28 outubro 2007

O SOLUÇO TELEVISIVO DE CARLOS ARIAS

Carlos Arias Navarro (1908-89) foi o último presidente de conselho do franquismo, e um bom exemplo da progressiva decadência do regime espanhol naquela sua fase terminal. Carlos Arias foi nomeado para o cargo na sequência de um atentado da ETA em 20 de Dezembro de 1973, que vitimou o seu antecessor no cargo e que fora o homem de confiança de sempre do Generalíssimo Francisco Franco, o Almirante Carrero Blanco.
O atentado foi espectacular (no sentido estrito da palavra), com uma enorme carga explosiva colocada nos subterrâneos de uma rua por onde estava a passar o carro blindado que transportava o Almirante e que, detonada, o projectou a uma altura de seis andares, rolando por cima do telhado do prédio fronteiriço, vindo a cair nas traseiras desse mesmo prédio (como se pode ver pelo esquema acima).

Foi nesse ambiente de desânimo que um dos ministros do executivo, Arias Navarro (abaixo), foi indigitado, com as opiniões em surdina a atribuírem a sua nomeação às opiniões de D. Cármen, a esposa de Franco, porque o funcionamento dos mais altos circuitos de poder em Espanha tendia cada vez mais a funcionar de uma forma parecida com a das antigas cortes monárquicas quando o monarca em funções se tornava cada vez mais senil...
A governação de Arias (Fevereiro de 1974 – Junho de 1976), que começou com um discurso prometedor de uma certa abertura política (que ficou sendo conhecida como o Espírito do 12 de Fevereiro) foi tão titubeante que, comparada com ela, a de Marcelo Caetano, seu homólogo português, quase contemporâneo no cargo e que se defrontava com um problema de abertura política semelhante (A Primavera Marcelista), pode passar por ter sido um modelo de decisão e coragem...

Em menos de seis meses, os ultras do regime espanhol (coloquial e colectivamente designados por el búnker) tinham forçado o afastamento dos dois ministros de perfil mais liberal do executivo de Arias e o presidente do conselho havia tirado o tapete ao Chefe de Estado-Maior espanhol, General Diez Alegria, quando este encetou uns tímidos contactos de abertura, com o seu conhecimento e concordância prévia, por ocasião de uma visita à Roménia. Tendo tido a vantagem de poder observar o que acontecera a Marcelo, nem isso o motivou a agir...
Por isso, para a História considero que Carlos Arias Navarro é um exemplo acabado do que se costuma designar ironicamente por um enorme erro de casting, pontapeado para um lugar acima das suas capacidades. Mas não deixo de nutrir uma certa simpatia pessoal pelo homem a quem coube a missão de anunciar perante as câmaras de televisão (acima) a morte de Franco (a 20 de Novembro de 1975) e que não conseguiu terminar a alocução sem emitir um sincero soluço abafado de comoção*.

Revendo essas cenas do passado, enquadrando-as com o artigo sobre a mentira como virtude política, publicado ontem no Público e assinado por António Barreto (um excelente artigo!), há que reconhecer que, sendo as mentiras uma prática política de sempre, parece que episódios como aquele de Arias Navarro são raros e cada vez nos tornamos mais cínicos porque se torna cada vez mais difícil ajuizarmos quando os protagonistas da actividade estão a ser sinceros, tal a sua sofisticação interpretativa.
Ainda a propósito de interpretações, será que alguém se lembra quando alguém nos falou da alocação de 6% do PIB para o sector da Saúde? Será que alguém se lembra como todos os presentes aceitaram a declaração como boa e que foi uma pergunta casual imprevista que nos fez perceber que o autor da promessa não tinha a mínima ideia de quanto dinheiro estava a falar? Será que alguém se lembra do esforço feito para abafar as imagens do incidente, e que foi a SIC boicotou o acordo tácito para não transmitir as imagens?

Lembrei-me do soluço genuíno de Carlos Arias e das outras coisas que são trabalhadas para parecer genuínas porque, no tal artigo do Público, tendo-se lembrado das mentiras virtuosas do actual e de outros ex-primeiros-ministros, António Barreto parece ter-se esquecido deste. E estes erros de casting, só por serem erros de casting, não merecem tal esquecimento...

* O discurso tornou-se um clássico espanhol, aqui parodiado.

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