19 março 2009

QUESTÕES CARREGADAS

Caríssimo, discorda que seja "repreensivo" sobre os negócios com a Alemanha nazi (sobretudo volfrâmio e conservas para os militares alemães) que eram pagos à ditadura portuguesa, em grande parte, com o ouro roubado aos judeus do Holocausto?
Esta foi uma pergunta que me foi colocada pelo João Tunes na caixa de comentários de um poste do seu blogue. É uma pergunta a que não me quero furtar a responder, mas necessito, antes de tudo, de lhe retirar a carga que contém antes de lhe responder, porque se trata de um caso extremamente engraçado, mesmo pedagógico, daquela falácia lógica que se costuma designar por questão carregada. Diz-se que uma questão está carregada quando inclui um ou vários pressupostos que quem pergunta quer induzir naquele a quem a pergunta é dirigida. O exemplo da Antiguidade Clássica deste tipo de questões é a pergunta: - Então, já deixaste de bater na tua mãe? Qualquer resposta linear que se adopte comprometerá sempre quem responde, porque ou se está a reconhecer que ainda se bate na própria mãe, ou então que já se bateu nela
Perguntas com as características que descrevi abundam no discurso político. Quando, por uns meses, fiz parte de um painel fixo a quem um instituto de sondagem colocava questões sobre actualidade política, num trabalho que a referida empresa fazia para o então ministro Jorge Coelho (acima), as perguntas que me colocavam eram todas daquele género carregado, condicionando a resposta (*). Em termos científicos e históricos convém ter mais cuidado. A redacção dada pelo João Tunes naquela pergunta faz com que se assuma que as transacções comerciais se fizessem com a ditadura portuguesa – ora o Banco de Portugal não pertence a um regime; e que se subentenda que o ouro usado pelos alemães para pagamento dessas transacções tivesse sido roubado aos judeus do Holocausto fosse coisa já do conhecimento geral, o que não é verdade.
Ora convém esclarecer que, com a Alemanha nazi, negociaram todos os países europeus que conseguiram permanecer neutrais durante a Segunda Guerra Mundial, desde Portugal e da ditadura portuguesa até à Suécia e à social-democracia sueca. E todos eles, ditaduras e democracias, receberam, entre outras formas de pagamento, ouro alemão, que os tempos eram incertos, e eram poucos os países que se dispunham a vender fiado (**). Foram transacções legítimas, feitas de boa fé – pelo menos da parte dos neutrais – e limitavam-se a seguir uma tendência da História da Europa que faz com que os países que permanecem neutrais são aqueles que mais beneficiam comercialmente durante os Grandes Conflitos. Veja-se o mapa abaixo (***) com o que os países neutrais da Primeira Guerra Mundial enriqueceram (em padrão-ouro)…
Caríssimo João Tunes, mais do que provavelmente discordará da condução da política externa que Salazar escolheu para o país durante a Segunda Guerra Mundial. Achará talvez – e é uma posição argumentável – que Portugal devia ter assumido na época uma posição claramente pró-Aliada. Seguindo por essa via, percebe-se naturalmente por que será crítico quanto aos negócios com a Alemanha nazi. Mas isso não será bem História, é outra coisa. Porque nas circunstâncias do que de facto aconteceu, e o que aconteceu foi a neutralidade portuguesa, dificilmente poderei condenar as transacções comerciais que tiveram lugar com a Alemanha, apenas porque ela foi a parte condenável do conflito. Ou, já agora, questionar a propriedade do ouro que foi recebido como resultado de uma transacção legítima e que foi feita de boa fé pela parte portuguesa.

(*) Eram-no de uma forma tão evidente que me cheguei a perguntar se o objectivo daquele estudo para Jorge Coelho seria mesmo para auscultar a opinião da opinião pública (como me tinham dito) ou seria antes testar a eficácia da argumentação usada pelo governo e pelo PS para os assuntos mais mediáticos da governação.
(**) Por acaso, uma excepção era… Portugal, que fiava… mas aos britânicos.
(***) Reprodução parcial de The Routledge Atlas of the First World War, p. 143.

8 comentários:

  1. O ouro da Alemanha Nazi é uma falsa questão no que concerne à responsabilidade de um seu parceiro comercial. Gostava de apontar um exemplo da Guerra Civil Espanhola, quando a marinha soviética abandonou o porto de Barcelona carregada de obras de arte e ouro de Espanha...Talvez como pagamento pelos serviços prestados à República derrotada pelos franquistas. Isto sim, é roubo. Não tem outro nome. E foram aliados.

