora, a César o que é de César. Regozijo-me porque as investigações da ASAE estão a ser muito eficazes, mas é sempre preferível que sejam as investigações da DGCI a mostrarem eficácia igual para resolverem os problemas fiscais dos fornecedores das empresas de restauração, e não se espere, à portuguesa, que sejam os organismos que funcionam que resolvam tudo, com competências que não lhes competem. No caso Capone, apesar das aparências, a metralhadora de Elliot Ness, apesar do figuraço, só lá aparece para impor respeito, a investigação foi feita – como tinha de ser… - com papel e lápis.

28 novembro 2007

A GLOBALIZAÇÃO NÃO TÃO INEXORÁVEL…


O Imperador romano Vespasiano disse, em certa altura, ao seu filho e sucessor Tito, que o dinheiro não tinha cheiro. Mas não tendo cheiro, tem nacionalidade, problema que não se punha durante o período romano, quando o Império abrangia quase todo o mundo civilizado que se conhecia. E assim continua, que a globalização que se costuma proclamar inexorável tem percursos de um nacionalismo confesso.

Hoje, quando saiu uma notícia de congratulação porque se aliviou a pressão sobre a fábrica da Volkswagen em Portugal (Auto-Europa) que afinal está destinada a produzir Pólos, conjuntamente com a fábrica espanhola de Pamplona, há que não esquecer a coacção a que todas as fábricas da Europa ocidental estão sujeitas, comparando os seus indicadores de rentabilidade com os da fábricas da Europa de Leste…

Mas, não é apenas Palmela a ver-se debaixo de fogo. Também a fábrica da Volkswagen em Bruxelas (Forest) se viu debaixo da coacção de encerramento e relocalização num país da Europa da Leste, não tivesse sido aceite pelos sindicatos um plano de reestruturação em Fevereiro deste ano que colocou a unidade a produzir Audis. Em qualquer dos casos parece que os indicadores de produtividade e rentabilidade são inexoráveis…

Será? Não deixa de ser curiosa a coincidência de que as unidades fabris da Volkswagen na Alemanha raramente se vejam em circunstâncias semelhantes, de reestruturações e reduções de pessoal sob a ameaça de encerramento. Mas, pelos vistos, é da marca, que nem todas as fábricas alemãs são assim tão produtivas… É que ali também há fábricas de que encerram, mas essas são as da Opel, pertencentes ao grupo da General Motors, onde o capital é norte-americano…

Globalizar, deslocalizar, mas devagar…

27 novembro 2007

O(S) GAG(S) DOS QUATRO ANOS

Teve imensa piada, e compartilho totalmente a gargalhada virtual de Vítor Dias, a propósito do gag protagonizado pelo líder da Juventude Centrista, de seu nome Pedro Moutinho, quando nomeou Bernardino Soares como um dos principais protagonistas dos distúrbios revolucionários do Verão Quente de 1975, altura em que o seu camarada tinha apenas quatro anos…

A propósito de quatro anos, mas quatros anos diferentes, será que Vítor Dias compartilhará a minha gargalhada que acompanha a pergunta sobre se o mesmo Bernardino Soares aproveitou os últimos quatro anos - desde 2003... - para conseguir esclarecer as suas dúvidas sobre a natureza do regime da Coreia do Norte? Ou será que também no humor Vítor Dias respeita o centralismo democrático?

