27 janeiro 2009

CONSTANTINOPLA, 13 de Abril de 1204

A famosa Queda de Constantinopla, conquistada pelos turcos, aconteceu a 29 de Maio de 1453. O acontecimento foi escolhido pelos historiadores não só para assinalar o fim definitivo do Império Romano (do Oriente) acompanhado da morte heróica do último Imperador (Constantino XI) de armas na mão, como também se convencionou que esse ano de 1453 serviria para assinalar o fim da Idade Média e o início do Renascimento. Mas uma outra maneira de contar precisamente a mesma história, poder-nos-ia fazer concluir que o Império Romano do Oriente já havia acabado quase precisamente 250 anos, com uma muito mais embaraçosa e discreta Queda de Constantinopla, a 13 de Abril de 1204.

A razão principal do embaraço é que os que desempenharam o papel de conquistadores nessa prévia Queda de Constantinopla foram os cruzados oriundos de toda a Europa ocidental que a partir de 1202 se haviam reunido para a realização da Quarta Cruzada. A cidade de Jerusalém voltara ao controle muçulmano em 1187. Em reacção a isso, o Ocidente europeu organizara uma nova Cruzada, a Terceira (1189-1192), recheada de quase todas as vedetas coroadas do continente: os Reis de França e de Inglaterra e mesmo o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Frederico Barbarossa. Foi um fiasco. Frederico morreu afogado no Leste da Turquia em 1190 e depois disso gerou-se a confusão total na expedição...
Esta Quarta Cruzada, de que se começara a falar em 1199, pretendia corrigir alguns dos vícios da anterior, com menos vedetas coroadas (não participava nenhum monarca), mas arranjou outros, porque a direcção política desta Cruzada era muito pouco perspicaz e rapidamente ela tornou-se um joguete dos interesses venezianos, a cidade-estado que se encarregara da logística naval da expedição. E foi assim que uma expedição concebida para combater muçulmanos se viu engajada contra cristãos ortodoxos, apenas para fazer um jeitinho aos venezianos que, por acaso, eram, conjuntamente com os genoveses, os grandes rivais comerciais de Constantinopla no comércio marítimo no Mediterrâneo.

Os cruzados conquistaram pela primeira vez Constantinopla em 18 de Julho de 1203, para lá instalar um novo Imperador Romano, Aleixo IV. O pretexto para a interferência dos venezianos e dos cruzados fora uma disputa dinástica entre o novo Imperador e o seu tio (Aleixo III). Dessa vez, pelo menos formalmente, os cruzados foram ainda apenas um instrumento de uma das facções do poder político bizantino. Mas quando voltaram a atacar e a (re)conquistar a cidade nove meses depois, a 13 de Abril de 1204, já agiram autonomamente, contra o poder político que haviam anteriormente instalado e com quem, entretanto, já se haviam incompatibilizado.
Dessa segunda vez a cidade foi metódica e brutalmente saqueada para pagamento dos serviços dos venezianos e dos próprios cruzados, cujo incumprimento havia provocado as incompatibilidades que haviam conduzido aquele desfecho. O Império Romano do Oriente foi substituído pelo Império Latino de Constantinopla, cujo primeiro soberano foi um dos cruzados, Balduíno I. Mas a designação Império é enganosa (veja-se acima): tratava-se de uma estrutura feudal clássica, com a sua estrutura em pirâmide e as inerentes fraquezas por assentarem numa população que era hostil à nova nobreza. Houve mesmo várias secessões de partes do território imperial que passaram a obedecer a monarcas locais.

