14 outubro 2007

A TASS FOI AUTORIZADA A ANUNCIAR


A Tass foi autorizada a anunciar era o título de um livro de espionagem exótico e marcante de um autor chamado Julian Semyonov que comprei, ainda havia União Soviética. Recordo-me do exotismo porque a história se passava em África, mas o que me marcou no livro (e que me havia levado a comprá-lo) não foi a história (medíocre de facto, suponho que nem cheguei a terminar o livro…) mas a circunstância de ser um livro de espionagem do outro lado, onde os do KGB é que eram bons e os da CIA é que eram maus, mas que acabou por se revelar com uma densidade e qualidade idênticas (senão inferior) aos James Bond de Ian Fleming.

Descobri muitos anos depois, pelos imigrantes ucranianos que vieram para Portugal, que sempre houvera uma próspera literatura daquele género do outro lado, mas os livros não conseguiram ter sucesso no Ocidente, nem mesmo entre os convertidos do lado de cá: aquela África que Semyonov descrevia era completamente inverosímil para ocidentais… Mas o que considero mais peculiar em todo o livro seja o seu título A Tass foi autorizada a anunciar, a procurar demonstrar disciplina na organização revolucionária, suponho eu, mas que acabava por dar o aspecto, numa perspectiva ocidental, tanto de falta de iniciativa como de falta de liberdade…

Mais infeliz e passível de dupla interpretação que o título do livro só mesmo o slogan promocional que o jornal comunista português O Diário manteve ao longo dos anos: A verdade a que temos direito… E foi um destacado dirigente comunista português (que suponho tenha colaborado com O Diário) o grande responsável por me ter relembrado daquela ignorada peça da literatura de espionagem clássica da Guerra-Fria: Vítor Dias. Como? Ao descrever no seu blogue a sua visão dos acontecimentos associados à internacionalização da Guerra Civil angolana em 1975, onde a sua versão da história não perde nada em maniqueísmo para as aventuras africanas de Semyonov !…

Sendo a blogosfera um dos locais onde se goza, de facto, das mais amplas liberdades democráticas, a liberdade para produzir disparates, mesmo quando causados por óbvias limitações das fontes ideológicas consultadas, está assegurada. Mas qualquer autor de blogue torna-se mais passível de ser exposto ao ridículo quando escreve essas asneiras com uma superioridade de pedagogo que corrige terceiros (Helena Matos) como acontece com Vítor Dias. Conferindo a terminologia que empregou e a versão dos factos de que socorreu para as rectificações que apresentou num poste chamado Falta de espaço ou as convenientes amnésias?, são evidentes as lacunas e limitações que o recurso exclusivo à habilidade da dialéctica argumentativa podem causar…

Em primeiro lugar gostaria de me referir à sua designação dos contendores, que, pessoalmente, prefiriria que se tivesse mantido sóbria: o MPLA e os cubanos, contra os zairenses, a FNLA, a UNITA e os sul-africanos. Claro que, quando Vítor Dias emprega uma expressão como as colunas militares do regime do apartheid da África de Sul, por uma questão de equidade não deveria escrever depois apenas os militares cubanos, mas sim os militares do regime comunista de Cuba… Esta deve ser a faceta mais Semyonov de Vítor Dias, escritor que descrevia os agentes da CIA como totalmente patibulares, ao contrário de Fleming que ainda arranjava algumas agentes russas giras para o seu James Bond

Um dos momentos melhores do poste (destacado pelo próprio): ao contrário do que muitas vezes afirmam os baralhadores profissionais de cronologias, os militares cubanos desembarcaram em Angola quando as colunas militares do regime do apartheid da África de Sul, coadjuvadas pela UNITA, se encontravam a 10 quilómetros de Luanda. Apesar do remoque preemptivo aos baralhadores profissionais de datas, Vítor Dias não se sai nada mal como baralhador amador de factos: a coluna estava perto de Luanda (mas não a 10 Km…), mas era a dos zairenses e da FNLA, não a que ele refere e, evidentemente, todos os estrangeiros (cubanos incluídos) já lá estavam em Angola há meses…

Não se monta um dispositivo defensivo cerrado, como aquele que os cubanos e o MPLA dispunham sobre o rio Bengo, num par de dias, apenas com muita devoção revolucionária… Esse dispositivo permitiu derrotar as desesperadas tentativas de penetração sobre Luanda da coluna dos zairenses e da FNLA em 10 de Novembro de 1975 (véspera da data marcada para a independência). Admito que Vítor Dias possa ser ignorante (mas não amnésico...) nestas matérias, tenho dificuldade em admitir que ele possa ser tão ingénuo para que não se tivesse documentado antes de escrever uma afirmação desmentindo terceiros de forma assim tão taxativa, mas com estes erros factuais…

Tanto mais que adiante, e contrariando mais uma vez Helena Matos quanto ao impacto estratégico da presença cubana na África austral, Vítor Dias parece documentar-se, baseando-se na opinião de uns especialistas que acham que essa presença teve até a sua influência indirecta no processo que conduziu ao fim do regime do apartheid na África do Sul… Claro que exprimindo uma opinião destas e com este nexo causal indirecto (que abre sempre possibilidades às especulações mais disparatadas...), o que dá vontade é de conhecer a identidade dos especialistas ou, pelo menos, a especialidade onde se especializaram (...), embora fique registada (neste caso) a diligência de Vítor Dias em os citar...

