O João Carvalho Fernandes, que tem aromatizado a nossa blogosfera com as suas saudáveis Fumaças, propôs-me um interessantíssimo desafio: quem será o autor da famosa frase Uma mentira repetida muitas vezes passa a ser verdade. Deixem-me informar-vos que eu, que conheço o João de outros carnavais, tenho-o na conta de uma pessoa que costuma estar tradicional e particularmente bem informada e se ele me coloca este desafio só posso sentir-me lisonjeado…
Assim, dos quatro suspeitos que ele me apontou (por ordem alfabética: Goebbels, Hitler, Lenine e Mao), qual Comissário Maigret de cachimbo nos queixos, justificando as fumaças, vou procurar, pelo que conheço dos retratos psicológicos dos suspeitos, justificar porque elegi um deles para suspeito principal desta investigação. Em primeiro lugar, daquilo que, pelas minhas leituras, consolidei da personalidade dos quatro potenciais autores citados creio que posso eliminar imediatamente dois supeitos como autores da frase: Adolf Hitler e Mao Zedong.
O raciocínio, os textos e os discursos de Hitler, tanto públicos quanto em privado nunca mostraram ser nem imaginativos nem figurativos. Comentários vagamente assemelháveis à citação que está em causa aparecem no Mein Kampf (no Capítulo X, por exemplo - quanto maior a mentira maior a probabilidade dela ser credível) mas são usadas com um tom de censura. Além disso, ao conhecer-se a forma desconfortável como Hitler geriu toda a fase de aproximação entre a Alemanha e a URSS (1939-41) percebe-se como ele não era um cínico genuíno para se comprazer a proferir tal frase.
Este último seria um problema que creio que não se poria a Mao, mas para se poder atribuir a frase a Mao, o problema que existirá será o da sua forma. O tipo de estética metafórica do chinês em geral e de Mao Zedong em particular não combina de todo com a estrutura da própria frase. Ou seja, na minha opinião nem me surpreenderia que Mao pudesse ter dito tal ideia, mas não a formularia sem evocar a natureza, os animais, as flores, as montanhas ou uma qualquer outra coisa desse estilo.
Restam os dois cínicos mais assumidos do grupo: Lenine e Goebbels. E também começam a ser mais complexas de explicar as opções que faço para seguir por um ou por outro caminho. Comecemos então por Lenine.
Lenine é… leninista. Por exemplo, Marx escreveu um brilhante texto explicando porque achava que os fins não justificavam os meios e Lenine complementou-o com um texto seu, em que escreve que concordava totalmente com Marx e concluindo que os fins justificavam os meios. O famoso Animal Farm de George Orwell é sobretudo uma desmontagem do leninismo, que possui um discurso onde as palavras perdem completamente o seu significado.
Ao longo da sua vida Lenine parece ter sido o tipo de pessoa que se sentia tão segura da sua superioridade intelectual que parece ter atribuído um valor irrisório à capacidade de persuasão. Claro que não se inibiu de mentir quanto necessário mas, na sua perspectiva, o proletariado era uma massa amorfa que se servia para se invocar mas que, de resto, era destinada a ser dirigida pelo partido. E depois, também há a questão do estilo: mais do que mentiroso, Lenine era dialéctico, aproveitava da verdade dos factos apenas os que lhe interessavam.
É a questão técnica que me leva a fazer, em primeiro lugar, de Joseph Goebbels o meu favorito como o melhor suspeito como autor da citada frase. Lenine morreu em 1924 e foi só no tempo de Goebbels que já se dispunha de instrumentos de comunicação de massas à sua disposição. Por outro lado, como Ministro da Propaganda alemão Goebbels estava posicionado num nível hierárquico em que a formação da opinião pública seria um assunto primordial para si – ao contrário de todos os outros suspeitos, que eram dirigentes supremos do Estado.
A verdade é que, sendo um estado tão totalitário quanto a União Soviética, a Alemanha de Goebbels tinha uma relação diferente com as massas populares. Hecatombes equivalentes às da colectivização das terras com os seus milhões de mortos de fome teriam sido impensáveis na Alemanha contemporânea dos anos trinta… O aparelho de informação nazi tinha que estar estruturado para persuadir a sociedade alemã, e, nessa tarefa, Goebbels nunca mostrou grandes preocupações éticas quanto à forma de o fazer… É o suspeito principal.