    ResponderEliminar
  2. Lá me vou repetir.
    Se exceptuarmos o "Herdeiro" todos os outros blogs concorrem para ver qual é o segundo melhor.
    A propósito, Salazar podia ser um admirador confesso de Mussolini mas só até ter entrado ("de forma despropositada") na Guerra.
    Quanto ao nazismo, havia a questão do "paganismo" nas baionetas germânicas.
    Não foi por acaso que a Margaret Tathcher se referiu ao ano sombrio de 1940 em que o Reino Unido estava só face à aliança germano-soviética e o Presidente do Concelho afirmou que a aliança anglo-lusa era para cumprir.
    É claro que em Janeiro 1945 já havia muitos aliados como a Turquia, França, Itália e outros.

    ResponderEliminar
  3. António Teixeira, sobrestime-se à vontade mas não me atribua o papel de tolinho.
    Primeiro, vc é que definiu a discordância quanto aos negócios de Salazar com os nazis como um factor que pesou na apreciação negativa dos Aliados sobre a ditadura portuguesa. A minha pergunta era tentar saber qual era a sua discordância. Vc transformou uma pergunta numa tese que lhe calhava rebater.
    Segundo, a sua ideia sobre o tamanho da minha tolice chega ao ponto de me atribuir a posição de que “mais do que provavelmente discordará da condução da política externa que Salazar escolheu para o país durante a Segunda Guerra Mundial. Achará talvez – e é uma posição argumentável – que Portugal devia ter assumido na época uma posição claramente pró-Aliada”. Posso decepcioná-lo mas não sou tolo ao ponto de me iludir com a expectativa da possibilidade de uma política externa justa, alinhando no lado democrático do conflito geopolítico, por parte de uma ditadura fascista. Eu, em Salazar, discordo de tudo (embora agora haja a dúvida se foi ou não um fornicador atlético modelo, quase do tipo porno, aspecto em que reside uma última hipótese para se lhe encontrarem méritos). Desde logo, a existência da sua ditadura. Aliás, sob a fórmula capciosa da “neutralidade”, Salazar, durante a guerra, não teve uma política de facto mas duas: uma, enquanto o exército nazi cavalgou de vitória em vitória; outra, a partir de Estalinegrado.
    Terceiro, o comércio de Salazar com os nazis não foi com quaisquer produtos portuguesas. Essencialmente, foram bens alimentares para o exército (conservas) e o volfrâmio (tungsténio), metal pesado precioso como endurecedor do aço com que se fabricavam os blindados dando-lhe capacidade de resistência à perfuração por granadas adversárias (e, com a “viragem” pós-Estalinegrado, os ingleses impuseram que Salazar não só deixasse de fornecer volfrâmio aos nazis como passar a disponibilizá-lo a Inglaterra).
    Quarto, o Banco de Portugal, numa ditadura, é um instrumento do governo. Como os tribunais, as autarquias, a presidência da república, tudo.
    Quinto, na descolagem do nazi-fascismo da “neutralidade” de Salazar após Estalinegrado, não houve “passagem para os Aliados”, nem a podia haver, mas sim um acordo contrariado, sempre acidentado em ambiguidades e delongas, com a Inglaterra (por causa das colónias, para ter um escudo defensivo para a hipótese de Hitler invadir a Península e prevenir a sua responsabilização após terminar a guerra pelas sua primeira fase de “neutralidade colaboracionista (com os nazis)”. Nesta fase, Salazar manteve-se anti-americano e condenava que os Aliados incluíssem a URSS.
    Sexto, com boa ou má fé, com ou sem conhecimento (o embaixador em Berlim não sabia que os judeus tinham sido roubados dos seus bens?), a Alemanha nazi pagou as mercadorias portuguesas com ouro roubado aos judeus vítimas do Holocausto.
    Sétimo, último e voltando ao meu post, após terminar a guerra, a ditadura de Salazar era considerada uma herança não resolvida do nazi-fascismo. Quem ajudou Salazar a ultrapassar esse problema foi a Inglaterra, apenas a Inglaterra. Inglaterra que, mais tarde, com a prevalência do anticomunismo da guerra fria, ganhou a benevolência norte-americana. Salazar, entretanto, “vendeu Franco” no “pacote” e conseguiu que a ditadura franquista também escapasse ao desmoronamento do nazi-fascismo, seus aliados e cúmplices. Em 1946, ano da capa da TIME com Salazar maçã bichada, Salazar ainda era mal visto pelos Estados Unidos e os Estados Unidos mal vistos por Salazar. Natural, pois, a capa antipática.