O não especialista que assina este poste analisa a situação doutro modo: depois de 1975 a África do Sul conseguiu instalar nos dois países lusófonos (Angola e Moçambique), através da UNITA e da RENAMO um ambiente de subversão que era precisamente o simétrico do que lá existira durante o período colonial português. E, como qualquer guerrilha subversiva, o propósito dos sul-africanos não era que os seus aliados as ganhassem, muito menos da forma clássica da conquista e do derrube dos governos instituídos - e daí não fazer sentido a evocação por Vítor Dias da contribuição cubana para a vitória na batalha do Cuito Canavale, que apenas teve um mero significado táctico…

Aliás, se a contribuição cubana tivesse sido militarmente muito significativa, então a actividade de contra subversão em Angola (onde havia militares cubanos) teria tido uma evolução muito mais favorável ao longo dos 15 anos que perdurou do que teria acontecido em Moçambique - onde não havia cubanos... Não foi obviamente o caso, porque UNITA e RENAMO mantiveram-se igualmente em campo até aos finais da Guerra-Fria. Parece que o exército cubano não descobriu o Santo Graal sobre a forma como se vence uma guerrilha subversiva… Pelo contrário, supõe-se hoje, com a clarividência que só se adquire com o passar do tempo, que a presença cubana em Angola acabou por fragilizar a posição negocial angolana nos acordos que foram firmados pela África do Sul com os seus vizinhos no princípio dos anos 90, no fim da Guerra-Fria.

Sobre as análises estratégicas em geral e sobre estes assuntos militares em particular, dizia a mitologia comunista (original) que o nascimento do Exército Vermelho devera muito às capacidades do intelectual Lev Trotsky. Suponho que Vítor Dias também esteja classificado pelo seu partido como um intelectual – mas (também) nisto suponho que o legado de Trostsky esteja perdido… e será assim que os intelectuais de partido ficam hoje reduzidos a defender as suas causas produzindo estas caricaturas de (maus) romances de espionagem de outras épocas…

10 comentários:

  1. Também existe a estória do treinador de futebol que, em garoto, era pastor de vacas. Quando o pasto secava e as vacas faziam má boca, utilizava uma película transparente verde que lhes colocava à frente dos olhos.
    Resultado: as vacas comiam tudo!

    Uma película vermelha dá origem a outras estórias mas, sabe-se lá porquê, também há quem as coma...

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  2. Prezado A. Teixeira :

    Gabando-lhe o esforço e a capacidade de efabulação que o levam a escrever parágrafos e mais parágrafos, ainda por cima sobre livros de espionagem,antes de «bater» aqui no rapaz, gostaria de,com a máxima contenção possível, salientar o seguinte :

    1. O problema destas polémicas, por mais links que democraticamente haja, é que a certa altura muitos leitores já se perderam quanto ao exactos termos em que começou a polémica.

    2. Nesse sentido, interessa lembrar que não escrevi nenhum «post» geral sobre os problemas da «internacionalização» do conflito em Angola. Limitei-me sim, em relação a um texto de Helena Matos no Público, a fazer três observações, das quais duas é que são verdadeiramente importantes; a primeira , em que continuo a não ceder um milimetro, é que a presença, em termos significativos, de tropas estrangeiras em território angolana, não é iniciada nem pelo MPLA nem por Cuba mas sim pela África do Sul e pelo Zaire com os seus aliados angolanos; a segunda, em que também não cedo, é que a fórmula de H. Matos «nem vencedores nem vencidos» aplicada às tropas cubanas não me parece corresponder bem ao contributo que efectivamente deram.

    3.Eu até posso conceder que não eram os sul-africanos que estavam a 10 km de Luanda quando o contingente cubano começa a desembarcar mas sim os zairenses (atenção, é você que o diz, os zairenses, logo estrangeiros) e a FNLA. Mas isso não altera em nada o perigo que a coluna sul-africana representava nem a evidência de que estavam muito dentro do território angolano
    (você, munido de fita métrica, me dirá a quantos quilómetros estavam).

