Quem analisasse o dispositivo organizado pelas Forças Armadas francesas na sequência da declaração da Segunda Guerra Mundial, em Setembro de 1939, e o fizesse daquela forma canónica, da enumeração das unidades militares e das ordens de batalha dos dois antagonistas, complementando-a depois com as quantidades e os desempenhos dos vários tipos de material de guerra (artilharia, blindados) disponível de cada lado, teria sido praticamente impossível chegar à conclusão que, após o começo das operações, o Exército francês entraria em colapso numa meia dúzia de semanas.
É que, contando efectivos e expondo as respectivas ordens de batalha, o exército francês contava de início com 116 Divisões ou Sectores de Fortaleza (na Linha Maginot), a que havia que adicionar ainda as divisões da Força Expedicionária Britânica (BEF), do Exército belga e do Exército holandês para fazer frente às 136 Divisões com que o Exército alemão contava na frente ocidental em Abril de 1940. O equilíbrio parecia ser notório, tanto mais que competiria a quem tomasse a iniciativa – aos alemães – adquirirem superioridade.
Uma enumeração das unidades supranumerárias (não pertencentes às grandes unidades divisionárias) do Exército francês dessa altura daria uma sensação de máquina colossal: 40 batalhões de blindados, 19 batalhões de metralhadoras, 78 batalhões e 5 regimentos de infantaria independentes, 56 regimentos de artilharia independentes, 101 batarias fixas e 78 móveis de artilharia de fortaleza, 4 regimentos de dragões transportados, 8 batalhões de sapadores mineiros, 16 batalhões de sapadores de caminho de ferro, 188 companhias aerotransportadas, etc.
No material, dando um propositado destaque aos blindados, que virão a tornar-se muito importantes na realização da manobra alemã, a comparação entre o que está disponível de um lado e doutro é surpreendentemente favorável aos aliados, quer em números (2.574 alemães versus 2.475 franceses e 600 britânicos), quer em blindagem ou na potência da artilharia que os equipa. O mesmo se passava na artilharia, onde o número de bocas de fogo disponíveis do lado aliado (14.000) era sensivelmente o dobro do que podia ser contado do lado alemão (7.500).
Para entrever verdadeiras causas para o que se iria passar depois é melhor estudar a orgânica funcional do topo da administração francesa. Existia um Presidente da República: Albert Lebrun, mas o presidente francês da III República era uma figura decorativa. Havia um Presidente do Conselho: Paul Reynaud, mas a ideia que o líder político exercesse pessoalmente o comando supremo (como Churchill) era coisa que não encaixava com as concepções francesas, para mais fundadas no precedente histórico da Primeira Guerra Mundial. Havia o Ministro da Defesa Nacional: Édouard Daladier, sem utilidade para as relações hierárquicas entre o governo e as forças armadas - embora fosse o protector político de Gamelin...
Confusa no lado civil, a orgânica não funcionava melhor do lado militar: Maurice Gamelin era o Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas* e deveria ter sob as suas ordens os três ramos. Mas não tinha, a Marinha tinha uma tradição de independência em relação ao Exército que a Aeronáutica copiara… Mas o que interessaria numa guerra contra a Alemanha seriam as forças terrestres e sendo seu Comandante-Chefe, Gamelin poderia acumular essa função, como acontecera com Joffre em 1914, com o comando da frente principal, onde se esperaria a invasão alemã. Porém, quem comandava esse enorme Teatro de Operações (TO) denominado Nordeste, que se estendia do Mar do Norte ao maciço do Jura era o general Georges.
Como Georges pertencia a um clã distinto do de Gamelin, este último guardou para si diversas prerrogativas de comando, entre as quais as nomeações dos oficiais generais das unidades do TO sob o comando de Georges que incluíam 3 Grupos de Exércitos, 10 Exércitos, 22 Corpos de Exércitos e 77 Divisões. Complementado pelas relações directas dos nomeados com Gamelin, e pelo carácter redondo das instruções que emanavam do Quartel-General de Gamelin para não melindrar Georges**, no sector mais nevrálgico do Exército francês desrespeitava-se ostensivamente o princípio militar sagrado da unidade de comando…
Evidentemente que num poste não se podem condensar todas as causas que se considera terem sido as responsáveis pelo resultado da campanha de França de 1940. Mas a ideia que vale realçar é que as causas principais costumam nada ter a ver com aqueles aspectos superficiais que costumam ser destacados em análises militares, como efectivos e unidades envolvidas ou as performances do material, como se o desempenho de uma força militar se pudesse avaliar pela mesma lógica de um manual de instruções de uma aparelhagem estéreo ou um ecrã de plasma... Neste caso, o colapso francês dever-se-á mais a outros factores, incluindo a sua própria orgânica medíocre.