    ResponderEliminar
  4. Tem toda a pertinência o episódio que apontas, Artur, um de vários golpes no mais puro estilo capitalista que a União Soviética pregou nas arenas internacionais do comércio e das finanças, onde havia que deixar a “moral socialista” de parte. Outro golpe giro, que agora me estou a lembrar, e que penso aproveitar aqui para o blogue, foi o bluff com a colheita de cereais na década de 70.

    O que me vale, João (Moutinho), é que, neste caso, esta caixa de comentários é muito dialéctica e “fala” por si. Abaixo do seu, há um extenso comentário do João Tunes, que não subscreverá, decididamente, o rasgado elogio que me faz. Quanto a Salazar, creio que o período da Guerra é uma época em que se “pisa” terreno perigoso, em que se pode exagerar, tanto na condenação, como no elogio. A verdade é que Salazar jogou, arriscou, e a jogada saiu-lhe bem. Se lhe tivesse saído mal – e houve muitas contingências que a fariam ter saído mal – também as culpas cairiam por cima de si, e não haveria razões para elogios.

    ResponderEliminar
  5. Vou ignorar deliberadamente e por agora o primeiro período do seu comentário, João Tunes…

    Deixe-me então voltar à casa de partida, onde, se bem o entendi, pretendia discordar num poste seu com a minha afirmação que o Cenário Geoestratégico não evoluíra de 1946 para 1966. E, na sua essência, mantenho que não evoluiu. Em 1946 estávamos perante um Mundo bipolar, dividido entre duas grandes potências que aspiravam à hegemonia mundial, e em 1966 assim continuava, como continuaria por mais uns 25 anos. Em comparação e contraste, em 1936, por exemplo, o Cenário Geoestratégico era de um Mundo multipolar e em 1996 de um Mundo unipolar.

    E como o próprio nome indica, nesse Mundo bipolar havia os que estavam alinhados de um lado e do outro. Depois, há as inúmeras coisas acessórias que distinguem 1946 de 1966 e Portugal da Roménia. Por exemplo, em 1946 o biquíni tinha acabado de ser inventado mas só em 1966 é que ele passou a estar na moda. As que o João Tunes apresentou, serão mais importantes que o biquíni e eu até concordo com a esmagadora maioria das descrições que delas fez, mas a sua existência é irrelevante para a questão matricial do Cenário Geoestratégico, que se manteve.

    Não sei se o João Tunes estará familiarizado com as análises históricas feitas numa perspectiva estratégica. Mais, acredito perfeitamente que o seu primeiro instinto seja de desconfiança quando se fala em estratégia e geoestratégia, palavras que costumam ser “atiradas para a frente” para impressionar o oponente nestas circunstâncias. Isso não invalida que a disciplina seja legítima, que haja quem a tenha estudado e quem a domine e que haja quem empregue aquelas expressões com rigor e propriedade e não como uma espécie de “professor Bambo” da estratégia…

    E agora, permita-me passar às razões desta divergência que tanto o indigna. Entre os pormenores dos acontecimentos que foi citando, o único com o qual discordei, apesar da linguagem de panfleto do resto (exemplo: “a memória da guerra e do nazi-fascismo, o apoio de Salazar a Franco na guerra civil espanhola e ao lado do nazi-fascismo”), foi a tal questão dos “negócios de Portugal com a Alemanha nazi”. Mas respeito-lhe a linguagem, porque é o seu estilo.

    Claro que pode “dar barraca”: assim como se pode escrever que “a ditadura salazarista foi paga com o ouro roubado pelos nazis aos judeus” (a frase é minha) também, por consistência, se deveria dizer que “a social-democracia sueca foi paga com o ouro roubado pelos nazis aos judeus”, o que, claramente, é um pouco mais incómodo… Sobretudo, João Tunes, quando coloca questões (como foi o caso), não pode esperar que aqueles a quem as suas perguntas se dirigem aceitem a sua linguagem… Porque, para mim, aquela linguagem está ideologicamente carregada e é uma maneira cientificamente incorrecta de abordar os assuntos históricos. E eu posso responder-lhe à sua pergunta, como o fiz, mas tem que aceitar que a rectifique de uma forma que me seja aceitável para o fazer.

    A sua pergunta continha a carga ideológica que assinalei no poste. Eu não defini “discordâncias” nenhumas, conforme assinala no primeiro ponto do seu comentário. O que pretendi destacar foi, e daí o mapa da Primeira Guerra Mundial, que nos grandes conflitos europeus os países neutrais sempre enriqueceram servindo de intermediários comerciais entre os beligerantes. Aliás, fomos invadidos em 1807 pela França, precisamente por causa disso, porque Napoleão não queria que o fizéssemos… O João Tunes, em contrapartida, propõe-nos então que, por causa da sua ideologia e por não gostar de Salazar, Portugal na Segunda Guerra Mundial deveria ter sido uma excepção?