    4. Eu nunca disse que a contribuição das tropas cubanas para a vitória na batalha de Cuito Cuanavale tinha sido estratégica ou que tinha resolvido todos os problemas da existência da guerrilha imterna, designadamente por parte da UNITA.Disse, e mantenho, que alterou em muito uma correlação de forças em que a África do Sul pesava imenso e deixou de pesar tanto (basta ver como se acelera a seguir o processo da independência da Namibia).

    5.A sua afirmação de que os cubanos já estavam em Angola há meses é perfeitamente equivoca e potencialmente mistificadora.Eu não nego que antes já poderia haver em Angola alguns conselheiros militares ou oficiais das Forças Armadas de Cuba ou da URSS. Mas obviamente o que define a presença de tropas estrangeiras não é isso mas sim a de contingentes militares
    significativos e, a esse respeito, mantenho que a deslocação de tropas cubanas para Angola se deve não a razões de «geopolítica» mas a uma situação de emergência e de contornos damáticos do ponto de vista do MPLA.

    6. Com toda a franqueza, acho uma delícia a sua tese de que « o propósito dos sul-africanos não era que os seus aliados as ganhassem [as guerilhas]muito menos da forma clássica da conquista e do derrube dos governos instituídos». Só lhe falta dizer que o que os sul-africanos queriam era jogar a feijões ou estar entretidos.

    7. Por fim, há uma afirmação que mostra como certas mentes vêm intuitos ocultos e laboriosas conspirações em coisas de explicação afinal muito simples e inocente.Refiro-me aos seus remoques por eu falar sempre da África do Sul ligando-a ao regime racista ou ao «apartheid» enquanto
    já não identifico politicamente o regime cubano. Sinceramente lhe digo: puxou-me para ali porque tive receio que jovens leitores não tivessem bem presente as mudanças ocorridas na África do Sul
    e pudessem julgar que eu estava a responsabilizar o regime que eles hoje conhecem na África do Sul. Sendo uma evidência de tal questão não se colocava com Cuba.

    E, pronto, até à próxima.

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  3. Prezado Vítor Dias:

    Faltar-me-á concerteza a capacidade de síntese e, ao contrário do que diz, a da efabulação e sobretudo faltar-me-ão as técnicas para recorrer aos efeitos de estilo que impressionam plateias, como acontece com os profissionais – e não estou a falar da profissão dos seus “baralhadores de cronologias”… Mesmo assim, consigo reconhecer algumas habilidades, como as de minorar os próprios lapsos (concedendo-os) ou a canónica técnica de vitimização: é que eu não “bati aí no rapaz”, apenas na falta de fundamentação de algumas das suas opiniões no poste em que pedagogicamente corrigiu (ou, como diz, fez três observações a) Helena Matos…

    Porventura esta minha abordagem desajeitada provocará textos mais densos e extensos, o que talvez arraste involuntariamente até mesmo quem assim os comenta: aos meus “parágrafos e mais parágrafos” (11) teve o Vítor Dias que responder “com pontos e mais pontos” (7)… Espero que não o incomode tanta prosa; para mim é um gosto… Estivesse eu também habituado a classificar algumas das suas ideias com locuções tão expressivas como… “equívocas e potencialmente mistificadoras”.

    Procurando seguir então os pontos do seu cometário, (1) – Suponho que a origem da polémica, começará nas observações que o Vítor Dias fez ao texto de Helena Matos, onde eu indisciplinadamente adicionei estas minhas críticas embora (2) me escape o seu interesse em lembrar algo que só hipoteticamente poderá confundir um leitor: neste enquadramento, só por distracção alguém consideraria que o Vítor Dias tinha escrito um poste especificamente sobre um determinado período histórico. E registo a sua posição em não ceder um milímetro (qual regimento vermelho em Estalinegrado?) quando às duas questões em contenda. (3) Agradeço a sua concessão, mas a verdade prosaica é que “meteu água”: estava a ensinar umas coisas à Helena Matos e terá confundido uns e outros; acontece… Mas não vale ironizar sobre o rigor comparando-o com a fita métrica: trata-se da diferença entre saber do assunto que se fala ou de saber apenas a doutrina e tentar lá encaixar depois os factos – trocados – de que se ouviu falar… É por isso que procuro usar argumentos concretos de logística e táctica militar que sustentam a presença antecipada dos cubanos em Angola em vez da sua argumentação doutrinal (5).

    Quanto tempo supõe que duraria o carregamento e a viagem dos barcos de Cuba ou da União Soviética até Angola, transportando o material pesado que veio a ser empregue na defesa de Luanda? Quem pensa que o operou e defendeu Luanda nesses dias iniciais de Novembro de 1975 sobre o rio Bengo? Acha que as FAPLA tinham elementos com instrução para operar aquele material pesado? Acha que os blindados do Zaire foram detidos a tiros de AK-47? Ao contrário do que refere, não se trata de uma questão de conselheiros ou de oficiais, mas sim da operação do armamento na própria frente de combate.