KARACHI – LAHORE – ISLAMABAD

O Paquistão tem uma capital política – Islamabad – e uma capital económica – Karachi – que é também o porto mais importante e a maior cidade do país. Foi por Karachi que Benazir Bhutto escolheu regressar ao Paquistão quando recebeu autorização para tal. Mas Karachi também é a capital do Sind, a região paquistanesa que sempre constituiu a base do poder da família Butho, e terá sido por isso que Benazir escolheu a cidade para marcar o seu retorno.
O seu grande rival histórico, Nawaz Sharif, cuja base do poder da sua familia é a região do Punjab, preferiu regressar por Lahore, a cidade capital dessa região (a mais povoada do Paquistão) e a segunda maior cidade do país. O Presidente (e General...) Pervez Musharraf continua a residir, naturalmente, em Islamabad. Pessoalmente, Musharraf não é suspeito de mostrar preferências por sindis ou por punjabis: é um mohajir, descendente dos muçulmanos que abandonaram a Índia em 1947, nascido em Deli.
Em contrapartida, o juiz Iftikhar Chaudhry, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça que se opôs à reeleição de Musharraf e foi removido por ele, é um punjabi. Mas o seu substituto interino, escolhido pelo mesmo Musharraf, Abdul Dogar, é um sindi. Muito se fala das tribos das regiões altas do Paquistão, aparentadas com as do outro lado da fronteira (Afeganistão), mas parece que as soluções políticas para a integridade do país terão que ser primeiro encontradas com os povos das terras baixas das margens do Rio Indo...

26 novembro 2007

HECKLE E JECKLE

Vasco Pulido Valente não perde qualquer ocasião que lhe surja para, nos seus escritos, se fazer passar por um cosmopolita, aquele que esteve numa universidade de Inglaterra, que paira por cima dos comportamentos cá da parvónia. Vale a pena o gesto: cá na parvónia costumamos ser pequenos e mesquinhos, propensos a rivalidades ferozes, onde o espaço para se conseguir brilhar é acanhado e disputado. Não é concebível que se idolatre os Gato Fedorento sem primeiro nos descartarmos de Herman José, por exemplo. Simplesmente, não pode haver dois bons grupos de comediantes em concorrência...

Mas há momentos onde se revela que, por detrás daquela pose, Pulido Valente será tão filho da sua terra como os demais, sujeito às mesmíssimas regras. A sua apreciação sobre Rio das Flores, o novo livro de Miguel Sousa Tavares*, que foi publicada no Público do passado dia 24, mostra muito mérito e muito método**. Contudo, e por mais que o próprio tente desmentir no texto que escreve, durante a leitura nunca me conseguiu fazer alhear de quanto por detrás daquela crítica poderá estar a disputa pelo primeiro lugar do cronista português que consegue dizer as coisas de forma mais desassombrada… Foi esta gente para o estrangeiro e, se calhar, além da pose, não aprenderam (mais) nada...

* Sintetizada em: Vale pouco ou nada como romance histórico, é pobre e vulgar como romance de família.
** É imprescindível não esquecer, por outro lado, que Vasco Pulido Valente também já escreveu uma prosa desculpabilizando (desastradamente) as acusações de plágio (flagrante) que incidiram sobre Clara Pinto Correia, o que me faz levantar (todas as) reservas quanto à independência e idoneidade dos seus comentários.

DO DÓLAR AO PETRÓLEO

Pode considerar-se que a política interna e externa da Administração Bush teve um impacto mensurável na reputação (cotação) da sua moeda quando comparada com o euro. Assim, desde Outubro de 2000, quando o dólar valia sensivelmente 1,2 euros, até Novembro de 2007, quando o euro vale aproximadamente 1,5 dólares, houve em 7 anos uma depreciação relativa de cerca de 80% da moeda norte-americana em relação ao euro e à sua cotação actual ...
Actualmente, cerca de 2/3 de todas as transacções internacionais e das reservas de divisas continuam a ser feitas em dólares. E, no conjunto, essas proporções não podem sofrer alterações significativas de forma brusca: não há nenhum país que se permita anunciar um belo dia que pretende trocar a parcela das suas reservas em dólares por outra coisa qualquer. O caos daí resultante na cotação do dólar transformaria as suas próprias reservas em papel sem valor…
Mas quando uma moeda começa a perder o seu valor relativo ao ritmo a que isso tem acontecido ultimamente com o dólar, é natural que quem possua aplicações nessa moeda as queira converter gradual, mas discretamente, noutros bens que não estejam sujeitos ao mesmo desgaste dessa inflação. Só que os operadores que têm essas preocupações não costumam ser particularmente imaginativos e tendem a copiar-se quanto às escolhas…
Entre os exemplos de especulações do passado, há algumas que são extremamente exóticas, como a que envolveu os bolbos de tulipa (acima) nos Países Baixos do Século XVII. Mas, mesmo mais recentemente, numa outra crise de confiança com o dólar, na sequência do segundo choque petrolífero, assistiu-se a momentos emocionantes do mercado do ouro no princípio da década de 80, conforme se pode constatar pelo gráfico abaixo…
Ultimamente, o comportamento do preço do petróleo parece estar a escapar às análises de quem tem tentado explicar a formação dos preços a partir do ritmo dos ajustamentos da produção e do consumo. A correlação entre boas e más notícias e a descida ou subida da cotação do preço do barril de petróleo tem andado próxima de zero, a ponto de fazer os especialistas passarem por palhaços que nada percebem do negócio. A explicação tem de ser outra.
Uma que, para mim, parece ter a virtude de justificar porque não se tem conseguido explicar a irracionalidade do comportamento das cotações mais recentes do barril de petróleo é a de que o petróleo está a ser objecto de uma utilização especulativa como activo financeiro, em alternativa ao dólar, tal qual aconteceu ao ouro nos princípios da década de 80. A revista Foreign Policy publicou um interessante artigo precisamente sobre esse tema.