    Não tenho nada de substancial a esclarecer sobre aquele que classificou de segundo ponto no seu comentário. O João Tunes merecia, mas não cometo a maldade de o convidar a fazer encaixar as ditaduras polaca e lituana na teoria dos alinhamentos que ali enunciou…Notei, contudo, a sua passagem “eu, em Salazar, discordo de tudo”, o que me levantou a dúvida se, por simetria, haverá alguma personalidade da história com a qual o João Tunes concorde com tudo… Sinceramente, fez-me lembrar uns postes do Francisco José Viegas intitulados “Cantinho do Hooligan”, mas que são a respeito de futebol, não de História?…

    Quanto ao seu terceiro ponto, “o comércio de Salazar com os nazis não foi com quaisquer produtos portuguesas”, para além da redacção em formato “panfleto” (Salazar é que comercia com os nazis…), não há eufemismo que valha: é um enorme disparate seu, João Tunes. Creio que se pode ler o romance de Aquilino Ribeiro precisamente com o título Volfrâmio, e descobrir-se onde ele era extraído… A mesma coisa para as conserveiras de Matosinhos e do Algarve: de onde acha que vinha o peixe? Quem o pescava? Mais do que isso, fique sabendo que os anos do meio da Guerra foram os únicos anos de todo o Século XX em que Portugal teve uma Balança Comercial com superavit!

    Quanto ao quarto ponto, um banco central, qualquer banco central em qualquer regime é um instrumento do Estado. É ele que gere as reservas em divisas e outros meios de pagamento ao exterior. Estava a corrigi-lo, João Tunes: não é a ditadura nem qualquer outro regime, de resto, que procedem a essas operações. Mas é nestes momentos que suspeito que o seu estilo de redacção está de tal forma entranhado que não há nada a fazer: “o comércio de Salazar com os nazis não foi com quaisquer produtos portugueses”. Uma redacção destas aceita-se enquanto figurativa, quanto sistematicamente repetida, entra-se numa saturação de “Avante!”.

    Sinceramente, não percebi o que pretende com o seu quinto ponto e, quanto ao sexto, se me recomenda ironicamente que me sobrestime à vontade, aconselho-o a que não faça o mesmo ao embaixador de Portugal em Berlim durante a Guerra. Quanto a isso, ao primeiro período do seu comentário acima, não o tenho na conta de “tolinho”. Não costumo perder tempo com postes respeitantes a tolinhos, a não ser, o que não é o seu caso, que os tolinhos tenham exposição mediática – o último exemplo foi Constança Cunha e Sá – o que não parece ser o seu caso. Aqui, o debate é pela fundamentação das ideias, embora ache o tipo de vocabulário que emprega datado, conotado e impreciso.

    ResponderEliminar
  6. Como é evidente estou longe de ser um admirador do António de Oliveira e sei que após a tormenta passar é muito mais fácil opinar.
    Apenas discordo que se queira conectar o nosso "Estado Novo" ao regime nazi.
    Se Portugal era um país neutral tinha toda a lógica a bandeira a meia-haste aquando da morte do Presidente e Chanceler da Alemanha. Mais vergonhosa foi a posição da Itália, o da própria França a querem tirar dividendos imerecidos.
    Muito mal comparando, mas que País hoje recusa negociar com a China?

    ResponderEliminar
  7. Bom, também não vejo isso dessa maneira tão "ideologicamente pura" que o João Moutinho apresenta.

    Portugal e Cuba mantiveram as relações diplomáticas que já existiam anteriormente, mesmo depois da chegada de Fidel Castro ao poder em 1959. Imagine agora que a CIA tinha conseguido ser bem sucedida numa das suas tentativas para o assassinar. Está a imaginar Salazar a mandar colocar as bandeiras a meia-haste por Fidel nessa eventualidade?...

    Esclareça-me uma coisa: o João e o João Moutinho são uma e a mesma pessoa? Se sim, porquê estas duas encarnações?

    ResponderEliminar
  8. Meu... o João e o Antônio estão numa de xadrezistas... muito didáticos (e alecionando de graça, aliás). Este não é um blog meia-boca, definitivamente aqui têm crítico-historiador. Parabéns Herdeiro!!. Lendo e aprendendo.

    ResponderEliminar