    Para empregar uma expressão agora nobelizável, durante anos, por conveniência da causa estabeleceu-se “Uma Verdade Conveniente”, que fazia da presença cubana em Angola uma reacção posterior à presença de zairenses e sul-africanos, mas essa versão nunca se sustentou nos factos. O estabelecimento de um contingente militar operacional, para mais quando tem que entrar em operações imediatamente, é tarefa que custa tempo a preparar e implementar e não se compadece com axioma ideológicos. Veja-se o tempo que demorou colocar o destacamento português da GNR em Timor-Leste… Depois disto, atendendo à quadra que atravessamos e supondo que não recuará o tal milímetro, só me resta deduzir que acredita em milagres e que a defesa de Luanda foi um “milagre do marxismo-leninismo”… Mas teologia eu não discuto.

    Com toda a franqueza, acho surpreendente a delícia que refere em (6). Retribuindo-lhe a sua ironia (eu suspeito não ser autor da sua predilecção mas admiti que tivesse lido algum material interessante do camarada Mao sobre o tema dos objectivos da guerra subversiva…), devo então deduzir que, segundo a sua opinião, terá sido o impressionante poderio militar moçambicano que impediu os sul-africanos de apoiar a RENAMO para que ela conseguisse conquistar Maputo e transformar Moçambique num satélite sul-africano?... Ou então os sul-africanos estavam interessados em depor Samora Machel, mas terá sido a defesa intransigente das massas populares que impediu isso. As consequências políticas internacionais desse gesto para a África do Sul foi um problema com que os sul-africanos nunca se defrontaram…

    Mas é por aquele seu “deliciamento” que nunca cometeria a indelicadeza de o fazer classificar a natureza (táctica ou estratégica) dos resultados da batalha do Cuito Canavale (4)... A classificação é minha e a sua interpretação das consequências tácticas é defensável (embora não a subscreva totalmente – nem a de Helena Matos, de resto), a sua extrapolação (e dos tais especialistas…) dessas consequências para a independência da Namíbia será bastante mais arriscada… Parece-me que há uma causa global mais evidente: o fim da Guerra-Fria, que ocasionou depois o fim do “apartheid” na África do Sul.

    E (7) esta mente não vê conspirações nem intuitos ocultos, apenas pessoas que se mostram “facciosas como o caraças”; nas suas palavras, foi por acaso que “puxou para ali”, mas já deu para perceber que, pelo mesmo acaso, puxa sempre para o mesmo lado… A propósito, nunca leu mesmo nada de Julian Semyonov? Se acaso encontrar um exemplar do “A Tass foi autorizada a informar” não leva a mal que lho ofereça? A Nagónia do livro é muito parecida com a sua Angola.

    E pronto, é sempre um prazer quando se usufruem destas amplas liberdades de inserir as opiniões de cada um nas caixas de comentários e elas são depois respondidas… Mande sempre.

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  4. Sr. A. Teixeira, se me permite, anexo alguns dados sobre o processo que conduziu à independência de Angola. Obviamente que os mesmos só terão valor se se respeitar cronologicamente as datas (Antes de chegarmos à Foz do Rio, devemos começar pela Nascente). Se os autores dos testemunhos citados não nos merecem credibilidade, então quem a merecerá?

    Em 15 de Janeiro de 1975, no Alvor, Algarve, o Estado português estabeleceu por acordo com o MPLA, a FNLA e a UNITA o processo e o calendário do acesso de Angola à independência, definindo Angola como «uma entidade una e indivisível», cuja independência e soberania plena seria proclamada em 11 de Novembro desse ano. Até lá, o Poder seria exercido por um alto comissário e por um governo de transição, obrigando se o Estado português «a transferir progressivamente, até ao termo do período transitório, para os órgãos de soberania angolana, todos os poderes que detém e exerce em Angola». 0 Governo Transitório tomou posse em 31 de Janeiro, composto por 13 ministros (4 nomeados por Portugal, 3 pelo MPLA, 3 pela FNLA e 3 pela UNITA), e as forças armadas foram integradas num só exército de 48 000 homens, metade dos quais portugueses, e 8000 por cada uma das outras três partes. Para 31 de Outubro foi marcada a eleição de uma Assembleia Constituinte. Nessa data, a «coluna Zulu» do exército sul africano, enquadrando 500 a 1000 soldados da UNITA e um contingente de mercenários portugueses do ELP, tinha ocupado todo o Sul de Angola até à linha Lobito Luena, e a «coluna Foxbat», igualmente sul africana, tinha se desdobrado a partir do Huambo ao longo do Caminho de ferro de Benguela em direcção à fronteira leste e rumo a Uaco-Cungo, para norte. Ao mesmo tempo, tropas regulares do exército do Zaire, reforçadas com artilharia sul africana, tinham invadido Angola pela fronteira norte, enquadrando forças da FNLA e uma coluna de mercenários do ELP, chegando a 20 km de Luanda e tentando, simultaneamente, ocupar a província angolana de Cabinda. «Às zero horas de 11 de Novembro de 1975, os invasores ocupavam 12 das 17 províncias de Angola.»(1) Mas, às zero horas de 11 de Novembro de 1975, Agostinho Neto proclamou em Luanda em nome do MPLA a República Popular de Angola. Ainda em Novembro, tropas conjuntas angolanas e cubanas derrotaram os batalhões do Zaire/FNLA/ELP em Kifangondo; na debandada, os invasores «descarregaram a sua frustração nas aldeias e vilas do Norte de Angola»(2). As tropas da África do Sul/UNITA/ELP foram, por seu lado, contidas no rio Queve e, até final de Fevereiro, foram forçadas a retirar para a fronteira da Namíbia, cortando as pontes na retirada para evitar o combate directo com as tropas angolanas e cubanas. Mas a serpente foi deixando os seus ovos no terreno.