Uma última hipótese, também com boas probabilidades, é a que a frase não tenha sido da autoria de nenhum dos quatro suspeitos referidos, e que só depois tivesse vindo a ser atribuída a um deles, uma hipótese muito mais frequente do que se pensa… O resto da história é fácil de deduzir: durante o período da Guerra-Fria, a frase terá sido utilizada, mudando-lhe a autoria, como arma de arremesso político, para demostrar o cinismo da parte contrária.
Assim, dos quatro suspeitos que ele me apontou (por ordem alfabética: Goebbels, Hitler, Lenine e Mao), qual Comissário Maigret de cachimbo nos queixos, justificando as fumaças, vou procurar, pelo que conheço dos retratos psicológicos dos suspeitos, justificar porque elegi um deles para suspeito principal desta investigação. Em primeiro lugar, daquilo que, pelas minhas leituras, consolidei da personalidade dos quatro potenciais autores citados creio que posso eliminar imediatamente dois supeitos como autores da frase: Adolf Hitler e Mao Zedong.
O raciocínio, os textos e os discursos de Hitler, tanto públicos quanto em privado nunca mostraram ser nem imaginativos nem figurativos. Comentários vagamente assemelháveis à citação que está em causa aparecem no Mein Kampf (no Capítulo X, por exemplo - quanto maior a mentira maior a probabilidade dela ser credível) mas são usadas com um tom de censura. Além disso, ao conhecer-se a forma desconfortável como Hitler geriu toda a fase de aproximação entre a Alemanha e a URSS (1939-41) percebe-se como ele não era um cínico genuíno para se comprazer a proferir tal frase.
Este último seria um problema que creio que não se poria a Mao, mas para se poder atribuir a frase a Mao, o problema que existirá será o da sua forma. O tipo de estética metafórica do chinês em geral e de Mao Zedong em particular não combina de todo com a estrutura da própria frase. Ou seja, na minha opinião nem me surpreenderia que Mao pudesse ter dito tal ideia, mas não a formularia sem evocar a natureza, os animais, as flores, as montanhas ou uma qualquer outra coisa desse estilo.
Restam os dois cínicos mais assumidos do grupo: Lenine e Goebbels. E também começam a ser mais complexas de explicar as opções que faço para seguir por um ou por outro caminho. Comecemos então por Lenine.
Lenine é… leninista. Por exemplo, Marx escreveu um brilhante texto explicando porque achava que os fins não justificavam os meios e Lenine complementou-o com um texto seu, em que escreve que concordava totalmente com Marx e concluindo que os fins justificavam os meios. O famoso Animal Farm de George Orwell é sobretudo uma desmontagem do leninismo, que possui um discurso onde as palavras perdem completamente o seu significado.
Ao longo da sua vida Lenine parece ter sido o tipo de pessoa que se sentia tão segura da sua superioridade intelectual que parece ter atribuído um valor irrisório à capacidade de persuasão. Claro que não se inibiu de mentir quanto necessário mas, na sua perspectiva, o proletariado era uma massa amorfa que se servia para se invocar mas que, de resto, era destinada a ser dirigida pelo partido. E depois, também há a questão do estilo: mais do que mentiroso, Lenine era dialéctico, aproveitava da verdade dos factos apenas os que lhe interessavam.
É a questão técnica que me leva a fazer, em primeiro lugar, de Joseph Goebbels o meu favorito como o melhor suspeito como autor da citada frase. Lenine morreu em 1924 e foi só no tempo de Goebbels que já se dispunha de instrumentos de comunicação de massas à sua disposição. Por outro lado, como Ministro da Propaganda alemão Goebbels estava posicionado num nível hierárquico em que a formação da opinião pública seria um assunto primordial para si – ao contrário de todos os outros suspeitos, que eram dirigentes supremos do Estado.
A verdade é que, sendo um estado tão totalitário quanto a União Soviética, a Alemanha de Goebbels tinha uma relação diferente com as massas populares. Hecatombes equivalentes às da colectivização das terras com os seus milhões de mortos de fome teriam sido impensáveis na Alemanha contemporânea dos anos trinta… O aparelho de informação nazi tinha que estar estruturado para persuadir a sociedade alemã, e, nessa tarefa, Goebbels nunca mostrou grandes preocupações éticas quanto à forma de o fazer… É o suspeito principal.
