26 setembro 2020

A ENTREVISTA DO EMBAIXADOR: QUANDO SE TENTA AGARRAR UM SABONETE MOLHADO COM DEMASIADA FORÇA, ELE TENDE A SALTAR-NOS DA MÃO...

Um daqueles aspectos que é sempre importante esclarecer quando se fala de embaixadores norte-americanos é que naquele país não existe uma carreira diplomática tradicional como acontece com quase todos os restantes. Numa maioria das vezes os cargos de embaixador dos Estados Unidos não são ocupados por um diplomata experimentado no final da carreira, são antes conferidos pelos presidentes em exercício como agradecimento àqueles que mais contribuíram com fundos para a sua campanha eleitoral. Poderá parecer absurdo, mas é assim. E, por ser assim, as características dos embaixadores americanos, especialmente os menos escrutinados e colocados em países de segundo plano como é o caso de Portugal, podem revestir-se de um exotismo não muito comum para a imagem convencional do embaixador. Evidentemente que os profissionais das diplomacias sabem isso, os jornalistas não, ou, sabendo-o, esquecem-se de o referir, para que o leitor possa compreender que os embaixadores dos Estados Unidos (não o restante pessoal do departamento de Estado, que esse é tão profissional quanto os seus homólogos), os embaixadores dos Estados Unidos, escrevia, são uma classe à parte, para levar moderadamente a sério... e quando calha. Assim, o antecessor imediato do actual embaixador, Robert Sherman, nomeado para o cargo pela administração Obama, ganhou uma excelente reputação doméstica mercê de alguns inteligentes gestos de relações públicas... como motard e como apoiante da selecção portuguesa. Em contraste, os seus antecessores da era de George W. Bush, Al Hoffman Jr. ou Thomas Stephenson, adquiriram uma reputação bem pouco simpática ao porfiarem anos a fio para que a Marinha portuguesa lhes comprasse umas fragatas da classe Oliver Hazard Perry, fragatas essas que a US Navy estava a saldar por causa dos seus custos proibitivos de funcionamento (documentos depois vazados pelo «WikiLeaks» vieram a dar conta do desagrado e do despeito dos americanos por não termos aceite o negócio). Mas deve ser tendo tudo isto presente que deve ser lida esta entrevista que é dada hoje ao Expresso pelo actual titular do cargo, George Edward Glass. Entendamo-nos num ponto essencial: a entrevista não é um furo do jornal, a iniciativa terá partido da embaixada, embora não propriamente do embaixador: dá para perceber pelo vídeo abaixo que a desenvoltura do embaixador com a comunicação social será... nenhuma: é notória a dificuldade que ele tem de desviar o olhar do teleponto (que está em cima da câmara) para o fixar no espectador - até a embaixatriz tem mais jeito do que ele... Washington quer exibir uma imagem pública de coacção sobre o governo português e utilizou o Expresso; a entrevista é para ser levada à conta daquilo em que consiste: um recado ostensivo (o governo americano poderia dizê-lo recatadamente, nos gabinetes, como quando nos andava a impingir as fragatas que ninguém queria). E esse recado público é apenas parte de um esforço colectivo análogo, desenvolvido pelo departamento de Estado dos Estados Unidos. Ainda o mês passado podia ler-se o homólogo de Glass em Bucareste a passar um recado equivalente à Roménia. E no mês anterior, fora o embaixador americano em Brasília a fazer o mesmo.
Colocado nesta última perspectiva, a entrevista de George Glass é apenas mais uma de muitas, de cariz ameaçador, que os americanos andam a distribuir pelo mundo fora em reacção à expansão económica chinesa. É irónico que, sendo os Estados Unidos o defensor da livre escolha do capitalismo, agora intervenham a condicionar as escolhas a que as leis do Mercado possam conduzir. À entrevista do embaixador americano em Lisboa já o ministério dos Negócios Estrangeiros português, entretanto, deu resposta. Previsível. Mas, se a atitude dos americanos é precisamente a mesma, quando em comparação com o comportamento da absurda política externa desta administração, já o é muito menos quando a comparamos com os tempos históricos da segunda metade do Século XX e da Guerra Fria, quando os Estados Unidos eram mesmo a superpotência dominante e, apesar dos seus mais que evidentes desagrados com o comportamento das autoridades portuguesas, fosse ele a política colonial de António de Oliveira Salazar ou os caminhos para o socialismo de Vasco Gonçalves, se abstinham de lavar ostensivamente a roupa suja dos seus desentendimentos connosco em público. Embora naquelas décadas tivessem disposto de paus muito mais dolorosos dos que aqueles que dispõem na actualidade, sempre houve o cuidado da parte americana em exibirem preferencialmente as cenouras. Esta mudança de atitude só pode ser entendida como um sinal de fraqueza - e provavelmente é um sinal de fraqueza. Finalmente, há que não esquecer os efeitos da globalização: há trinta, quarenta anos, não nos era indiferente, mas não era também decisivamente importante se o embaixador americano financiara a campanha de Ronald Reagan ou a campanha de Bill Clinton. Ora George Edward Glass contribuiu financeiramente para a eleição de Donald J. Trump. Donald Trump! Quando aqui há seis meses o li a «assinar» um artigo no jornal Público com o título «Covid-19: vamos unir-nos para combater esta doença – e combater também as mentiras», ocorreu-me de imediato: combater as mentiras? Está a pensar em alguém em particular?...

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