    A violação dos Acordos do Alvor tinha começado muito antes da invasão. Em Março de 1975, pouco mais de um mês após a tomada de posse do governo de transição, começaram as agressões das tropas da FNLA às forças do MPLA. O professor John Marcum, a maior autoridade norte americana em questões angolanas, escreveu um ano depois: «Durante a Primavera de 1975, tropas da FNLA que penetraram em Angola idas do Zaire, juntamente com elementos do exército do Zaire, começaram a atacar as unidades do MPLA em Luanda […] Durante os combates, um grupo de 50 homens armados do MPLA foi assassinado ferozmente por homens da FNLA.»(3) John StockwelI, que chefiava a força de intervenção da CIA no terreno, referiu por seu lado que em Fevereiro de 1975, seis meses após a CIA ter iniciado o financiamento secreto da FNLA e um mês após o Senado norte americano ter aprovado o financiamento regular, a FNLA, «encorajada por Mobutu e pelos EUA», introduziu «forças bem armadas para o interior de Angola», alterando assim os quantitativos de efectivos acordados no Alvor, com o objectivo de atacar o MPLA. Em Julho de 1975, disse ainda StockwelI, os EUA aprovaram um programa de 14 milhões de dólares para apoiar a UNITA e a FNLA contra o MPLA e, nesse mesmo mês, começaram a ser desembarcados em Angola carregamentos de armas fornecidas pela CIA, ao mesmo tempo que unidades blindadas do exército do Zaire se juntavam às tropas da FNLA. No mês seguinte iniciou se a invasão sul africana (4). Torna se hoje claro que os que acusam o MPLA de ter tomado o Poder desrespeitando os Acordos do Alvor são precisamente aqueles que, apesar de desrespeitarem esses mesmos Acordos, não conseguiram tomar o Poder.

    (1) John Stockwell, “A CIA contra Angola”, Ulmeiro, Lisboa, 1979.
    (2) Ibidem.
    (3) John Marcum, Foreign Affairs, Washington, Fevereiro de 1976.
    (4) John Stockwell, “A CIA contra Angola”.

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  5. (Continuação...)

    De acordo com uma alta patente militar portuguesa, o plano para a invasão de Angola foi decidido em Agosto de 1975, em Windoeck, na Namíbia ocupada então pela África do Sul, O plano destinava-se explicitamente a «aniquilar o MPLA» até 11 de Novembro e, para tal, previa o emprego de tropas zairenses e sul africanas com apoio norte americano e intervenção de mercenários portugueses e de outras nacionalidades. Na reunião, participaram civis e militares portugueses, dos quais pelo menos um oficial general da Força Aérea desempenhava funções oficiais. Para além da parte do plano de Windoeck que veio a ser executada, e que se destinava a atingir Luanda pelo Norte, Leste e Sul, foi discutida a hipótese de um desembarque de forças navais na baía de Luanda, para onde tinha avançado uma esquadra norte americana comandada pelo porta aviões Independence. Os Estados Unidos, atingidos pelo sindroma do Vietname, opuseram se porém à abertura dessa frente para evitar previsíveis confrontos directos com a armada soviética.
    Os EUA e a CIA, segundo o testemunho autorizado de StockwelI, encararam quase todas as hipóteses para impedir a proclamação da independência de Angola pelo MPLA: desde a criação de uma «quarta força», com base em quadros destacados da FNLA e da UNITA, hipótese que abandonaram pois o apoio do apartheid a Savimbi «o desacreditava como nacionalista africano», à tomada do Poder por um batalhão de 300 comandos portugueses. Para este plano, a CIA tinha o seu homem no coronel Gilberto Santos e Castro, irmão do último governador colonial, Fernando Santos e Castro, criador dos comandos em Angola, 20 anos no exército e na administração coloniais, com sólidas ligações à contra revolução em Portugal. O coronel prontificou se a conquistar Luanda à frente de 300 mercenários, tomando o Poder «para a FNLA ou para o Dr. Kissinger». Stockwell revelou que Santos e Castro recebeu da CIA um total de 569 605 dólares, mas não reuniu mais que «algumas dúzias de recrutas». Para além do coronel Santos e Castro, Stockwell trabalhou com «outros oficiais», que no seu relato designa por pseudónimos, e também com o inspector Jaime Oliveira, da PIDE, antigo responsável pelo recrutamento de informadores africanos em Luanda e que tinha passado a chefiar os «serviços de informações» da FNLA (5). Também a «coluna Zulu» trazia consigo quando invadiu Angola pelo Sul antigos graduados da PIDE que não só serviam de pisteiros aos invasores como também colaboravam na denúncia e repressão de militantes e simpatizantes do MPLA. Por exemplo,, quando atingiu a capital da Huila, Lubango, o contingente da África do Sul/UNITA/ELP, envergando fardamento do Exército português, integrava graduados da ex PIDE que traziam consigo listas completas dos quadros do MPLA a abater, retiradas dos ficheiros da PIDE/DGS (6).