25 novembro 2007

OS FLAGELADOS PELO FRIO

Veja-se o que pode acontecer a um anónimo deputado socialista, daqueles menos conhecidos que se costumam sentar nas filas de trás, quando lá não está um deputado conhecido como Manuel Alegre para argumentar com a eloquência e a veemência que se lhe reconhece pelas condições de salubridade do local de trabalho dos backbenchers* socialistas

* Expressão da tradição parlamentar britânica, referindo-se precisamente aos deputados com menos visibilidade, que se sentam tradicionalmente nos lugares de trás.
Nota: Na realidade a fotografia é de um soldado soviético, morto de frio na Batalha de Suomussalmi, durante a Guerra de Inverno (Dezembro de 1939) travada entre a Finlândia e a União Soviética. O desconforto em Suomussalmi deve ter sido superior ao de São Bento...

24 novembro 2007

LEOPOLDO III, O REI QUE TEVE DE DECIDIR

O estratagema de evacuar os símbolos da soberania nacional quando de uma invasão por uma potência continental tem precisamente 200 anos. Foi aplicada pela primeira vez na Europa em Novembro de 1807 quando a França invadiu Portugal, e a monarca portuguesa da época, a Rainha Maria I (1734-1816), já demente, foi evacuada conjuntamente com o Príncipe Regente, o seu filho João (1767-1826), e os restantes membros da Casa Real para o Brasil, então a mais importante colónia portuguesa. A legitimidade da pessoa do soberano escapava assim a Napoleão.

Em Abril e Maio de 1940, um problema muito semelhante tornava a pôr-se aos países então invadidos pela Alemanha: Dinamarca, Noruega, Luxemburgo, Bélgica, Países Baixos e França. Naqueles países que eram monarquias (todos, excepto a França), na impossibilidade de conseguir resistir à ofensiva alemã, os monarcas foram também evacuados para o Reino Unido, conjuntamente com os respectivos governos nacionais. Houve contudo duas excepções: a Dinamarca, onde a rapidez da invasão não possibilitou a evacuação de qualquer deles, e a Bélgica, onde o governo partiu para o exílio, mas o monarca não…
Ao contrário do que acontece frequentemente nas monarquias, onde muitos dos cargos desempenhados pelos monarcas são apenas honorários, o Rei dos belgas, Leopoldo III, (1901-1983) era um monarca que se orgulhava de exercer de facto as funções de Comandante-Chefe das Forças Armadas. Havia também o precedente histórico da Primeira Guerra Mundial, quando o pai de Leopoldo, o Rei Alberto I (1875-1934), desempenhara precisamente o mesmo papel durante os quatro anos (1914-18) que durara o conflito. A Bélgica incorporara a figura do Rei Soldado.

