Vale a pena regressar mais uma vez ao passado, para realçar como a viciação deliberada no processo de decisão entre os membros mais qualificados da hierarquia da actual administração norte-americana deverá ter sido a maior responsável pelo encadeamento de disparates que enlearam os norte-americanos na actual situação iraquiana… É que os responsáveis políticos do topo da administração norte-americana, mesmo aqueles que se contam entre os que são historicamente mais respeitados, nem sempre apadrinharam ideias brilhantes… E várias vezes foi uma carga de trabalhos fazê-los mudar de opinião! Mas felizmente mudaram…
Regressemos então a Abril de 1942, com os Estados Unidos acabadinhos de entrar na Segunda Guerra Mundial (havia uns meros 4 meses), quando Winston Churchill, o Primeiro-Ministro britânico, recebeu uma carta do Presidente Franklin D. Roosevelt, anunciando-lhe a visita de (e pedindo que recebesse) o seu Conselheiro Especial Harry Hopkins (abaixo) e o Chefe de Estado-Maior do Exército, General George C. Marshall (mais abaixo). Vinham submeter-lhe um plano que, esperava Roosevelt, viesse a ser saudado com entusiasmo pela Rússia… Tratava-se, nem mais, nem menos, do que a abertura de uma Segunda Frente na Europa…
A reunião teve lugar em Downing Street e, perante a estupefacção do lado britânico da mesa, o outro lado apresentou-lhe uma Operação baptizada de Sledgehammer, que seria possível desencadear a partir de 1942 e que consistiria em desembarcar em França e conquistar ali um ponto de apoio (no cenário mais favorável, uma península como a de Cotentin ou mesmo até a da Bretanha!) com o recurso a 8 divisões* das quais, por falta de preparação dos próprios norte-americanos, teriam de ser os britânicos a fornecer 6… No fim da apresentação, ainda pairava no ar o silêncio estupefacto dos britânicos quando surgiu uma nova hipótese!...
A Operação Round-Up, da autoria do, na altura desconhecido, Brigadeiro Dwight D. Eisenhower, estava concebida num horizonte mais dilatado (1943) e compreendia também a invasão de França, entre Calais e o Havre. Nesse outro cenário, estariam envolvidas 30 divisões norte-americanas e 18 divisões britânicas*, com a cobertura de 5.800 aviões, dos quais 2.250 britânicos. Competia a Churchill dar uma resposta diplomática e, enquanto se fartava de elogiar os planos magistrais do presidente, pedia esclarecimentos ao General Alan Brooke, o Chefe de Estado-Maior Imperial (abaixo) que arrasava os tais planos magistrais logisticamente…
É evidente que os experimentados britânicos sabiam que não havia capacidade nem para montar um desembarque, nem para alimentar uma ofensiva além-Mancha. O desastre de Dieppe, em Agosto de 1942 serviu para o demonstrar aos norte-americanos. No seu diário íntimo, o irónico Alan Brooke mostrou-se impiedoso para com os norte-americanos, especialmente com Marshall, o seu homólogo: Cheio de si, mas as suas capacidades estratégicas não me impressionaram… O seu plano não vai além do desembarque: nem teve em consideração o que faríamos em seguida… Iremos para Le Touquet, jogar roleta ou bacará**?...
Em 2003, havia imensa gente qualificada que, perante os planos da ofensiva no Iraque, teria podido fazer uma pergunta semelhante à colocada mais de 60 anos antes por Alan Brooke: o que se faria depois de derrubar o regime de Saddam Hussein? Talvez a pergunta tivesse sido colocada mas não foi considerada com a relevância suficiente para ser respondida… Só que dessa vez e mesmo a sério, não num hipotético pano verde saído da imaginação dum General irónico, num jogo de interesses nunca totalmente esclarecido, apostou-se que a sociedade iraquiana se organizaria espontaneamente num regime democrático…
* Divisão é uma grande unidade militar multi-armas contando entre 10 a 20 mil efectivos.
** Le Touquet era a cidade costeira onde a Paris chique passava as suas férias estivais. Tinha um Casino, dai a alusão de Alan Brooke que, tendo nascido em França e aí vivido até aos 16 anos (falava o francês como uma outra língua materna), conhecia os vícios e pecadilhos da sociedade francesa como um nacional…
Continuo a ficar-te muito agradecida. Estás a ser uma ajuda preciosa com estes teus exercícios comparativos. Fico sempre assombrada com a minúcia das tas fontes e com a forma como esgrimes a informação.
ResponderEliminarContinua que eu muito te agradeço.
Convenhamos que a sociedade iraquiana está organizada!
ResponderEliminarSeria impossível executar tantas operações de tipo militar, sem um plano definido, no qual os EUA têm um papel preponderante - o de embrulho...
Donagata:
ResponderEliminarProcuro equilibrar nestes postes mais explicativos, aquela veia sarcástica que me leva a causticar muitos "análises" sobre estes mesmos assuntos que vejo por aí...
Impaciente:
Pode escrevê-lo sem ironia: desde Saddam, a sociedade iraquiana sempre esteve organizada!
Não é o nosso conceito ocidental de organização: aqui, o Impaciente terá provavelmente uma pilha electrica à cabeceira da cama, para quando falta a luz; em Bagdade teria uma AK-47 para quando ouve barulho no quintal...