E também é evidente que o que ficou dito não desmente máximas militares, como a afirmação que, no final, a vitória vai para o exército que possui mais batalhões – porque a afirmação é verdadeira ceteris paribus***. Nem pretende retirar importância às qualificações técnicas dos equipamentos que esses exércitos usem. Só que quando o desequilíbrio técnico entre dois exércitos é evidente, normalmente a parte em inferioridade reconhece-o e não há conflito frontal – o famoso episódio dos lanceiros polacos a cavalo que atacaram os blindados alemães em 1939 é conhecido não só pelo seu absurdo, mas também pela sua raridade (menos conhecidas são as dúvidas quanto à existência real do episódio...).
Mas não deixa de ser curioso ter sido também dum francês (embora corso - Napoleão) aquela máxima de que na guerra a importância da moral está para a do material numa relação de três para um. Muito citada, parece ser uma máxima pouco compreendida porque, apesar dos exemplos flagrantes (como este que acabei de apontar), em que o método fracassou na antecipação como decorreria e qual seria o desfecho de um conflito, ainda hoje – e em sítios mais especializados do que páginas de jornal – se lêem análises militares pretensamente especializadas, baseadas no rol tradicional dos efectivos, artilharia, blindados e aviação. Que conclusões se podem extrair apenas com aqueles dados? No caso do exemplo iraniano acima, onde aparecem as enormes rivalidades entre as hierarquias do exército tradicional e da guarda islâmica (pasdarans)?
* Chef d'état-major des armées
** Emblemática é uma ordem de serviço de Gamelin que começava assim: Sans vouloir intervenir dans la conduite de la bataille en cours... (Sem querer intervir na condução da batalha em curso…).
*** Ceteris paribus é uma expressão latina, muito usada em economia, que se pode traduzir por mantidas inalteradas todas as outras coisas. Neste caso, que os dois exércitos sejam idênticos em todos os outros aspectos.
Uma enumeração das unidades supranumerárias (não pertencentes às grandes unidades divisionárias) do Exército francês dessa altura daria uma sensação de máquina colossal: 40 batalhões de blindados, 19 batalhões de metralhadoras, 78 batalhões e 5 regimentos de infantaria independentes, 56 regimentos de artilharia independentes, 101 batarias fixas e 78 móveis de artilharia de fortaleza, 4 regimentos de dragões transportados, 8 batalhões de sapadores mineiros, 16 batalhões de sapadores de caminho de ferro, 188 companhias aerotransportadas, etc.
No material, dando um propositado destaque aos blindados, que virão a tornar-se muito importantes na realização da manobra alemã, a comparação entre o que está disponível de um lado e doutro é surpreendentemente favorável aos aliados, quer em números (2.574 alemães versus 2.475 franceses e 600 britânicos), quer em blindagem ou na potência da artilharia que os equipa. O mesmo se passava na artilharia, onde o número de bocas de fogo disponíveis do lado aliado (14.000) era sensivelmente o dobro do que podia ser contado do lado alemão (7.500).
Para entrever verdadeiras causas para o que se iria passar depois é melhor estudar a orgânica funcional do topo da administração francesa. Existia um Presidente da República: Albert Lebrun, mas o presidente francês da III República era uma figura decorativa. Havia um Presidente do Conselho: Paul Reynaud, mas a ideia que o líder político exercesse pessoalmente o comando supremo (como Churchill) era coisa que não encaixava com as concepções francesas, para mais fundadas no precedente histórico da Primeira Guerra Mundial. Havia o Ministro da Defesa Nacional: Édouard Daladier, sem utilidade para as relações hierárquicas entre o governo e as forças armadas - embora fosse o protector político de Gamelin...