E também incorporara uma particular atenção com a sua segurança e defesa. O exército belga contava em Maio de 1940 com 610.000 efectivos e estava tão bem (senão mesmo melhor) equipado e preparado do que os seus homólogos e aliados. Trata-se apenas de um pormenor, naquela hecatombe geral que levou à derrota francesa em Junho de 1940, mas não deixa de ser significativo que a resistência holandesa (teoricamente mais forte) tenha durado apenas 5 dias (de 10 a 15 de Maio de 1940), enquanto a belga tenha durado 17 (até 27 de Maio de 1940). A decisão da capitulação foi de Leopoldo III. Mas antes, houve um intenso debate dramático a precedê-la. O governo belga, chefiado por Hubert Pierlot (1883-1963, acima) , considerava que a situação militar não desligava a Bélgica da solidariedade política para com os seus aliados franceses e britânicos, para mais depois de se ter solicitado o seu auxílio para repelir a invasão alemã. Em consequência, o governo manifestou ao monarca a sua intenção de prosseguir a luta no exílio e pede-lhe que proceda da mesma forma* subtraindo ao invasor a pessoa que corporizava a soberania nacional.

Leopoldo recusou. Pela sua leitura da situação, a causa dos Aliados estava perdida, a França capitularia por sua vez dentro de dias e o Reino Unido só poderia continuar a guerra através das colónias. Em consequência, o papel da Bélgica na nova Europa seria muito limitado e competia-lhe a ele como monarca partilhar os sofrimentos do seu povo e como comandante partilhar o cativeiro dos seus soldados… A tensão na reunião atingiu limites quase insuportáveis mas as partes mantiveram-se inflexíveis. Os membros do governo partiram para Londres e o Rei e o seu séquito mantiveram-se em Bruxelas.
Em Junho de 1944, no seguimento dos desembarques aliados da Normandia, os alemães transferiram o cativo, mais descaradamente cativo a partir daí, para a Alemanha. Mas na Bélgica, ainda mais do que nos outros países, para um monarca reinar é indispensável que goze da confiança de todas as partes. E na esquerda política belga e entre os francófonos essa confiança ficara irremediavelmente abalada pela sua decisão de 1940. O pretexto próximo foi um episódio da vida privada do Rei que, depois de enviuvar em 1935, veio a casar em 1941 com Lilian Baels (acima), uma belga de ascendência flamenga.

Quando em Junho de 1945, depois do fim da Guerra, o Rei manifestou intenção de regressar à Bélgica o governo do socialista Achiel Van Acker ameaçou demitir-se, iniciando um período de instabilidade política de 7 governos durante os 5 anos seguintes (Fevereiro de 1945 a Agosto de 1950). Entre as causas dessa instabilidade, havia o problema da Chefia do Estado, que se tentou resolver em Março de 1950 com um referendo. Nele, 57,7% dos belgas pronunciaram-se favoravelmente ao regresso do monarca. Mas entre os francófonos da Valónia, 57,8% votaram contra. O Rei acabou por abdicar no seu filho Balduíno, em Julho de 1951…
Leopoldo III viveu discretamente até 1983. Objectivamente, e apesar de sempre controversas, nunca as investigações levadas a cabo sobre a sua conduta produziram aqueles rumores de colaboração com os alemães ou de fascínio pelas ideias do regime nazi como aconteceu, por exemplo, com Eduardo VIII de Inglaterra, um outro ex-monarca forçado a abdicar. Leopoldo III parece ter sido um homem rigoroso quanto a questões de honra – há quem diga que essa foi a causa para o seu casamento com Lilian Baels (que estava grávida). A época em que viveu é que nem por isso…

* Como já haviam feito o Rei Haakon VII da Noruega, a Rainha Guilhermina dos Países Baixos e a Grã-Duquesa Carlota do Luxemburgo.