    Perdida a batalha de Novembro, os agressores de Angola tentaram ainda ganhar a guerra, recrutando vagas de mercenários nos EUA e na Europa. Para a guerra do desespero voltaram à cena, entre outros, Michael Hoare, chamado «Mike O Louco», Jean Schramme, Bob Denard, Costa Georgiu, dito «comandante Callan», «rambos» de sucessivas guerras sujas em África. Mas Angola foi talvez «o fim do mito dos mercenários»: os únicos grupos que chegaram a entrar em combate, os do «comandante Callan», foram dizimados e os sobreviventes foram presos, julgados e condenados em Luanda em Julho de 1976. A Comissão Internacional de Inquérito que acompanhou o julgamento salientou no seu relatório que os EUA tinham utilizado uma verba de 42 milhões de dólares, movimentada através de transferências bancárias efectuadas pelas embaixadas do Zaire, para recrutar mercenários nos Estados Unidos, Grã-bretanha, França, Bélgica, Holanda e Portugal (7). A imprensa internacional revelou na ocasião que «grupos de mercenários contratados com dinheiro da CIA e enviados a partir de Joanesburgo» estavam a actuar contra Angola, a partir das bases de Rundu e Grootfontein, na Namíbia ocupada, e sob o comando de oficiais sul africanos e de quadros da PIDE (8). Diversos órgãos da imprensa portuguesa revelaram, por seu lado, o trânsito do recrutamento em Portugal, nesse ano de 1976 e em anos seguintes. «Os recrutamentos são feitos de uma forma quase descarada, quer em Lisboa, quer no Porto ou em Braga. Tudo se faz sem quaisquer problemas, desde os contactos iniciais até falsificação dos documentos e à saída pelas fronteiras», onde contam com «facilidades por parte de funcionários do aparelho de Estado», segundo revelou um ex mercenário que, mais tarde, desertou das fileiras da UNITA. Conforme acrescentou, o recrutamento de mercenários passava por estruturas do MIRN, do Esquadrão Chipenda e da “Fraterna” e envolvia como «suporte» antigos oficiais portugueses e ex graduados da PIDE radicados em Madrid. Dai, os mercenários seguiam para a África do Sul, com trânsito por Marrocos, e uma vez na África do Sul eram integrados em unidades especiais baseadas no Norte da Namíbia (9).

    (5) John Stockwell, “A CIA contra Angola”.

    (6) Vitor Galvão Rocha, ex oficial das FAPLA, entrevista no Lubango, em 27 4 1985.

    (7) Raul VaIdés Vivó, Angola: O Fim do Mito dos Mercenários, África Editora, Lisboa, 1976.

    (8) Daily Telegraph, 29 1 1976.

    (9) Diário de Lisboa, 6 10 1981.

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  6. (Continuação...)

    Quanto à polémica de(antes da invasão sul-africana)haver já cubanos em Angola), obviamente que havia alguns, e até portugueses (eu inclusive), e zairenses, e sul-africanos,e guineenses, e cabo-verdianos etc. Não confundamos algumas dezenas de elementos de outras nacionalidades ( armados ou não)com forças militarizadas tecnicamente evoluídas, como era o caso do exército da maior potência militar em África.

