19 outubro 2008

GÁRZON E AS INVESTIGAÇÕES ESPECTACULARES

Já aqui escrevi e repito hoje mais uma vez que é uma pena que não se dê aos textos que Jorge Almeida Fernandes escreve ao fim-de-semana no Público a atenção que eles merecem. Mesmo que seja, como acontece com o de hoje, para deles discordar. Intitulado Garzón e os historiadores em cólera aborda, como do título se deduz, a questão duplamente desenterrada da pesquisa para encontrar as valas comuns onde ficaram sepultados muitos daqueles que foram executados durante o período da Guerra Civil espanhola (1936-39) e do apport publicitário conferido pelo juiz Baltasar Gárzon a esse processo de investigação.

Como de costume, Jorge Almeida Fernandes investiga previamente sobre os assuntos sobre que escreve – o que faz um enorme contraste com as trivialidades do Editorial de ontem sobre o mesmo tema, escrito pelo Director do seu jornal, José Manuel Fernandes – e começa por se referir a um manifesto recentemente assinado por centenas de historiadores europeus contra a ingerência do poder político no domínio da investigação histórica. Sobre esse tema, começando pela decisão francesa de 1990 de sancionar judicialmente quem manifestasse opinião contrária è existência do Genocídio, vai toda a minha concordância.
Já neste blogue apareceu quem pusesse em causa a existência do Holocausto. Mau grado o que eu penso sobre quem assim pensa, não me passa pela cabeça defender a existência de sanções legais para quem acredite em tais disparates. Mas, na minha opinião, a questão de Espanha não tem nada a ver com a interferência política no sancionamento legal dessas crendices, questão a que Jorge Almeida Fernandes acaba afinal por dedicar metade do seu texto. Como o próprio escreve ao introduzir a segunda parte: O caso Gárzon não tem a ver com História, tem a ver com Memória. Só que não me parece que haja nenhum caso Gárzon

Como jornalista, é natural que Jorge Almeida Fernandes seja vítima de uma armadilha do próprio jornalismo: a de interiorizar que os assuntos só passam a existir depois dos órgãos de informação lhes passarem a dar atenção. E há quem se especialize nisso, em fazer com que eles dêem atenção, que abocanhem um determinado assunto que lhes interesse. Ainda ontem, num poste, mencionei três políticos portugueses que considero especializados nessa técnica: Pedro Santana Lopes, Francisco Louçã e Paulo Portas. E nesse mesmo poste escrevi como considero Baltasar Gárzon muito mais habilidoso do que qualquer um daqueles três…
De facto, em Espanha, há quase 70 anos que terminou a Guerra Civil, há mais de 30 que se processou uma Transição pacífica para a Democracia e, contudo, continua-se à espera que os traumas da Guerra Civil passem por si, pela simples passagem do tempo, quando elas parecem teimar em não passar. Não fosse assim e eu quase garantiria que o faro justiceiro e publicitário infalível de Baltasar Gárzon não teria pegado nesta causa… É sempre difícil comparar sequelas de Guerras Civis distintas, mas considero que vale sempre a pena tentar fazê-lo nem que seja para colocar o caso espanhol em perspectiva com o que aconteceu em outras épocas noutros países.

Por exemplo, como já aqui escrevi num poste anterior, não consigo encontrar outro exemplo noutro país de um Monumento Nacional dedicado ao resultado de uma Guerra Civil, em que tanto se tenha investido (foram quase 20 anos de construção!), e que seja ao mesmo tempo tão enaltecedor dos vencedores e tão sobranceiro para com os vencidos como é o caso do Vale dos Caídos. Os actuais governos espanhóis bem podem decretar que o Monumento passou a ser dedicado a todos os que tombaram durante a Guerra mas a configuração do mesmo, encimado pela Cruz (abaixo), não se adequará muito à adição de lápides dedicadas aos antigos combatentes das Brigadas Internacionais

Aliás, até teria imensa curiosidade em ver qual seria a reacção da esmagadora maioria dos simpatizantes do Partido Popular a esse hipotético gesto… Em suma, não é de hoje que em Espanha se nota a falta daquela tranquilidade sobre um conflito passado que faz com que nos Estados Unidos, por exemplo, ainda hoje haja quem hasteie e use como elemento de identificação dos Estados do Sul as antigas bandeiras dos confederados (os vencidos da Guerra Civil de 1861-65) sem que ninguém se pareça incomodar com isso. Não sei se poderemos dizer o mesmo em Espanha das bandeiras das duas verdadeiras autonomias espanholas – a da Catalunha e do País Basco…