23 novembro 2007

O ESTUDANTE ABATIDO

A fotografia sobre o estudante morto a tiro quando se manifestava não é uma fotografia da Guerra do Vietname, mas uma fotografia que ficou associada à Guerra do Vietname. É uma espécie de gesto de reconhecimento que, mesmo os que não participaram mas se envolveram na Guerra, também tiveram as suas baixas. A fotografia data de 4 de Maio de 1970 e foi tirada na Universidade Estadual de Kent, no estado norte-americano do Ohio, e é a terceira maior universidade do estado.
O acontecimento que projectou uma universidade secundária para as primeiras páginas dos noticiários foi um enorme percalço numa cadeia de acontecimentos que se enquadravam numa campanha nacional universitária de protesto contra a Guerra do Vietname que fora marcada para os inícios de Maio desse ano, e que se havia reforçado inesperadamente (a 30 de Abril) com o reconhecimento público pela Administração Nixon do alastramento do conflito ao Camboja.
Desde sempre que se travava uma guerra oculta no Camboja e no Laos. Esses dois países albergavam corredores de reabastecimentos por onde passava grande parte do apoio logístico aos guerrilheiros do Vietcong e às tropas norte-vietnamitas (acima - a trilha Ho Chi Minh) que combatiam no Vietname do Sul. Só a conveniência política das duas partes impedia que o facto fosse assumido. Escandalizar-se devido ao reconhecimento dessa evidência só se podia dever a ignorância, ingenuidade ou hipocrisia…
A verdade é que as manifestações ganharam uma dinâmica suplementar com o anúncio da invasão do Camboja. As responsabilidades pelo que veio a acontecer começam por assentar nas pessoas da fotografia acima. Uns, os civis, por terem solicitado a presença dos soldados da Guarda Nacional, outro, o militar, por não os ter sabido controlar. Neste caso, a fotografia do estudante abatido (chamava-se Jeffrey Miller) sintetiza bem o que aconteceu: 4 manifestantes foram mortos a tiro* quando fugiam do gás lacrimogéneo.
O comportamento dos militares foi indesculpável: apurou-se depois que os mortos estavam entre os 80 a 120 metros de distância dos atiradores… Mas todo este episódio deveria ter sido evitado não fosse uma ideia errada que já repetida vezes demais. A esmagadora maioria dos militares** são treinados para lidar com um inimigo e para neutralizá-lo de qualquer forma… Em democracia, o exército não pode ser entendido como se fosse uma espécie de polícia musculada para situações mais complicadas…
Há unidades de polícia de choque, outras de polícia de intervenção, há mesmo grupos especiais de combate para situações envolvendo reféns, mas confundir funções policiais com funções militares – como aqui aconteceu – é esperar que os soldados esqueçam ou improvisem sobre a natureza do treino que receberam… e isso costuma dar mau resultado.

* Houve também nove feridos – um deles ficou paraplégico.
** Apesar de haver uma especialidade de Polícia Militar.

22 novembro 2007

ANTES DA PLAYSTATION

Antes da existência da Playstation, o brinquedo mais tecnológico que me lembro de ter tido terá sido o meu comboio eléctrico que, conjuntamente com as pistas de corridas de automóveis e poucas coisas mais, seriam os brinquedos de utilização mais sofisticada daquela geração. Falar do comboio eléctrico lá de casa como meu é uma forma generosa de colocar a questão da sua propriedade e do seu usufruto…
Muito mais tarde, aprendi na faculdade que em casos de brinquedos tão dispendiosos como aqueles, a promoção (publicidade) deveria ser dirigida ao adulto, porque era o proprietário da carteira… Era ele o decisor da compra e, na maioria das vezes, era também o adulto o que mais se entretinha, embora precisasse da presença da criança, como álibi. E, pelo menos ao princípio, lá em casa era isso que acontecia…
O comboio era Märklin, uma marca alemã reputada pela sua qualidade de construção. Confirmo a reputação: as peças originais, hoje com mais de 40 anos, ainda funcionam todas… Mas esses 40 anos que se passaram desde então levaram-me a atribuir um outro valor aos catálogos de promoção dos artigos. Porque se eram os equipamentos que permitiam a brincadeira, eram os catálogos que permitiam o sonho…
Esses catálogos, para além das fotografias de máquinas, carruagens, vagões, linhas rectas e curvas, agulhas, passagens de nível*, estações, túneis e pontes, e tudo o mais que possa existir de adereços, aguçavam-nos a cobiça, reunindo tudo aquilo em grandes fotografias de modelos de escala de comboios evoluindo em paisagens alpinas de uma Europa imaculada que não era nada parecida com a nossa…
Hoje, parece-me que os comboios eléctricos deixaram de ser aqueles brinquedos de crianças com que os adultos brincavam, para se assumirem descaradamente como um hobby de adultos. E a promoção aos brinquedos caros passou a ser dirigida quase exclusivamente às crianças logo desde a idade em que já conseguem escolher**… Os adultos ainda são os proprietários da carteira, mas isso parece não querer dizer nada…

