O estratagema de evacuar os símbolos da soberania nacional quando de uma invasão por uma potência continental tem precisamente 200 anos. Foi aplicada pela primeira vez na Europa em Novembro de 1807 quando a França invadiu Portugal, e a monarca portuguesa da época, a Rainha Maria I (1734-1816), já demente, foi evacuada conjuntamente com o Príncipe Regente, o seu filho João (1767-1826), e os restantes membros da Casa Real para o Brasil, então a mais importante colónia portuguesa. A legitimidade da pessoa do soberano escapava assim a Napoleão.
Em Abril e Maio de 1940, um problema muito semelhante tornava a pôr-se aos países então invadidos pela Alemanha: Dinamarca, Noruega, Luxemburgo, Bélgica, Países Baixos e França. Naqueles países que eram monarquias (todos, excepto a França), na impossibilidade de conseguir resistir à ofensiva alemã, os monarcas foram também evacuados para o Reino Unido, conjuntamente com os respectivos governos nacionais. Houve contudo duas excepções: a Dinamarca, onde a rapidez da invasão não possibilitou a evacuação de qualquer deles, e a Bélgica, onde o governo partiu para o exílio, mas o monarca não…
Ao contrário do que acontece frequentemente nas monarquias, onde muitos dos cargos desempenhados pelos monarcas são apenas honorários, o Rei dos belgas, Leopoldo III, (1901-1983) era um monarca que se orgulhava de exercer de facto as funções de Comandante-Chefe das Forças Armadas. Havia também o precedente histórico da Primeira Guerra Mundial, quando o pai de Leopoldo, o Rei Alberto I (1875-1934), desempenhara precisamente o mesmo papel durante os quatro anos (1914-18) que durara o conflito. A Bélgica incorporara a figura do Rei Soldado.
E também incorporara uma particular atenção com a sua segurança e defesa. O exército belga contava em Maio de 1940 com 610.000 efectivos e estava tão bem (senão mesmo melhor) equipado e preparado do que os seus homólogos e aliados. Trata-se apenas de um pormenor, naquela hecatombe geral que levou à derrota francesa em Junho de 1940, mas não deixa de ser significativo que a resistência holandesa (teoricamente mais forte) tenha durado apenas 5 dias (de 10 a 15 de Maio de 1940), enquanto a belga tenha durado 17 (até 27 de Maio de 1940). A decisão da capitulação foi de Leopoldo III. Mas antes, houve um intenso debate dramático a precedê-la. O governo belga, chefiado por Hubert Pierlot (1883-1963, acima) , considerava que a situação militar não desligava a Bélgica da solidariedade política para com os seus aliados franceses e britânicos, para mais depois de se ter solicitado o seu auxílio para repelir a invasão alemã. Em consequência, o governo manifestou ao monarca a sua intenção de prosseguir a luta no exílio e pede-lhe que proceda da mesma forma* subtraindo ao invasor a pessoa que corporizava a soberania nacional.
Leopoldo recusou. Pela sua leitura da situação, a causa dos Aliados estava perdida, a França capitularia por sua vez dentro de dias e o Reino Unido só poderia continuar a guerra através das colónias. Em consequência, o papel da Bélgica na nova Europa seria muito limitado e competia-lhe a ele como monarca partilhar os sofrimentos do seu povo e como comandante partilhar o cativeiro dos seus soldados… A tensão na reunião atingiu limites quase insuportáveis mas as partes mantiveram-se inflexíveis. Os membros do governo partiram para Londres e o Rei e o seu séquito mantiveram-se em Bruxelas.
Em Junho de 1944, no seguimento dos desembarques aliados da Normandia, os alemães transferiram o cativo, mais descaradamente cativo a partir daí, para a Alemanha. Mas na Bélgica, ainda mais do que nos outros países, para um monarca reinar é indispensável que goze da confiança de todas as partes. E na esquerda política belga e entre os francófonos essa confiança ficara irremediavelmente abalada pela sua decisão de 1940. O pretexto próximo foi um episódio da vida privada do Rei que, depois de enviuvar em 1935, veio a casar em 1941 com Lilian Baels (acima), uma belga de ascendência flamenga.
