09 outubro 2007

MEMÓRIAS DE GUERRA

Nos finais de 1944, o actor e comediante americano Mel Brooks (abaixo) fazia parte da verdíssima 106ª Divisão de Infantaria norte-americana, uma unidade que acabara de chegar em Novembro à Europa e fora conduzida no mês seguinte para a tranquila (pensava-se…) frente de combate das Ardenas para habituação ao combate. Depois, a 16 de Dezembro, dois exércitos alemães (V Exército Blindado e VI Exército Blindado SS) desencadearam aquela que seria a sua última ofensiva na frente ocidental, precisamente na região das Ardenas.
A descrição de Brooks da sua experiência é sucinta, engraçada mas assustadora: … de repente à nossa volta, Waauhwaauhwaauh! Sirenes! Tanques Tigre! Estamos cercados pelos alemães. É a Ofensiva das Ardenas! Mãos ao ar! Esperem, disse eu, acabámos de sair de Oklahoma! Nós somos os americanos! É suposto estarmos a vencer! Assustados, lá nos escapámos… E então eles começaram a disparar. Aí vem mais uma! Bullshit! Só o Burt Lencaster é que diz bullshit nestas ocasiões… Nós dizíamos Oh, meu Deus! Mãezinha!!!...
As memórias de guerra são díspares. Estas de Mel Brooks*, contadas 33 anos depois dos acontecimentos parecem ser uma maneira de sublimar em humor aquilo que deve ter sido um péssimo momento para o autor. E, apesar de aparentemente ligeiras, ninguém lhes pode retirar o cunho de genuínas… Também nesta faceta, o Ocidente venceu o Leste na Guerra-Fria pela superioridade de deixar contar as próprias fraquezas, mesmo na vitória: um texto como o de Brooks seria impensável se publicado na União Soviética e atribuído a um qualquer veterano seu da Segunda Guerra Mundial.
Não que eles não tivessem sofrido tanto (ou provavelmente até mais) quanto os seus oponentes alemães ou que os veteranos de outras frentes daquela Guerra. O problema é que essas confissões foram sempre filtradas para que nelas não aparecesse nada que fosse doutrinalmente perigoso: por exemplo, ninguém pôde ter ataques de desânimo durante a defesa de Estalinegrado… E com isso, paradoxalmente, dava-se a sensação aos ocidentais que os depoimentos eram feitos por manequins de pau ornamentados de medalhas, facilitando a identificação daquela bizarria com o inimigo da próxima Guerra…
Se fosse preciso que eu sintetizasse os benefícios da existência da blogosfera apenas num blogue, possivelmente na minha selecção final estaria Luís Graça & Camaradas da Guiné, um blogue colectivo precisamente de memórias de guerra da Guiné durante a Guerra Colonial, de que um dos pontos mais fortes é a variedade dos colaboradores, das memórias e dos pontos de vista nele contido, a propiciar uma variedade temática que não seria possível se não fosse a blogosfera. Em toda aquela riqueza documental existe apenas um óbice, e é dele que quero aqui lamentar-me…
É que o pouco que lá tem aparecido relacionado ou oriundo do antigo inimigo (o PAIGC), comparado com as histórias dos veteranos portugueses, é de um tal formalismo acompanhado duma rigidez ideológica extrema e de tal forma pobre em impressões pessoais, que faz lembrar os depoimentos exageradamente heróicos dos veteranos soviéticos com o peito cheio de medalhas que mencionei acima… Esta guerra terminou também há 33 anos mas, se lermos o que naquele blogue está disponível sobre os nacionalistas guineenses, até parece que os tugas lutaram contra deuses mitológicos que não sofreram as agruras do combate…

Nota: As três últimas fotografias deste poste foram retiradas, obviamente, de Luís Graça & Camaradas da Guiné, com os meu agradecimentos.

* Numa entrevista à revista Playboy em Fevereiro de 1978.

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