    Quanto à distância a que se encontravam de Luanda as forças invasoras em vésperas de 11 de Novembro de 1975, é histórico que os sul-africanos se encontravam nas "Cachoeiras mdo Rio Queve", e que só não avançaram mais porque militares e civis( alguns, meus amigos, incluído o filho de um deles, com uns 13 ou 14 anitos)destruiram a ponte sobre o Queve. Soube eu alguns meses mais tarde ( naquela data estava detido numa das masmorras de Savimbi)que, em 10 de Novembro, Neto se preparava para proclamar aos microfones da Rádio a independência para poder solicitar imediatamente a ajuda dos soviéticos que se encontravam ao largo de Luanda ( num ou em mais navios?), retrocedendo no último momento ( já com o som ligado)quando soube que as forças do "Apartheid" haviam sido sustidas no Quanza-sul.

    Sr. A. Teixeira: a História é o que é e não aquilo que gostaríamos que fosse.


    Um abraço.

    D. Cunha

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  7. Caro A. Teixeira:

    Desculpe estar a tornar-me fastidioso:

    O mesmo John Stockwell escreve no seu livro "In Search of Enemies" como ele e a sua equipa inventaram um extenso rol de atrocidades cometidas pelos soldados cubanos que combatiam na altura junto do exército do MPLA. E — conta — "conseguindo fazer divulgar na imprensa internacional uma série de artigos descrevendo com pormenor acontecimentos tão importantes quanto inventados: violações, perseguição e captura de prisioneiros, execuções sumárias, etc."

    Mais um abraço.

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  8. Meu Caro Sonhâmbulo:

    De facto, em resposta a este último comentário seu, tenho que lhe confessar com toda a honestidade que acabou a senda dos 4 comentários a tornar-se um pouco fastidioso. Não é meu costume analisar quem tem razão na análise de um processo histórico com o mesmo método com que um bom burocrata analisará um outro processo qualquer: quanto mais espesso e pesado for, mais sustentado, logo melhor, será… Com certeza, é porque tem bastante a dizer, e de qualidade…

    Foi opção sua começar pelos Acordos de Alvor, para depois culpar exclusivamente a FNLA pela escalada de violência que se seguiu, encadeando-se a seguir uma narrativa sua muito detalhada de acontecimentos (parabéns pelo detalhe!) onde o MPLA, Cuba (presumo que também a União Soviética…) não assumem por nenhuma vez qualquer comportamento reprovável… A FNLA foi financiada vergonhosamente pela CIA, o MPLA terá sido através de umas rifas, uns leilões, coisas assim…

    Diz-me a experiência que quando os episódios históricos são retratados com um tal maniqueísmo, onde só há bons de um lado e só há maus do outro estamos perante peças de Propaganda e não daquela História de H grande a que se pretende referir no final dos seus 4 comentários. E não é questão que a quantidade de bibliografia solucione: se são muitos livros a repetirem sempre a mesma coisa isso não alarga a nossa perspectiva sobre o assunto, torna-se apenas peso a mais…

    A sua narrativa da Angola de 1975 será simétrica de uma que possa vir a ser escrita por Jaime Nogueira Pinto (alguém que reconhecidamente também conhece a fundo esta matéria e esteve em Angola naquela época), que lhe explicará (e fundamentará com bibliografia também extensa, mas antagónica à sua…) que a África do Sul apenas invadiu Angola porque Cuba, a mando da União Soviética, já havia começado a – ou se preparava para – invadir Angola…

    A minha perspectiva pretende ser diferente das vossas, procura não ser metafórica (a propósito, rica imagem a sua, a da coluna sul-africana retirando-se e deixando os ovos da serpente para trás…), nem imaginativa (o ELP e o MIRN em 1975 e em Angola?...), nem ideológica. Disputou-se um jogo sórdido em Angola em 1975, onde não houve nem inocentes nem ingénuos: antecipava-se que iria haver um vazio de poder e que esse vazio seria disputado de forma armada e nos dois blocos reagiu-se em conformidade…

    Admito que por distracção, para o conteúdo da sua longa exposição ter-lhe-ão escapado a tentativa de responder a algumas perguntas sucintas e muito concretas, pouco ideológicas, envolvendo questões de táctica e logística militar, que deixei ao cuidado das explicações do comentador anterior, Vítor Dias, que consigo compartilha a versão da chegada dos cubanos no último instante, como o “7º de Cavalaria”, tocando o clarim, quando já não havia munições para derrotar os índios:

    “Quanto tempo supõe que duraria o carregamento e a viagem dos barcos de Cuba ou da União Soviética até Angola, transportando o material pesado que veio a ser empregue na defesa de Luanda? Quem pensa que o operou e defendeu Luanda nesses dias iniciais de Novembro de 1975 sobre o rio Bengo? Acha que as FAPLA tinham elementos com instrução para operar aquele material pesado? Acha que os blindados do Zaire foram detidos a tiros de AK-47?”