Quando em Junho de 1945, depois do fim da Guerra, o Rei manifestou intenção de regressar à Bélgica o governo do socialista Achiel Van Acker ameaçou demitir-se, iniciando um período de instabilidade política de 7 governos durante os 5 anos seguintes (Fevereiro de 1945 a Agosto de 1950). Entre as causas dessa instabilidade, havia o problema da Chefia do Estado, que se tentou resolver em Março de 1950 com um referendo. Nele, 57,7% dos belgas pronunciaram-se favoravelmente ao regresso do monarca. Mas entre os francófonos da Valónia, 57,8% votaram contra. O Rei acabou por abdicar no seu filho Balduíno, em Julho de 1951…
Leopoldo III viveu discretamente até 1983. Objectivamente, e apesar de sempre controversas, nunca as investigações levadas a cabo sobre a sua conduta produziram aqueles rumores de colaboração com os alemães ou de fascínio pelas ideias do regime nazi como aconteceu, por exemplo, com Eduardo VIII de Inglaterra, um outro ex-monarca forçado a abdicar. Leopoldo III parece ter sido um homem rigoroso quanto a questões de honra – há quem diga que essa foi a causa para o seu casamento com Lilian Baels (que estava grávida). A época em que viveu é que nem por isso…
* Como já haviam feito o Rei Haakon VII da Noruega, a Rainha Guilhermina dos Países Baixos e a Grã-Duquesa Carlota do Luxemburgo.
Em Abril e Maio de 1940, um problema muito semelhante tornava a pôr-se aos países então invadidos pela Alemanha: Dinamarca, Noruega, Luxemburgo, Bélgica, Países Baixos e França. Naqueles países que eram monarquias (todos, excepto a França), na impossibilidade de conseguir resistir à ofensiva alemã, os monarcas foram também evacuados para o Reino Unido, conjuntamente com os respectivos governos nacionais. Houve contudo duas excepções: a Dinamarca, onde a rapidez da invasão não possibilitou a evacuação de qualquer deles, e a Bélgica, onde o governo partiu para o exílio, mas o monarca não…
Ao contrário do que acontece frequentemente nas monarquias, onde muitos dos cargos desempenhados pelos monarcas são apenas honorários, o Rei dos belgas, Leopoldo III, (1901-1983) era um monarca que se orgulhava de exercer de facto as funções de Comandante-Chefe das Forças Armadas. Havia também o precedente histórico da Primeira Guerra Mundial, quando o pai de Leopoldo, o Rei Alberto I (1875-1934), desempenhara precisamente o mesmo papel durante os quatro anos (1914-18) que durara o conflito. A Bélgica incorporara a figura do Rei Soldado.
E também incorporara uma particular atenção com a sua segurança e defesa. O exército belga contava em Maio de 1940 com 610.000 efectivos e estava tão bem (senão mesmo melhor) equipado e preparado do que os seus homólogos e aliados. Trata-se apenas de um pormenor, naquela hecatombe geral que levou à derrota francesa em Junho de 1940, mas não deixa de ser significativo que a resistência holandesa (teoricamente mais forte) tenha durado apenas 5 dias (de 10 a 15 de Maio de 1940), enquanto a belga tenha durado 17 (até 27 de Maio de 1940). A decisão da capitulação foi de Leopoldo III. Mas antes, houve um intenso debate dramático a precedê-la. O governo belga, chefiado por Hubert Pierlot (1883-1963, acima) , considerava que a situação militar não desligava a Bélgica da solidariedade política para com os seus aliados franceses e britânicos, para mais depois de se ter solicitado o seu auxílio para repelir a invasão alemã. Em consequência, o governo manifestou ao monarca a sua intenção de prosseguir a luta no exílio e pede-lhe que proceda da mesma forma* subtraindo ao invasor a pessoa que corporizava a soberania nacional.
Leopoldo recusou. Pela sua leitura da situação, a causa dos Aliados estava perdida, a França capitularia por sua vez dentro de dias e o Reino Unido só poderia continuar a guerra através das colónias. Em consequência, o papel da Bélgica na nova Europa seria muito limitado e competia-lhe a ele como monarca partilhar os sofrimentos do seu povo e como comandante partilhar o cativeiro dos seus soldados… A tensão na reunião atingiu limites quase insuportáveis mas as partes mantiveram-se inflexíveis. Os membros do governo partiram para Londres e o Rei e o seu séquito mantiveram-se em Bruxelas.
Em Junho de 1944, no seguimento dos desembarques aliados da Normandia, os alemães transferiram o cativo, mais descaradamente cativo a partir daí, para a Alemanha. Mas na Bélgica, ainda mais do que nos outros países, para um monarca reinar é indispensável que goze da confiança de todas as partes. E na esquerda política belga e entre os francófonos essa confiança ficara irremediavelmente abalada pela sua decisão de 1940. O pretexto próximo foi um episódio da vida privada do Rei que, depois de enviuvar em 1935, veio a casar em 1941 com Lilian Baels (acima), uma belga de ascendência flamenga.