Houve dois deles que assumiram mesmo o título, pretensioso naquelas circunstâncias, de Imperador (em grego Basileus), como se se tratasse daquilo que hoje designaríamos como um de governo no exílio: foram os soberanos de Niceia e de Trebizonda. Foi em 25 de Julho de 1261 que se registou mais uma Queda de Constantinopla, desta vez nas mãos de um pequeno destacamento ao serviço do Imperador de Niceia, Miguel VIII. Este último, mal pôde, partiu para Constantinopla onde se fez coroar novamente a 15 de Agosto de 1261. Por essa altura, depois de 57 anos de administração latina, com uma população estimada em 35.000 habitantes, a cidade era uma sombra do que fora.
Apesar do título, apesar da fama da sua capital, este Império Romano restaurado, nem na época do seu maior apogeu ultrapassou a extensão de um Reino de média dimensão, instalado em regiões não particularmente prósperas. Mas houve vários interesses que se conjugaram para que a ficção política e histórica da continuidade se mantivesse. Por um lado, era do próprio interesse dos gregos pretender que não houvera qualquer ruptura na continuidade que vinha desde os tempos de Constantino. Por outro, os acontecimentos de 1204 são um descomunal embaraço político e ideológico para todo o Ocidente e para a Cristandade, ao ferir de morte aquele que era o seu mais importante aliado na luta contra o Islão.

É por isso que convém aceitar com cautela algumas ideias que se difundiram sobre a Queda de Constantinopla que ficou mais famosa, a de 1453. É que a cidade que os turcos conquistaram não possuía quase nada do esplendor imperial de outrora. As várias Quedas anteriores haviam-na despojado de muita da magnificência dos períodos de ouro. Nem as suas muralhas eram assim tão inexpugnáveis, que só os enormes canhões do Sultão, armas que só haviam sido inventadas depois da descoberta das aplicações militares da pólvora, podiam agora derrubar. Os acontecimentos de 1203 e 1204 mostraram como as operações de cerco medievais, quando eram devidamente preparadas, podiam ser bem sucedidas…

Os três mapas apresentados são reproduções parciais do Sudeste da Europa do The Times Atlas of European History para os anos de 1180, 1223 e 1270.

11 comentários:

  1. Que coincidência!. Acabo de falar no banquete realizado em 1454, um ano após a queda de Constantinopla, organizado por Filipe de Borgonha e que se destinava a angariar cruzados para a reconquista da cidade.Conhecido pelo nome de «Banquete do voto do faisão» ficou famoso pela sua opulência e também pela sua inutilidade, porque nunca chegou a realizar-se essa cruzada. No sítio do costume.

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  2. Curioso. Como sabes estive lá estas férias. E uma das guias, bastante culta explicou exactamente a razão da relativa facilidade da conquista de Constantinopla pelos Turcos, povo constituído por tribos nómadas, baseando-a exactamente na relativa fragilidade da cidade nessa altura provocada exactamente (suprise!) pelas últimas cruzadas cristãs.

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  3. Bom, Donagata, os turcos que conquistaram Constantinopla, eram Otomanos, vinham do Ocidente da Ásia Menor e já não tinham nada de nómadas...

    Mas, por outro lado, os turcos não tinham razões - ao contrário dos ocidentais - para tratar os ortodoxos gregos senão pela sua designação legítima (a de romanos) nem para esquecer (como referes) que o enfraquecmento do Império Romano também se deveu aos cruzados ocidentais.

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  4. A 4ª Cruzada começa a ser relembrada nos últimos tempos, por algumas publicações, mas quase não era mencionada, talvez pelo sentimento de culpa que provocou; julgo que os "cruzados" chegaram mesmo a ser excomungados pelo Papa da altura.
    Mas a atitude das repúblicas marítimas italianas não admira, já que noutras ocasiões, quando estavam em causa os seus interesses comerciais, não hesitaram em aliar-se aos muçulmanos, fossem turcos ou árabes. Basta pensar nas alianças de Veneza para atacar os portugueses no Índico, ou que ainda durava o cerco a Constantinopla e já os genoveses negociavam futuros negócios e posições comerciais vantajosas com os otomanos.

    Fiquei também a saber as razões da existência dos impérios de Trebizonda e Niceia, cuja existência não compreendia. Se não me engano, o imperador Miguel, que reconquistou o trono bizantino, fundou a dinastia dos Paleólogos, a última reinante.

