02 julho 2008

A HISTÓRIA DE DUAS IMPERADORAS

Deixo aos entendidos a opinião sobre o rigor gramatical do título deste poste. O feminino da palavra imperador é, como preconizam as regras gramaticais, imperatriz. Entretanto, numa palavra submetida às mesmas regras, passou a aceitar-se o termo embaixadora com a explicação que assim se distingue a titular do cargo (a embaixadora) da esposa do titular (a embaixatriz). É convincente, mas vale a pena notar que existe aqui um caso de discriminação masculina: ficou por definir como se distingue o titular do cargo do marido da embaixadora… Se calhar presume-se que as embaixadoras não podem ser casadas ou, que o sendo, os maridos têm outra vida e/ou não ligam nada a isso?... Que tal embaixatriço?...
Mais a sério, fui-me inspirar aquela lógica que justifica a palavra embaixadora para utilizar o termo imperadora. Os episódios históricos de Wu Zetian (acima) e de Irene (abaixo) foram dois casos curiosos, que são parecidos no conteúdo, relativamente próximos no tempo (embora haja um século a separá-los) e muito afastados na geografia. O de Wu Zetian (625-705) passou-se no Império Chinês sob a Dinastia Tang (618-907), entre 690 e 705, enquanto o de Irene (752-803) passou-se no Império Romano do Oriente (bizantino) sob a Dinastia Isauriana (717-802), entre 797 e 802. Em ambos, uma mulher assumiu-se descaradamente e contra toda a tradição e a prática da época, como a detentora do poder imperial.

Os percursos prévios que as levaram até lá distinguem-se na forma, mas não tanto na substância. Ambas muito bonitas, Wu Zetian foi escolhida ainda adolescente (13 anos) para concubina do Imperador Taizong, mas foi apenas depois de reciclada para o serralho do seu sucessor, Gaozong que a sua ascensão política começou, tendo-se tornado mesmo na Imperatriz oficial; em Constantinopla, o cristianismo impunha regras formais muito mais rígidas, mas o processo que levou o príncipe herdeiro e futuro imperador Leão IV a escolher a sua noiva entre as moças casadoiras da elite bizantina (Irene era de origem grega, ateniense), não parece ter sido substancialmente muito mais sofisticado.
Após a morte dos respectivos Imperadores consortes, ambas continuaram a exercer o poder em nome dos filhos (embora na China não houvesse a figura da regência) até que tentativas de manobrar os novos Imperadores titulares por parte das facções oposicionistas na Corte as levou a retirarem o poder formal dos filhos para o assumirem elas mesmas. Embora o percurso por elas percorrido só pudesse, por razões óbvias, ter sido feito por uma mulher, mais do que o género, o que une as duas Imperadoras são as suas personalidades, que tiveram tanto de ambiciosas como de implacáveis, como aconteceria, de resto, com qualquer político bem sucedido naquelas circunstâncias.

Ambas acabaram por vir a ser derrubadas por outros políticos que se mostraram ainda mais ambiciosos e implacáveis do que elas. As acusações que vieram a ser elaboradas a seu respeito por parte dos seus inimigos, sobre a sua falta de amor maternal não têm qualquer sentido, basta lembrarmo-nos, por exemplo, das inúmeras vezes que na Europa feudal se opuseram os exércitos dos pais contra os dos filhos… Sobretudo, vale a pena reter que terão sido factores alheios às próprias e o gosto pelo poder e não propriamente a satisfação do seu próprio ego que as levou a ambas a terem de alterar o status quo em que a essência do poder lhes pertencia enquanto a aparência do mesmo residia nos filhos.
Foram obrigadas a correr um grande risco político e isso talvez explique porque ambas são as únicas Imperadoras assumidas nas milenares histórias da China e do Império Romano. É que ambas estão recheadas de períodos em que o poder efectivo esteve na mão de mulheres – ou de homens que o não podiam assumir, como os eunucos. Nesse aspecto da essência e aparência do poder, e ainda um pouco a propósito da conversa inicial de embaixadores e embaixadoras, o pensamento pragmático destas duas imperadoras parece situar-se nos antípodas do da embaixadora Ana Gomes, que, nestas coisas, costuma entusiasmar-se mais a celebrar as aparências, enquanto costuma dar muito menos relevo às essências

3 comentários:

  1. Pelo sim, pelo não, você ficou irritado com a essência da questão de Ana Gomes - os direitos das mulheres na vida política -, a ponto de relevar a aparência - a questão de saber quão longe, quantos centímetros longe, vai a atitude simbólica, admito, de Zapatero.

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  2. E, para complicar, a Czarina Catarina da Rússia, prostituta e parceira activa da, provável, maior revolução produzida na Russia rural pelo Czar, seu marido, Pedro.

    E ainda a sua, deles, filha, também Catarina e, ela sim, Czarina de pleníssimo direito!

    E a actual Chancelerina Merkl, da omnipresente Alemanha!

    Isto da lingua, em meu modesto prosear, não terá muito que ver com géneros, ou lutas de géneros, mas sim com esse magnifico escultor, que prevalece sobre gramáticos, linguistas, semióticos e afins, que foi, é e será, sempre, o POVO.

    Bué de cumprimentos,

    Zé Albergaria

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  3. A interpretação sobre o que me terá irritado é sua António.

    Se a questão de Ana Gomes tem uma essência, e eu acho que tem, mas não a que aponta, creio que se torna quase infantil celebrar os progressos da representatividade das mulheres na vida política contando as ministras e os ministros; comparem-se os orçamentos - um bom indicador da importância do ministério - dos ministérios das ministras e dos ministros espanhóis e lá se vai a paridade - o da Economia e Finanças é masculino, o dos Negócios Estrangeiros também, assim como o do Interior... enfim, veja a composição do actual governo espanhol.

    Em síntese, é uma questão que é muito mais complexa do que aparenta e, na linha das suas alusões, mais do que os seus centímetros (e lembre-se da minha referência aos eunucos...), envolve a disposição de mostrar que tem outros "apetrechos"...

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