Quando em Junho de 1945, depois do fim da Guerra, o Rei manifestou intenção de regressar à Bélgica o governo do socialista Achiel Van Acker ameaçou demitir-se, iniciando um período de instabilidade política de 7 governos durante os 5 anos seguintes (Fevereiro de 1945 a Agosto de 1950). Entre as causas dessa instabilidade, havia o problema da Chefia do Estado, que se tentou resolver em Março de 1950 com um referendo. Nele, 57,7% dos belgas pronunciaram-se favoravelmente ao regresso do monarca. Mas entre os francófonos da Valónia, 57,8% votaram contra. O Rei acabou por abdicar no seu filho Balduíno, em Julho de 1951…
Leopoldo III viveu discretamente até 1983. Objectivamente, e apesar de sempre controversas, nunca as investigações levadas a cabo sobre a sua conduta produziram aqueles rumores de colaboração com os alemães ou de fascínio pelas ideias do regime nazi como aconteceu, por exemplo, com Eduardo VIII de Inglaterra, um outro ex-monarca forçado a abdicar. Leopoldo III parece ter sido um homem rigoroso quanto a questões de honra – há quem diga que essa foi a causa para o seu casamento com Lilian Baels (que estava grávida). A época em que viveu é que nem por isso…
* Como já haviam feito o Rei Haakon VII da Noruega, a Rainha Guilhermina dos Países Baixos e a Grã-Duquesa Carlota do Luxemburgo.
Sempre gosto de ler este blog de qualidade
ResponderEliminarDezoito dias duraram a guerra com Alemanha, 10 de Maio até com 28 de Maio 1940. O rei decidiu sem informar os aliados e contra a vontade do governo para acabar a guerra. Depois da guerra, uma maioria dos belgas 58 por cento votou para o regresso do Leopoldo Terceiro no trono e 42 por cento contra (na altura os partidos ainda eram unidos) mas como sempre se passa na Bélgica a maioria nunca governa sem a vontade dos valões e o rei tinha que deixar o trono ao filho Bodewijn. Coisa engraçada para mencionar é que hoje em dia os valões são pró dinastia e os flamengos contra.
Com amizade
Alfacinha, folgo muito que aprecie o blogue.
ResponderEliminarApenas duas precisões sobre o que escreveu:
a) Quanto ao facto do Rei ter decidido sem informar os aliados.
A 25 de Maio, Leopoldo III havia escrito uma carta ao rei britânico Jorge VI antecipando a sua decisão. Dia 27, o oficial britânico de ligação com o comando belga (Keyes) informou o comandante britânico (Gort) do que se iria passar. Não são os aliados em geral, mas apenas os franceses a queixarem-se de não ter sido informados da decisão do Rei... Terá sido desorganização do lado belga? Ou do lado francês?
A escolha da data foi muito inoportuna quer para os franceses quer para os britânicos (que já estavam a planear a evacuação de Dunquerque), mas não se deve confundir desconhecimento com desagrado.
b) Na Bélgica, a maioria nunca governa sem a vontade dos valões.
Como eu digo no poste a questão real não era apenas dividida entre comunidades mas também envolvia o espectro político: os socialistas eram quase todos contra Leopoldo III. Creio que o 1º ministro Van Acker de que falo era um puro flamengo de Brugges e era contra o retorno de Leopoldo III...
No referendo, o Rei recebeu 72% dos votos na Flandres e 42% na Valónia... Ganhou com 58% no conjunto mas se um Rei dos Belgas não serve para unificar os belgas, então não serve para nada...
O paradoxal é que as razões mais populares para gostar ou não do Rei parecem ser sempre simples:
Os Valões não gostavam de Leopoldo III porque a mulher era flamenga. Os Flamengos não gostam de Alberto II porque a mulher (que é italiana) não fala flamengo.
Caro amigo,
ResponderEliminarBélgica é uma monarquia constitucional. Que significa que o rei não possa fazer actos politicas sem a aprovação do governo ou ao menos de um ministro. A constituição prevê com efeito implícito que o rei não pode suportar nenhuma responsabilidade política.
Depois a guerra os quatro partidos da Bélgica, Os cristãos, os liberais, os socialistas e comunistas formam um governo sob a liderança perita do Achiel Van Acker,( o pai da segurança social na Bélgica) era um verdadeiro tribuno do povo, um pragmático, e principalmente o homem justo para organizar o regresso real . Infelizmente o rei esteve o seu próprio inimigo e recusou altivamente as condições imposto pelos quatro partidos "prestar a homenagem aos aliados e confirmar a sua afeição à democracia.
Depois a referenda, o rei exige um regresso rápido para Bélgica, no governo (cristãos e liberais) deixam 6 liberais o governo por causa o ultimato do rei. O Paul- Henri Spaak (socialista com fama internacional) é sem dúvida com os seus discursos apaixonados e sua busca para obter um compromisso entre os prós e contras de Leopoldo o salvador da monarquia .
Os flamengos gostam do rei Alberto para que se manifeste como uma pessoa sociável e perdoam Paola porque é estrangeira. Mas criticam o facto que os filhos do rei não conseguem falar o nosso idioma, como deve ser num país bilingue. Se o cantor belga Adamo, o filho dum mineiro italiano consiga falar a língua flamenga porque não a família real?
Cumprimentos