Espera que esteja ronronante, Donagata, por me ver continuando a cadeia, tentando explicar como já havia tecnologias antes da Playstation – e antes de José Sócrates…

* Coisa que os da geração da Playstation já nem deve saber o que é…
** Veja-se a publicidade das emissões matinais de televisão do fim de semana, quando se aproxima o Natal...

21 novembro 2007

SÉRVIOS: DE CARRASCOS A VÍTIMAS?

As políticas externas das potências nunca foram coerentes. Quem se dedicar a buscar contradições entre os seus discursos e as suas práticas, ou a descobrir inconsequências nos argumentos que as suas chancelarias invocam a propósito de cada crise internacional tem tarefa semelhante à de contar grãos de areia numa praia…Mas há potências que são simultaneamente países com uma opinião pública que funciona…

São limitações provocadas pela sua existência que, por exemplo, mantiveram por mais de 30 anos uma enorme contradição entre o discurso e a prática dos países ocidentais quanto ao regime da África do Sul. Nalguns casos, ou certas atitudes são insustentáveis, ou não se pode abusar das incoerências, ou não se pode encadear com demasiada proximidade temporal inflexões radicais nos princípios invocados previamente...

Este preâmbulo justifica-se por causa daquilo que está a acontecer no Kosovo. A vitória dos independentistas nas eleições de Sábado passado e a sua anunciada intenção de proclamarem a independência do Kosovo já no próximo dia 10 de Dezembro arrisca-se a pulverizar toda a teia argumentativa que teve de ser tecida pelas diplomacias naquela região ao longo de mais de dez anos com a intenção de a poder pacificar.

Há que recordar que, no princípio, quando os maus eram os sérvios (que, sendo maus, não eram os únicos maus…) que queriam redesenhar as fronteiras de acordo com a residência das populações, englobando os sérvios que viviam em regiões doutras antigas repúblicas jugoslavas, nomeadamente na Bósnia, as potências acabaram por estabelecer a regra que não se podiam alterar essas fronteiras internas da Federação Jugoslava.

Por isso, se bem se recordam, nos Acordos que encerraram os tempos mais tenebrosos pós- cisão da Jugoslávia, não se falava em autodeterminação dos povos, nem em referendos para que as populações decidissem o seu futuro, como costuma ser a doutrina oficial da ONU nestas ocasiões... Não dava jeito que se aplicasse aos Balcãs: há milhões de sérvios fora das fronteiras da Sérvia que se mostravam desejosos de nela se integrarem…

Com a independência do Montenegro da Sérvia em 2006 a regra da transformação das fronteiras internas da antiga Jugoslávia em fronteiras internacionais foi levada à categoria de axioma: todas as antigas repúblicas federadas da antiga Jugoslávia tornaram-se independentes segundo as fronteiras que possuíam em 1992, independentemente das minorias étnicas que existissem dentro dessas fronteiras.