    Suponho que talvez não esteja habilitado para lhes responder, mas a sua existência pode ser um bom motivo para que alargue as suas consultas bibliográficas… Porque só nos filmes é que o 7º de Cavalaria aparece de clarim sonante no horizonte quando a situação está desesperada… Na História a sério, o general Custer foi massacrado, ninguém lhe valeu, e, muito mais frequentemente, os do 7º de Cavalaria estavam lá desde o princípio da batalha para massacrar os índios…

    Confundir enredos de filme com história – como essa da proclamação de Agostinho Neto aos microfones que estava “quase” a ir para o ar mas não foi porque se ouviu o “clarim do 7º de cavalaria” a anunciar a derrota dos sul-africanos… – já é mau… Procurar pegar nesses enredos para tentar exibir um argumento de autoridade (“a História é o que é e não aquilo que gostaríamos que fosse”), Sr. D. Cunha, é patético…
    Como lhe disse acima, a sua história pode servir especificamente para propaganda, mas a História deve ser mais do que isso.

    Um abraço

    A.Teixeira

    PS – Posso-lhe sugerir uma bibliografia mais diversificada, se quiser.

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  9. Transcrevo a sua afirmação:

    "Não é meu costume analisar quem tem razão na análise de um processo histórico..."

    Perante isso: para quê perder mais tempo a falar de "História", de factos, de datas, de "fontes" ( como, por exemplo, Marcum ou Stockwell)se o Senhor não podia ser mais honesto ao dizer o que disse.

    Certamente (provavelmente?) afirmará que aqueles dois senhores (que eu julgava como insuspeitos)serão dois ferozes comunistas, aliciados pelo tenebroso MPLA do não menos "tenebroso" Agostinho Neto!

    Assim sendo, e ao vê-lo passar por cima dos testemunhos daqueles dois senhores, assim como pelos factos cronológicos ( pois a História escreve-se desde o princípio e não a partir do fim), só me resta desejar-lhe muitas felicidades nas suas espinhosas lucubrações histórico-filosóficas.

    Passe bem.


    DE. Cunha

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  10. Meu caro Sonhâmbulo:

    Correu-lhe mal a doutrinação, não foi?! Tinha cá vindo explicar-me as coisas, com pinta de quem “dominava a matéria” e aqui tinha vindo “buscar lã” e, quando regressou e leu a resposta, fazia-o ter o aspecto de ter sido “tosquiado”… E, pior, parece-me que houve partes em que nem sequer percebeu bem porque o tinha sido… É que constrói toda a sua argumentação num erro crasso:

    É que à sua citação da minha frase "Não é meu costume analisar quem tem razão na análise de um processo histórico..." falta-lhe descaradamente o complemento “com o mesmo método com que um bom burocrata analisará um outro processo qualquer”. E, na eventualidade do amigo D. Cunha não ter percebido ao que me referia eu ainda adicionei, irónico: “quanto mais espesso e pesado for, mais sustentado, logo melhor, será…”

    É um caso flagrante de alguém que não sabe utilizar ironias (eu) ou de alguém que não as entende e não as sabe utilizar como citações no contexto devido (o amigo D. Cunha). O que eu quis dizer foi que um assunto destes não pode ser analisado apenas pela extensão da argumentação e pela quantidade das fontes, porque elas têm de ser diversas, dos vários lados do conflito. Se fizesse processos de intenção – porque terá havido ironias que o D. Cunha terá percebido, como aquela das rifas que financiaram o MPLA… – diria que foi deliberadamente obtuso, assim, só posso afirmar que um de nós terá falhado…

    Por isso, ao contrário da intenção que me quer atribuir, é meu costume analisar quem tem razão na análise de um processo histórico… E tanto pior para as considerações que tece a meu respeito a partir daí… Mas olhe que, para essas análises e ao contrário do que diz, não há fontes insuspeitas, nem o Sr. Marcum, nem o Sr. Stockwell… Olhe, nenhum dos dois me responde às perguntas que fiz originalmente ao Vítor Dias e que depois lhe endossei…

    Em contrapartida, mesmo aqui na Internet, há fontes que são tão taxativas (http://www.acig.org/artman/publish/article_181.shtml ou http://arch.cubaencuentro.com/rawtext/internacional/2002/04/29/7571.html) a afirmar que a presença zairense e sul-africana em Angola é uma reacção à presença cubana quando o meu prezado amigo D. Cunha é taxativo na tese diametralmente oposta… Claro que qualquer dos textos que indico também contem uma imensidade de disparates mas, como peças de propaganda, valem, pela simetria, pelos disparates da versão que aqui tentou contar sobre o assunto, D. Cunha.

    Honestamente, acho que estão bem uns para os outros, e há que encontrar a verdade provável na bissectriz das duas causas… Será uma lucubração, é histórica, pode ser espinhosa, mas neste caso a filosofia (do marxismo-leninismo) é inteiramente sua, meu caro D. Cunha…

    Um abraço

    A.Teixeira

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