Mas importa regressar à expressão de Jorge Almeida Fernandes, que o que está em debate é uma questão que tem a ver com a Memória. É um processo que já começou há mais de uma dúzia de anos (a fotografia que ilustra o artigo do jornal e que abaixo reproduzo data de 2002), desde que apareceram equipas arqueológicas por vários locais de Espanha que se mostraram interessadas em ouvir os relatos dos antigos sobre o período da Guerra Civil, nomeadamente a localização onde se haviam realizado os fuzilamentos e onde os fuzilados haviam sido enterrados. Depois seguiram-se as escavações, as identificações e a entrega dos restos mortais às famílias, o que ainda continua.
Não é sinal de nenhuma superioridade de conduta do lado republicano durante a Guerra que a maioria dos despojos que agora têm vindo a ser desenterrados sejam de pessoas fuziladas pelos nacionalistas. O que acontece é que a esmagadora maioria dos que então foram fuzilados pelos republicanos também da mesma forma prepotente e clandestina foram logo no fim da Guerra, reenterrados com a devida consideração, em cerimónias acompanhadas das devidas acusações quanto à barbárie perpetrada pelos republicanos. Como é simbólico através da edificação do Vale dos Caídos, durante o franquismo o respeito pelos mortos ficou guardado para os da facção vencedora…

Claro que não se pode ser ingénuo a ponto de não nos apercebermos do argumento político que estas exumações fornecem à Esquerda espanhola, e o desconforto que elas provocam à Direita. Mas a disputa sobre as Memórias da Guerra Civil espanhola não tem inocentes e às vezes os aliados vêm dos lados mais imprevistos. Depois de já terem esgotado há muito os casos de fuzilados às mãos dos republicanos para rebater esta nova ofensiva republicana, os descendentes dos nacionalistas recorreram à nova estratégia da beatificação das vítimas. Até ao pontificado de Bento XVI, nunca se havia beatificado muita gente daquele período – mas o ano passado foram 498 beatos logo de uma vez
Em função do que aqui escrevi, olhando para além dos malabarismos do juiz Gárzon onde a imprensa tanto se concentra, creio que se percebe porque na minha opinião o verdadeiro resultado singelo de todas estas escavações, mesmo com o folclore associado ao caso Garcia Lorca, apenas se trata de um mero, ainda que justo, exercício de equilíbrio no respeito pelos mortos das duas facções da Guerra Civil. E ao contrário das atenções de Jorge Almeida Fernandes, em todo este processo suponho que nem se deva conseguir levar Baltasar Gárzon a sério – por algum motivo eu o havia comparado (embora em bom) a Santana Lopes, Louçã e Portas…

3 comentários:

  1. Numa guerra e ainda por cima civil, há sempre excessos de ambos os lados, mas não se podem colocar no mesmo patamar os comportamentos dos contendores.
    O "viva la muerte" não foi republicano.

    No que respeita à comparação com os três lideres citados em conjunto, parece-me excessiva, dado que não se trata propriamente de um Albergue..."espanhol".

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  2. Desculpe, JRD, mas tem de haver sempre a liberdade de colocar os comportamentos dos contendores em patamares comparáveis. E neste caso, até tem cabimento fazê-lo.

    Tem toda a razão ao afirmar que a imbecilidade do grito ¡Viva la Muerte! e a perseguição aos intelectuais (exemplificados na destituição de Unamuno ou na execução de Garcia Lorca) “não foi republicano”.

    Mas se episódios desses lhe servem para formar uma decisão, conhecerá o JRD a perseguição e prisão dos dirigentes do POUM (trotskista), que culminaram com a prisão e execução de Andrés Nin em 1937? É que…”não foi nacionalista”.

    E quanto a Gárzon… Acho que se ele fosse guarda-redes seria daqueles que não perderia uma única ocasião de se fazer à bola “para a fotografia”. Há bons guarda-redes assim; mas creio que estaremos de acordo que não se devem escolher os guarda-redes pela sua fotogenia… Nem que eles fossem mais bonitos que os guarda-redes cá de casa.

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  3. Não tem que pedir desculpa. Entendo que os patamares podem comparar-se, exactamente porque não são os mesmos.

    Quanto à execução de Andrés Nin, tratou-se de um deplorável acontecimento resultante da disputa fratricida no seio da República entre o PCSU e o POUM e das clivagens com as centrais sindicais, para os quais, lamentavelmente , parecia que não chegava ter os falangistas como inimigos. Estes por seu turno, apesar de alguns ódios internos subterrâneos, não perderam tempo a liquidar-se uns aos outros, usaram-no na sangueira dos adversários.

    No que respeita à vaidade dos guarda-redes, nem todos podem ser como o Galrinho Bento, que era simples e eficaz como poucos.

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