Raro será o livro sobre o Paquistão e a sua história que não comece pela questão da sua própria identidade nacional. Idealizado como o Estado que agruparia os muçulmanos da Índia para os preservar da dominação hindu que se seguiria à independência, aos 60 anos de existência, os sucessivos dirigentes do Paquistão já quiseram fazer dele coisas distintas, mas em nenhuma dessas versões ele parece ter encontrado a tranquilidade para viver consigo mesmo.
Mais uma vez, os acontecimentos recentes que ali têm ocorrido relembram isso, mas o propósito deste poste é o de contar uma pequena história de uma pequena comunidade de refugiados (ínfima pelos padrões indianos: 300 a 500 mil pessoas…) que, como acontecia com os palestinianos, não têm nacionalidade. Mas, para contar a sua história, é preciso regressar a 1947 e às vicissitudes que acompanharam a divisão da Índia britânica entre a Índia e o Paquistão.
Se o Paquistão era um Estado a formar com as províncias indianas onde houvesse uma maioria de população muçulmana, então os acasos da geografia humana haviam pregado uma partida ao futuro país porque existiam duas regiões de predomínio muçulmano no subcontinente: uma a Ocidente, sobre o Rio Indo, outra a Oriente, sobre o delta dos Rios Ganges e Bramaputra. Como se vê pelos mapas, o Paquistão nasceu logo dividido em duas regiões apartadas por mais de 1.500 quilómetros…
Mais do que isso, quase metade de toda população muçulmana da Índia colonial estava espalhada por detrás das novas fronteiras do novo Estado indiano de maioria hindu. De igual forma, havia importantes minorias não muçulmanas no novo Paquistão. Os anos de 1947 e 1948 assistiram a um fluxo de milhões de deslocados que se cruzavam num sentido e noutro porque haviam ficado do lado errado da fronteira. Entre os que fizeram essa viagem contavam-se os biharis que se mudaram para o Paquistão Oriental.
Bihari é a designação de um nativo do Bihar, um estado predominantemente hindu e um dos mais pobres da Índia actual. Mas os biharis muçulmanos que emigraram para o Paquistão em 1947 eram particularmente mais qualificados que a média geral da população, sentindo-se ameaçados no seu estatuto sócio-económicos pela nova situação política que se viria a desenvolver com a independência. E, por causa da proximidade geográfica, esses emigrantes preferiram partir para o Paquistão Oriental, onde se instalaram.
O Paquistão Oriental pode ser considerada uma outra aberração da Partição de 1947, resultado da aplicação do critério religioso à construção de fronteiras numa região (Bengala) onde a identidade cultural a desaconselharia. Ficou a existir um Bengala Oriental (muçulmana) ao lado de uma província indiana de Bengala Ocidental (hindu, com a cidade capital: Calcutá), compartilhando a mesma língua e cultura bengali, reputada mundialmente desde a atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1913 a Rabindranath Tagore.
Como o idioma nacional do novo Paquistão passou a ser o urdu (ainda é assim, é esse idioma do exército e dos discursos de Musharraf), que era o idioma materno dos biharis fugidos da Índia, e também devido às suas qualificações, estes dispuseram de oportunidades melhores de colocação nos novos postos administrativos do Paquistão Oriental do que os bengalis locais, a ponto de estes últimos passarem a equiparar os primeiros a representantes de um poder central (sedeado no Paquistão Ocidental) que lhes era alheio.
Com a independência do Paquistão Oriental, rebaptizado Bangladesh, em 1971, os biharis – na altura estimados em cerca de um milhão – foram escorraçados pelo novo poder político e começou o seu calvário de refugiados apátridas que perdura até hoje: já se havia passado uma geração (24 anos) desde que os mais velhos haviam abandonado a Índia – embora expulsos do Bangladesh, esta já não os considerava seus nacionais. O Bangladesh, por sua vez, considerava-os nacionais paquistaneses…
Mas o Paquistão, por sua vez, nunca mostrou particular interesse em assumir a responsabilidade total pela sua repatriação, argumentando que tendo optado pela emigração para o Paquistão Oriental em 1947, eles se haviam tornado, por inerência dos acontecimentos de 1971, cidadãos do Bangladesh. Nos 36 anos seguintes, soluções parciais (retorno ao Bangladesh, dispersão pela Índia, emigração para o Paquistão, o Golfo Pérsico ou a Europa) reduziram o seu número a metade ou a um terço do milhão original.
