Uma das descobertas que mais aprecio nos russos, consequência do carácter científico do marxismo-leninismo, sintetizava-se numa anedota hoje porventura injustamente esquecida: a União Soviética era um país que, mais do que o futuro, tinha um passado imprevisível. Não vale a pena detalhar aqui os sacolejões que a pátria do socialismo registou no seu caminho – afinal incompleto! – em direcção ao almejado comunismo, mas a actual situação de descoberta dos problemas do Grupo Espírito Santo em Portugal presta-se à ironia de considerar que ela seria merecedora da realização de um expiatório XX congresso do capitalismo português. Entre as abordagens pessoais à família e patriarcas da família Espírito Santo e as institucionais ao banco e empresas associadas homónimas, os rastros do passado mediático de ambas nos últimos 20 anos são de molde a surpreender-nos quando em confronto com as notícias que têm vindo a ser divulgadas sobre caracteres das primeiras e solvabilidades das segundas, tal como muitos comunistas se terão surpreendido ao ouvir o relatório de Nikita Khrushchev sobre as infindas malfeitorias perpetradas por Estaline.
À laia de exemplos hoje divertidos, escolhi um artigo do Correio da Manhã publicado em 2003 dedicado às figuras mais destacadas da elite económica portuguesa, onde se traçava o retrato de Ricardo Espírito Santo Salgado (clicar em cima da imagem acima para a ampliar) à frente de um clã de banqueiros de quinta e até mesmo de sexta geração com uma antiguidade à nossa escala quase equivalente à dos Rothschild na Europa, porém sem o estigma da origem judaica. A pureza da origem aristocrática aparece-nos sublimada na referência inicial à raridade da cor dos olhos de Ricardo Salgado, prolongando-se pela lista de realezas (note-se que todas despojadas de seus tronos…) que passaram lá por casa. E, enquanto o lado pessoal era assim tratado neste estilo, o institucional era submetido a testes de stress regulares que incidiam sobre toda a banca europeia (o teste constante da imagem abaixo foi publicitado em Julho de 2010), coordenado pelo Comité das Autoridades Europeias de Supervisão Bancária (CEBS), em cooperação com o Banco Central Europeu e o Banco de Portugal. Note-se que, apesar do banco ter saído aprovado no teste, Ricardo Salgado reclamou do resultado…
Segundo o que sempre li aos defensores deste status quo, mesmo quando a opinião pública não se apercebe dos problemas, os mercados apercebem-se e, na hipótese completamente absurda deles não se aperceberem, há as autoridades reguladoras que deveriam intervir, mesmo que as nacionais não o fizessem, havia ainda as outras, as de lá de fora, a quem atribuímos a competência que não damos às nossas. Ora toda essa cadeia parece ter falhado no caso dos Espírito Santo. Não sei se estarei a ser prematuro em ver em tudo isto uma certa sensação de fim de ciclo, do desmoronar de uma corrente de crenças nos protagonistas que, como a desestalinização, não derrubando uma estrutura ideológica, a está a fazê-la vacilar nos seus alicerces... Só por curiosidade, o sujeito irascível de aparência aristocrática que encima este poste é o barão Craps von Pohker, personagem vilã de As Despesas da Princesa, uma aventura de Zig e Puce da autoria de Greg.
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