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  5. A filha de Balduíno I,a duquesa de flandres a Joana casou com o Fernando de Portugal (o filho do rei Sancho primeiro )Infelizmente ficou sem herdeiro
    cumprimentos de Antuérpia

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  6. Lembrei-me de ver um post sobre a 4ª cruzada no Abrupto (que coincidência!), onde aparecia como ilustração um quadro de Tintoretto. Julgo que há mais do que uma obra do pintor veneziano sobre essa tomada de Constantinopla no Palácio dos Doges.

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  7. Note, João Pedro, que a família dos Paleólogos, mais recente, perderia em ordem de precedência para a dos Comnenos, cujos membros eram a família reinante em Trebizonda. Contudo, a lógica de acesso ao trono em vigor em Constantinopla, herdada desde os romanos, atribuía muito menos importância às hierarquias do parentesco do que aconteceu nas Cortes no Ocidente.

    O estabelecimento de regras de sucessão ao trono de acordo com a hierarquia da proximidade do parentesco em relação ao monarca é um costume de origem germânica, portanto bárbara.

    Seja bem reaparecido, Alfacinha! De facto, durante o período da nossa Dinastia de Borgonha (1143-1383), houve vários casamentos entre membros da família real portuguesa e famílias de importantes casas da nobreza da Europa Ocidental. Mas, com excepção do caso de Carlos o Temerário, já no Século XV, sem grandes consequências nas respectivas políticas regionais.

    Agora o caso de Balduíno I de Constantinopla dificilmente se pode considerar um caso de sucesso. Eleito em 1204, morreu cativo em 1205 ou 1206. A melhor homenagem ao primeiro Imperador Latino de Constantinopla (uma estátua equestre!) pode ser hoje admirada… em Mons, no Hainaut, Bélgica, de onde ele era originário.

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  8. Não tenho a informação exactamente dessa maneira. De facto eram turcos Otomanos, mas provinham de uma pequena tribo das muitas que como sabes se encontravam espalhadas pela china, pela mongólia, pela pérsia, pelas repúblicas soviéticas... que, pouco tempo antes, cerca do século XIX, se salientou na Ásia menor tendo iniciado um estado centralizado e expansionista sob a liderança de um monarca. Porém, não significa que tenham assim tão rapidamente perdido os seus costumes nómadas.

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  9. Mais um excelente post seguido de bons comentários.
    É a velha história da relatividade do bem e do mal.
    E não nos podemos esquecer que as lutas fratricidas foram sempre mais trágicas que as entre "estrangeiros".
    Já o Nietzsche (desculpem) voltar aos mesmo descreve as cruzadas como "pirataria em grande escala" e da relatividade de bem e mal.
    Grande parte do sucesso dos turcos (ou posteriormente Otomanos) provinha dos seus "janízaros" que eram soldados reconhecidamente cristãos.
    E os "lusíadas" que ficaram em Goa porque tanto turcos como persas se odiavam mais uns aos outros que um qualquer "infiel" estrangeiro.
    O Herdeiro de Aécio, desde há muito, e sem relatividade, é o melhor blog da blogosfera.

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  10. Oh, Donagata, aos ocidentais dá-lhes mais jeito que os gregos não sejam conhecidos por romanos e passaram a tratá-los por bizantinos.

    Aos gregos não lhes dava jeito que se soubesse que haviam perdido Constantinopla por uns tempos e fingiram que o Império havia continuado ininterruptamente.

    Aos turcos também lhes dá jeito "arredondar" as suas histórias. Procura na Internet a origem do Estado Otomano e repararás que ele começa nos princípios do Século XIV no Ocidente da Ásia Menor, na região que anteriormente fora o núcleo do Império de Niceia de que aqui falo. Muito dos quadros desse Estado Otomano inicial são gregos convertidos ao Islão e não turcos...

    Esta história das tribos turcas tem um fundo de verdade mas é mais assim como a nossa do Viriato mais a tribo dos Lusitanos...

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  11. Em meu nome e, permitam-me o abuso, em nome dos restantes comentadores deste poste, os meus agradecimentos pelos seus elogios, João Moutinho.

    O meu, creio que já lho disse anteriormente, está um bocadinho exagerado...

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