27 outubro 2008

RETÓRICA E PRÁTICA

We shall fight on the beaches,
We shall fight on the landing grounds,
We shall fight in the fields and in the streets,
We shall fight in the hills;
We shall never surrender.

Este é um trecho de um discurso de Winston Churchill que, de tão famoso, quase dispensa tradução*. Foi pronunciado a 4 de Junho de 1940, na Câmara dos Comuns e, ao contrário do que se costuma pensar, nessa altura, para a opinião pública britânica (e também para a francesa), ainda parecia estar tudo por decidir quanto às operações em curso e as palavras de Churchill não tinham o cunho de determinação desesperada que depois vieram a adquirir. Ainda nessa mesma madrugada de 4 de Junho, a armada heterogénea de navios havia evacuado os últimos soldados de Dunquerque atravessando a Mancha (proeza que a propaganda aliada transformara num sucesso) e os exércitos franco-britânicos estavam a preparar-se para a segunda fase da Batalha de França…

Mas entre os dirigentes dos dois países já se sabia a verdade: a maior parte do material (artilharia, blindados, etc.) que torna os exércitos poderosos ficara para trás, na Bélgica e nas praias de Dunquerque e a fase da luta que se seguia tornar-se-ia rapidamente demasiado desigual. O discurso de Churchill não tardaria a corresponder à realidade. Sabe-se o resto da História e como as circunstâncias tornaram aquele seu discurso simbólico. Só que, passados todos estes anos, sempre se pode colocar a pergunta impertinente: - Será que em caso de invasão alemã os britânicos teriam lutado com todas as suas forças, como se proclama naquele discurso? Provavelmente não e, como veremos mais adiante, o próprio Winston Churchill sabê-lo-ia muito bem.
Claro que os acontecimentos nunca conduziram a que se chegasse a colocar a questão de saber quem, de entre as elites britânicas, se poderia predispor a colaborar com os alemães em caso de ocupação, tal qual aconteceu do outro lado da Mancha com Philippe Pétain e o Regime de Vichy. Mas, é evidente que os haveria (acima, o ex-rei Eduardo VIII com Hitler). Nas suas instruções para o seu embaixador em Washington, Churchill escrevia: Nunca deixe de acentuar no espírito do Presidente (Roosevelt) que, se este país fosse invadido e ocupado, constituir-se-ia um governo Quisling** para fazer a paz… E era acautelando esse cenário que o conhecido discurso continuava mais adiante: …então o nosso Império ultramarino, protegido a armado pela Frota britânica, continuaria a luta***

Um episódio pouco conhecido é que houve territórios britânicos que estiveram sob ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial: as Ilhas do Canal (veja-se a localização abaixo), com 194 km² e, à época, com cerca de 100.000 habitantes, estiveram ocupadas de 1940 a 1945. Ali, não chegou a haver combates nas praias nem nos locais de desembarque, nem sequer nos campos, ruas ou montes. Nem sequer houve episódios maiores de resistência durante a ocupação. Para os britânicos, as ilhas não tinham grande importância estratégica, embora pudessem ter importância para a parte contrária em termos de propaganda. A solução usada por Londres foi abafar o episódio; ainda por cima quando uma das ilhas (Guernsey) foi conquistada por um piloto alemão que ali aterrou em dificuldades…
Tudo ponderado, uma das razões principais para que o discurso de Churchill se tenha tornado assim tão famoso (porque nunca foi posto à prova...) é atribuível a… Adolf Hitler. Mais do que os planos de Estado-Maior, foi ele que, mesmo depois da invasão da Noruega, nunca considerou importante que se investisse na criação de uma força anfíbia que pudesse ter uma mínima capacidade de sucesso a atravessar o Canal da Mancha e invadir o Reino Unido. Sem esse desafio, a anáfora de Churchill acabou por ganhar uma ressonância épica excessiva que não deve ter correspondido ao verdadeiro espírito da época. É que, por falar em excessos e na eminência da invasão alemã, também naquela mesma altura, se criou uma cantilena satírica que também quase dispensará tradução****:

I was playing golf the day
That the Germans landed;
All our men had run away,
All our ships were stranded;
And the thought of England’s shame
Very nearly spoiled my game
* Nós lutaremos nas praias,
Nós lutaremos nos locais de desembarque,
Nós lutaremos nos campos e nas ruas,
Nós lutaremos nos montes;
Nós nunca nos renderemos.
** Vidkun Quisling (1887-1945), Ministro Presidente do regime pró-alemão em vigor na Noruega entre 1942 e 1945. Em consequência dessa colaboração, em vários idiomas europeus a palavra Quisling acabou por se tornar sinónimo de colaboracionista e traidor aos interesses nacionais.
*** ...then our Empire beyond the seas, armed and guarded by the British Fleet, would carry on the struggle...
**** Eu estava a jogar golfe no dia
Em que os alemães desembarcaram
Todas as nossas tropas fugiram
Todos os nossos navios continuaram ancorados
E o sentimento da vergonha inglesa
Esteve quase a estragar-me o jogo.

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