Proporcionalmente, no subcontinente indiano, estes 300 a 500 mil refugiados apátridas de origem bihari e cultura urdu são uma mera gota de água no oceano populacional dos quase 1.500 milhões de habitantes que ele contém. Mas nada os consegue substituir no simbolismo que representam de filhos rejeitados de um projecto nacional que, mais de 60 anos depois de ter sido ambicionado, concretizado e proclamado, continua a não ter a segurança de haver protagonistas vivos que expliquem claramente o que ele é…
Mais uma vez, os acontecimentos recentes que ali têm ocorrido relembram isso, mas o propósito deste poste é o de contar uma pequena história de uma pequena comunidade de refugiados (ínfima pelos padrões indianos: 300 a 500 mil pessoas…) que, como acontecia com os palestinianos, não têm nacionalidade. Mas, para contar a sua história, é preciso regressar a 1947 e às vicissitudes que acompanharam a divisão da Índia britânica entre a Índia e o Paquistão.
Se o Paquistão era um Estado a formar com as províncias indianas onde houvesse uma maioria de população muçulmana, então os acasos da geografia humana haviam pregado uma partida ao futuro país porque existiam duas regiões de predomínio muçulmano no subcontinente: uma a Ocidente, sobre o Rio Indo, outra a Oriente, sobre o delta dos Rios Ganges e Bramaputra. Como se vê pelos mapas, o Paquistão nasceu logo dividido em duas regiões apartadas por mais de 1.500 quilómetros…
Mais do que isso, quase metade de toda população muçulmana da Índia colonial estava espalhada por detrás das novas fronteiras do novo Estado indiano de maioria hindu. De igual forma, havia importantes minorias não muçulmanas no novo Paquistão. Os anos de 1947 e 1948 assistiram a um fluxo de milhões de deslocados que se cruzavam num sentido e noutro porque haviam ficado do lado errado da fronteira. Entre os que fizeram essa viagem contavam-se os biharis que se mudaram para o Paquistão Oriental.
Bihari é a designação de um nativo do Bihar, um estado predominantemente hindu e um dos mais pobres da Índia actual. Mas os biharis muçulmanos que emigraram para o Paquistão em 1947 eram particularmente mais qualificados que a média geral da população, sentindo-se ameaçados no seu estatuto sócio-económicos pela nova situação política que se viria a desenvolver com a independência. E, por causa da proximidade geográfica, esses emigrantes preferiram partir para o Paquistão Oriental, onde se instalaram.
O Paquistão Oriental pode ser considerada uma outra aberração da Partição de 1947, resultado da aplicação do critério religioso à construção de fronteiras numa região (Bengala) onde a identidade cultural a desaconselharia. Ficou a existir um Bengala Oriental (muçulmana) ao lado de uma província indiana de Bengala Ocidental (hindu, com a cidade capital: Calcutá), compartilhando a mesma língua e cultura bengali, reputada mundialmente desde a atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1913 a Rabindranath Tagore.
Como o idioma nacional do novo Paquistão passou a ser o urdu (ainda é assim, é esse idioma do exército e dos discursos de Musharraf), que era o idioma materno dos biharis fugidos da Índia, e também devido às suas qualificações, estes dispuseram de oportunidades melhores de colocação nos novos postos administrativos do Paquistão Oriental do que os bengalis locais, a ponto de estes últimos passarem a equiparar os primeiros a representantes de um poder central (sedeado no Paquistão Ocidental) que lhes era alheio.
Com a independência do Paquistão Oriental, rebaptizado Bangladesh, em 1971, os biharis – na altura estimados em cerca de um milhão – foram escorraçados pelo novo poder político e começou o seu calvário de refugiados apátridas que perdura até hoje: já se havia passado uma geração (24 anos) desde que os mais velhos haviam abandonado a Índia – embora expulsos do Bangladesh, esta já não os considerava seus nacionais. O Bangladesh, por sua vez, considerava-os nacionais paquistaneses…
Mas o Paquistão, por sua vez, nunca mostrou particular interesse em assumir a responsabilidade total pela sua repatriação, argumentando que tendo optado pela emigração para o Paquistão Oriental em 1947, eles se haviam tornado, por inerência dos acontecimentos de 1971, cidadãos do Bangladesh. Nos 36 anos seguintes, soluções parciais (retorno ao Bangladesh, dispersão pela Índia, emigração para o Paquistão, o Golfo Pérsico ou a Europa) reduziram o seu número a metade ou a um terço do milhão original.
Proporcionalmente, no subcontinente indiano, estes 300 a 500 mil refugiados apátridas de origem bihari e cultura urdu são uma mera gota de água no oceano populacional dos quase 1.500 milhões de habitantes que ele contém. Mas nada os consegue substituir no simbolismo que representam de filhos rejeitados de um projecto nacional que, mais de 60 anos depois de ter sido ambicionado, concretizado e proclamado, continua a não ter a segurança de haver protagonistas vivos que expliquem claramente o que ele é…
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