E é precisamente essa regra de ouro que os albaneses do Kosovo pretendem agora quebrar ao proclamarem a independência, porque o Kosovo era parte da Sérvia jugoslava… Se isso acontece, mudam as regras, passam a valer as nacionalidades, e também os sérvios podem invocar várias regiões adjacentes (nomeadamente na Bósnia) onde as populações locais não se sentem satisfeitas no país a que agora pertencem…

A verdade é que, mudando a metáfora das teias para a da carpintaria, a maioria das soluções dos Balcãs estão presas por arames… Por muito antipática que tenha sido descrita no passado a sua causa, a anuência dos sérvios a jogarem segundo as regras do jogo impostas pela comunidade internacional (as potências das bandeiras lá de cima...) parece não lhes ter propiciado um tratamento justo. E as injustiças sempre foram fenómenos que geraram simpatias nas opiniões públicas…

AS REGRAS DE COMPETIÇÃO DOS SALTOS DE ESQUI

Deixem-me fazer mais uma evocação de tempos passados, onde havia épocas para cada fruta e também épocas para desportos. Próximo do Natal, o desembrulhar e o gozo das prendas novas eram acompanhados de infindáveis transmissões televisivas de desportos de inverno, como a patinagem artística ou os saltos de esqui, estes originários de locais impronunciáveis como Garmisch-Partenkirchen.
É preciso ser-se fervoroso adepto daquela última modalidade para a vir a apreciar. A transmissão não passava de um encadeamento de gestos iguais, sempre repetidos: um esquiador que descia uma rampa de declive acentuado o mais agachado possível para ganhar velocidade e para depois se esticar no ar executando um salto, descendo colina abaixo, salto que chegava a ultrapassar os 100 metros!

Pensava eu na minha ingenuidade que o vencedor da competição era o que saltava mais longe – desde que chegasse devidamente equilibrado em cima dos esquis!... Mas não: descobri depois que, a meio do voo, há uns jurados que dão uma espécie de notas artísticas à figura voadora do atleta e que estas notas também contam para a classificação final da competição…
Acho um critério de classificação tanto estúpido como desnecessariamente complexo. Suponho que as figuras mais eficazes deveriam ser as que resultam em voos mais prolongados, desde que os atletas mantenham o equilíbrio à aterragem. As apreciações estéticas só existem para complicar e dar importância ao que não a tem. Mas lembro-me frequentemente dela porque se trata de uma prática com escola.

Por exemplo: quando não se percebe do assunto da conferência, apreciam-se os arranjos florais que ornamentavam a mesa e mais diversos… Uma tese de doutoramento – e é bom sinal que se façam centenas, senão milhares delas em Portugal por ano – costuma ser um trabalho de investigação com uma orientação muito específica, que interessa a um núcleo restrito. Não é concebida para vir a ser um livro…

Depois há os candidatos a doutores que saem na televisão (como Manuel Carvalho da Silva) e onde as editoras vêm a possibilidade de uma boa aposta, convertendo a tese numa edição pública – evidentemente que por causa da notoriedade do autor, não por causa da matéria da investigação em si. Dessa última haverá apenas um punhado de especialistas que terá interesse no seu conteúdo.
Eu não li, nem faço tenções de ler, a tese de Manuel Carvalho da Silva. Ele também não a escreveu a pensar em dirigi-la a pessoas como eu. O que me surpreende é que pessoas como Francisco José Viegas, que deve saber muito melhor que eu tudo o que aqui escrevi sobre edições de teses, se disponha a emitir um conjunto de apreciações beirando o trivial das generalidades sobre o livro contendo a tese de doutoramento de Carvalho da Silva.

Como seria de antecipar e lembrando-me os jurados dos saltos de esqui de Garmisch-Partenkirchen de outrora, os comentários de Francisco José Viegas acabaram por derivar para apreciações artísticas sobre um assunto científico, de onde eu quero destacar a expressão elegância teórica, coisa que a tese, pelos vistos, não tem suficiente, e cujo desenvolvimento explicativo, apesar de solicitado, ainda hoje aguardo do comentador…
Enfim, lamento concluir que a apreciação de Francisco José Viegas me lembrou uma versão bastante mais sofisticada daquela famosa notícia sobre um Congresso de Física Nuclear: o orador apresentou um trabalho sobre quarks muito aplaudido no final mas tinha deficiências de dicção (não pronunciava os Rs) e apresentava-se com uma gravata de cores berrantes… Só que esta versão de Francisco José Viegas parece ser um bocadinho mais condescendente quanto ao orador…
Adenda: Os meus agradecimentos públicos ao Rui Esteves, que me assinalou a minha propensão para ficar tenso quando devia somente tencionar...