Uma última hipótese, também com boas probabilidades, é a que a frase não tenha sido da autoria de nenhum dos quatro suspeitos referidos, e que só depois tivesse vindo a ser atribuída a um deles, uma hipótese muito mais frequente do que se pensa… O resto da história é fácil de deduzir: durante o período da Guerra-Fria, a frase terá sido utilizada, mudando-lhe a autoria, como arma de arremesso político, para demostrar o cinismo da parte contrária.
Creio ter lido (ou ouvido) que essa frase é atribuída a Goebbels.
ResponderEliminarFico à espera do resto da história!
Fabuloso!
ResponderEliminarUm abraço
:)))))))))))))))))))))
ResponderEliminarO meu agradecimento aos três.
ResponderEliminarPermitam-me que o agradecimento seja especial ao João pelo desafio que me colocou.
Nesse sentido, o poste é também um pouco dele.
Achei literária e filosoficamente muito interessante a forma como “pegou” no assunto. Já não me pareceu razoável atribuir à dialectica a propriedade de aproveitar da verdade dos factos apenas os que interessam a alguém.
ResponderEliminarQuanto à forma como compara a URSS com a Alemanha nazi a ponto de omitir o holocausto hitleriano na contabilidade onde inscreve os “milhões de mortos de fome” na União Soviética... deixa-me preocupado com o valor ético do seu artigo. Tanto mais que o seu outro artigo que aqui invoca não me parece justificar tais apreciações. Para já não falar das obvias diferenças entre um projecto de destruição e um erro de construção.
Alguma coisa escapa à minha compreensão sobre a História ou sobre si. Ou então estou perante um paradoxo filosófico decorrente da visão que tenho de ambos.
A sua reacção à questão da Grande Fome e a adição imediata do Holocausto fez-me lembrar, António Marques Pinto, a ocasião em que apareceu por aí um livro chamado “O Livro Negro do Comunismo” e em que a reacção a isso foi a edição de um “Livro Negro do Capitalismo”. O segundo livro é uma segunda lista de horrores paralelos aos primeiros mas não respondeu nem desmentiu os horrores levantados pelo primeiro livro. Mas houve muita gente que se sentiu satisfeita e o considerasse uma “resposta”.
ResponderEliminarEntendamo-nos: creio que se pode falar do Holocausto sem que seja obrigatório falar da Grande Fome, mas acho que o recíproco também é verdadeiro. O que procurei fazer no poste a que fiz a ligação tinha sido colocar a Grande Fome na perspectiva que considero mais correcta: a que a União Soviética daquela década é um país atrasado, ainda em vias de desenvolvimento, coisa que nem os que a criticam, nem os que a defendem, pelas razões opostas, pretendem reconhecer.
O que agora quero realçar é que, na mesma época, em países mais desenvolvidos, como a Alemanha, e independentemente do regime, o que se passou como consequência da colectivização das terras na URSS seria impossível de acontecer. Para referência, lembro-lhe que na mesma década, houve a Grande Depressão dos Estados Unidos, onde as pessoas passavam imensa fome, mas não morriam de fome - pelo menos aos milhões…
Quanto às boas intenções com que o Holocausto e a Colectivização foram executados, diz-se que delas estará o inferno cheio, mas permita-me notar-lhe que, se para si a segunda foi um “erro de construção”, para o nazismo aquele extermínio dos judeus era o caminho para o progresso: se ler o Mein Kampf perceberá que para Hitler um mundo depurado de judeus seria um mundo melhor…
Em contrapartida, tem toda a razão, António Marques Pinto, quanto à sua perplexidade sobre a questão da “dialéctica”, que eu deveria ter escrito entre aspas, uma vez que estava a ser intrinsecamente irónico e a fazer um tratamento “leninista” da palavra, atribuindo-lhe o sentido que mais me convinha para a minha exposição.
Claro que a Dialéctica é bastante mais do que o emprego que lhe dei. O que não invalida que naquela conversa política de café, pouco sofisticada, a expressão seja utilizada com um significado muito próximo do que lhe dei, por sinónimo de capacidade de evadir questões difíceis deslocando o eixo do tema discutido