Confusa no lado civil, a orgânica não funcionava melhor do lado militar: Maurice Gamelin era o Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas* e deveria ter sob as suas ordens os três ramos. Mas não tinha, a Marinha tinha uma tradição de independência em relação ao Exército que a Aeronáutica copiara… Mas o que interessaria numa guerra contra a Alemanha seriam as forças terrestres e sendo seu Comandante-Chefe, Gamelin poderia acumular essa função, como acontecera com Joffre em 1914, com o comando da frente principal, onde se esperaria a invasão alemã. Porém, quem comandava esse enorme Teatro de Operações (TO) denominado Nordeste, que se estendia do Mar do Norte ao maciço do Jura era o general Georges.
Como Georges pertencia a um clã distinto do de Gamelin, este último guardou para si diversas prerrogativas de comando, entre as quais as nomeações dos oficiais generais das unidades do TO sob o comando de Georges que incluíam 3 Grupos de Exércitos, 10 Exércitos, 22 Corpos de Exércitos e 77 Divisões. Complementado pelas relações directas dos nomeados com Gamelin, e pelo carácter redondo das instruções que emanavam do Quartel-General de Gamelin para não melindrar Georges**, no sector mais nevrálgico do Exército francês desrespeitava-se ostensivamente o princípio militar sagrado da unidade de comando…
Evidentemente que num poste não se podem condensar todas as causas que se considera terem sido as responsáveis pelo resultado da campanha de França de 1940. Mas a ideia que vale realçar é que as causas principais costumam nada ter a ver com aqueles aspectos superficiais que costumam ser destacados em análises militares, como efectivos e unidades envolvidas ou as performances do material, como se o desempenho de uma força militar se pudesse avaliar pela mesma lógica de um manual de instruções de uma aparelhagem estéreo ou um ecrã de plasma... Neste caso, o colapso francês dever-se-á mais a outros factores, incluindo a sua própria orgânica medíocre.
E também é evidente que o que ficou dito não desmente máximas militares, como a afirmação que, no final, a vitória vai para o exército que possui mais batalhões – porque a afirmação é verdadeira ceteris paribus***. Nem pretende retirar importância às qualificações técnicas dos equipamentos que esses exércitos usem. Só que quando o desequilíbrio técnico entre dois exércitos é evidente, normalmente a parte em inferioridade reconhece-o e não há conflito frontal – o famoso episódio dos lanceiros polacos a cavalo que atacaram os blindados alemães em 1939 é conhecido não só pelo seu absurdo, mas também pela sua raridade (menos conhecidas são as dúvidas quanto à existência real do episódio...).
Mas não deixa de ser curioso ter sido também dum francês (embora corso - Napoleão) aquela máxima de que na guerra a importância da moral está para a do material numa relação de três para um. Muito citada, parece ser uma máxima pouco compreendida porque, apesar dos exemplos flagrantes (como este que acabei de apontar), em que o método fracassou na antecipação como decorreria e qual seria o desfecho de um conflito, ainda hoje – e em sítios mais especializados do que páginas de jornal – se lêem análises militares pretensamente especializadas, baseadas no rol tradicional dos efectivos, artilharia, blindados e aviação. Que conclusões se podem extrair apenas com aqueles dados? No caso do exemplo iraniano acima, onde aparecem as enormes rivalidades entre as hierarquias do exército tradicional e da guarda islâmica (pasdarans)?
* Chef d'état-major des armées
** Emblemática é uma ordem de serviço de Gamelin que começava assim: Sans vouloir intervenir dans la conduite de la bataille en cours... (Sem querer intervir na condução da batalha em curso…).
*** Ceteris paribus é uma expressão latina, muito usada em economia, que se pode traduzir por mantidas inalteradas todas as outras coisas. Neste caso, que os dois exércitos sejam idênticos em todos os outros aspectos.
Não terá sido o erro maior a "latinidade" francesa (os britânicos eram uma minoria!) face ao rigor germânico?
ResponderEliminarNa minha opinião, a "latinidade" francesa e o rigor germânico já lá estavam em Agosto e Setembro de 1914 e o desfecho foi diferente. Impaciente.
ResponderEliminarAliás, foi a "latinidade" francesa que os fez improvisar com mais sucesso do que os rigorosos do outro lado e equilibrar o que até ali tinha estado a correr muito mal...
Mas, em 14, não existia a Linha Maginot...
ResponderEliminarQuem é que conseguia ultrapassar aquelas fabulosas (e custosas!) defesas?
Creio que foi um erro tão grande que conseguiu arruinar a França duas vezes: quando foi construída, pelo que custou e quando não serviu para nada na hora da verdade!!!
Boas decisões de espíritos brilhantes...