04 maio 2007

A CAÇADA

Quando foi editado, em 1983, A Caçada (Partie de Chasse, no original), além de um fenomenal livro de Banda Desenhada, era um portentoso documento de denúncia de como funcionavam as relações de poder dentro dos países do que se designava na altura por bloco socialista. Hoje, que o campo socialista se tornou uma memória, ficou apenas a qualidade artística do álbum e alguns ensinamentos preciosos contra as práticas dos regimes autocráticos, independentemente da beleza dos valores evocados.

A história passa-se naquela actualidade de 1983. Leonid Brezhnev morrera em 1982, fora substituído pelo jovem Yuri Andropov que, doente, viria a morrer em 1984, para ser substituído por outro jovem, também não muito saudável, Konstantin Tchernenko, que morreria por sua vez em 1985… Percebia-se também como a União Soviética e o seu bloco, para além desses azares de saúde na gerontocracia que a governava, parecia estar num impasse sério quanto às suas promessas: o socialismo não superara o capitalismo, fora derrotado por ele.
Uma outra coisa é confessar como não existia nenhuma expectativa que todo o sistema se desmoronasse uma meia dúzia de anos depois… As ditaduras têm períodos de duração imprevisível. Por exemplo, a portuguesa poderia ter desaparecido em eleições democráticas em 1945 e só caiu trinta anos depois disso e a norte-coreana parece aguentar-se como se estivesse à espera da prometida viagem de investigação sobre a sua natureza por parte de Bernardino Soares – a piada é batida mas há disparates que se dizem que não merecem contemplação*…

A personagem central de A Caçada é Vassili Tchevtchenko, um apparatchik russo dos serviços secretos, veterano bolchevique e membro do Politburo soviético, que organizou uma gigantesca caçada de Inverno em terras polacas. Entre os convidados conta-se um alemão oriental, um búlgaro, um checoslovaco, um húngaro, um polaco, um romeno, um ucraniano, todos membros destacados dos respectivos partidos nacionais, e Serguei Chavanidze, da Geórgia, a nova estrela em ascensão do Politburo soviético.
Fora de todo esse elenco pesado e criando uma identificação natural do leitor, dada a sua origem ocidental, encontra-se um jovem intérprete francês, militante comunista, que ali aparece nomeado para os acompanhar como tradutor por alguma daquelas razões misteriosas do socialismo científico… É através deste jovem francês, com quem os convidados conversam à vontade, que os leitores compreendem os laços do passado que os unem a Tchevtchenko, sobretudo nas alturas das crises dos respectivos países...

As excepções a essa rede de cumplicidades no elenco são o alemão oriental, Günther Schütz, especialista económico no seu país e Chavanidze, que parece ser uma espécie de delfim designado de Tchevtchenko. Sobre o primeiro retenho um dos diálogos mais ácidos e cruéis sobre aquele tipo de socialismo, sobre a economia teórica em geral e sobre como o propósito de qualquer político ambicioso não é o de resolver realmente os problemas das pessoas, mas sim o de parecer que eles foram resolvidos (prancha 37):
- Günther Schütz é uma das cabeças pensantes do COMECON**… Antes dele, não se sabia porque é que o nosso mercado comum funcionava tão mal… Agora já se sabe…
- E achas que funciona melhor?
- Não, mas o conhecimento não tem preço para regimes científicos como o nosso…

É muito tentador especular como a figura do georgiano Serguei Chavanidze da história pode ter sido inspirado pela mistura entre duas estrelas reais então em ascensão no PCUS: Mikhail Gorbachev e Eduard Shevardnadze. Mas é uma hipótese que terá tanto de saborosa quanto de improvável... O Chavanidze da ficção é morto por acidente ao terceiro dia, quando depois do javali e do alce, o programa era a caçada ao urso… E o atirador involuntário, obviamente, foi o infeliz intérprete francês ali presente porque era neutro…

A Caçada, de Enki Bilal e Pierre Christin. Recomendo a leitura para quem gosta do género. Mesmo esgotada a componente de denúncia do que era aquele socialismo, ainda resta o cinismo do poder que é intemporal e continua um manual útil de como funciona a política na realidade.

*Quem os profere ou é estúpido ou está a tratar quem o ouve por tal…
** Acrónimo de Conselho Para a Assistência Económica Mútua, organização económica fundada em 1949 a que aderiram todos os países europeus do bloco socialista.

2 comentários:

  1. Dos mesmos autores é também um álbum, datado de poucos anos antes, chamado "A Falange da Ordem Negra", em que no fim dos anos setenta um grupo de antigos membros das Brigadas Internacionais defronta os velhos inimigos das forças nacionalistas, agrupados num comando paramilitar.

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  2. Também é uma boa obra, mas considero-a uns furos abaixo de A Caçada, magistral.

    Não é o melhor meio para termos um debate sobre o assunto, mas sempre posso sustentar o que disse acima, considerando que falta densidade no inimigo da "multinacional fascista"

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