20 novembro 2007

VALE DOS CAÍDOS

Hoje, no 32º aniversário da sua morte, vale a pena recordar como Francisco Franco teve a sua oportunidade de ser magnânimo depois da sua vitória na Guerra Civil espanhola (1936-39) e não o quis ser. O Vale dos Caídos é um monumento de evocação a uma das facções dessa guerra – a vencedora – e nem sequer se nota no gesto de o mandar edificar um esforço para cativar os que ficaram do outro lado para justificar a primeira característica da Espanha do lema do franquismo – España: Una, Grande, Libre.
É um monumento que nunca visitei nem pretendo fazê-lo. A sua existência tornou-se um daqueles erros colossais que mostram a verdadeira dimensão de Francisco Franco como estadista e que justifica a batalha inglória que os seus defensores têm agora de travar pela preservação da sua memória como uma grande figura de Espanha. Facciosismo aparte, é um esforço baldado, porque quem se mostrou assim mesquinho na hora do triunfo dificilmente merecerá o respeito das gerações futuras…

SAIGÃO, 29 e 30 de ABRIL de 1975

Entre as fotografias da queda de Saigão nos últimos dias de Abril de 1975 – andávamos nós por cá entusiasmados a contar os votos das primeiras eleições para a Assembleia Constituinte… – distinguem-se as dos vencedores das dos vencidos. O equipamento militar predominante nas primeiras são os blindados; nas segundas são os helicópteros.
Enquanto os T-54 de origem soviética pertencentes ao exército norte-vietnamita são uma aparição de última hora na Guerra do Vietname, nesta última fase da guerra em que, de subversiva, ela passou a convencional, os helicópteros norte-americanos (também utilizados pelos sul-vietnamitas) tornaram-se um símbolo de todo o conflito.
Utilizado de forma maciça pela primeira vez no Vietname como forma de conferir mobilidade às suas tropas, os helicópteros norte-americanos foram um dos combatentes de primeira linha daquela guerra: desde o início do conflito em 1961 até Julho de 1969 haviam-se perdido 2.876 daquelas unidades… É de toda a justiça que figurassem nas fotografias do seu fim…
A operação de evacuação por helicóptero dos norte-americanos e os outros estrangeiros então em Saigão para depois os levar para porta-aviões ao largo do Vietname havia sido prevista de antemão e foi lançada a 29 de Abril de 1975. A operação, baptizada Frequent Wind, não antecipou a completa desorganização que se instalou entre os sul-vietnamitas…
Simbólico até ao fim do demérito e egoísmo dos dignitários do regime sul-vietnamita*, houve quase 100 helicópteros seus que se intrometeram no vai e vem das evacuações e aterraram (alguns deles praticamente vazios) nos navios norte-americanos que estavam destinados à evacuação, saturando os seus conveses e perturbando a continuação da operação.
Alguns dos helicópteros inesperadamente chegados acabaram por ter de ser atirados ao mar para dar espaço a outros recém-chegados, numa demonstração de desperdício e má alocação de meios que se tornou também numa imagem de marca da Guerra do Vietname: apesar dos quase 7.000 evacuados, muitos mais foram os sul-vietnamitas que ficaram para trás…
Em Saigão faziam-se as celebrações da vitória à volta dos blindados a que, de forma mítica, eles ficaram associados mas sem para tal terem contribuído significativamente. Mais indesculpável que essa ingenuidade dos leigos foi a convicção dos profissionais, que os passaram a considerar peças importantes na doutrina táctica soviética de contra-subversão…

* Em 21 de Abril o Presidente Nguyen Van Thieu resignara e exilara-se, para ser substituído pelo Vice-Presidente Tran Van Huong, que se demitiu uma semana depois (28 de Abril), para ser substituído por Duong Van Minh, que assinou a rendição a 30 de Abril.