09 maio 2007

VIVA O QUÉBEC LIVRE!!!

Uma das melhores provas da sabedoria e agilidade política do imperialismo britânico vê-se na forma como conseguiu criar regimes de funcionamento excepcionais que acomodassem satisfatoriamente a existência dentro das fronteiras coloniais de minorias europeias, brancas e não anglo-saxónicas. Foi o caso dos africânderes da África do Sul e dos franceses do Canadá. Embora semeado de incidentes, a história da presença daqueles dois grupos no seio do império britânico é globalmente pacífica.

Por outro lado, o tempo é um poderoso elemento que contribui para o esquecimento de como as grandes figuras do passado que hoje reverenciamos também tiveram os seus momentos maus e, não fosse a tecnologia moderna que os preserva, alguns haveria que hoje teríamos por inacreditáveis. Charles de Gaulle é um desses monstros da história do Século XX que, quando se aprontava para dizer umas palavras de improviso à multidão era uma verdadeira caixinha de surpresas.

Em 1967, o líder francófono do governo estadual do Québec no Canadá, de seu nome improvável Daniel Johnson*, na sua luta contra o governo federal canadiano de Ottawa pela cessão de maior autonomia, fora a Paris pedir o apoio do grande Charles à causa da francofonia. E de Gaulle mostrou-se disponível para ajudar: a pretexto da grande exposição Expo 67, que iria ter lugar em Montreal, a capital do Québec e a maior cidade canadiana, o presidente francês faria uma visita oficial, que seria mais centrada no Québec do que em Ottawa, a pequena capital federal…

Valha a verdade que o governo federal canadiano, conhecendo de Gaulle, já estava à espera de sarilhos. Era e é perfeitamente possível lidar com os problemas da autonomia e das especificidades da comunidade francófona do Québec (onde ela é francamente maioritária - cerca de ¾) no quadro do Canadá federal. Uma outra coisa são as consequências do separatismo: um Québec independente dividiria o Canadá em duas metades descontínuas, com quatro pequenas províncias Atlânticas e as restantes obrigatoriamente orientadas para o Pacífico, como se depreende do mapa abaixo.
A 24 de Julho de 1967, à chegada a Montreal e mesmo já atrasado em relação ao programa, de Gaulle resolveu dizer umas palavrinhas a uma multidão de 10 a 15 mil pessoas que o aguardava. Eis o conteúdo aproximado do que disse, numa tradução minha, bastante livre (pode-se escutá-lo no vídeo do discurso):

Uma imensa emoção enche-me o coração ao ver diante de mim a cidade de Montreal… francesa!! Em nome do velho país, em nome da França, saúdo-vos! Saúdo-vos do fundo do meu coração!
Vou-vos confiar um segredo que não irão divulgar... Aqui, esta tarde e ao longo da viagem que fiz até aqui chegar, encontrei uma atmosfera parecida com a da Libertação**!! Além disso, ao longo da minha viagem, constatei o imenso esforço de progresso e desenvolvimento e, por consequência, de libertação, que vocês estão aqui a realizar e é em Montreal que é preciso que eu diga isso, porque se há no mundo uma cidade exemplar pelos seus feitos de modernidade é a vossa! Digo é a vossa e permito-me acrescentar: é a nossa!

Se vocês soubessem a confiança que a França, atenta depois de imensos sacrifícios, tem agora em vós, se soubessem a afeição que ela recomeça a sentir pelos franceses do Canadá e se soubessem a que ponto ela se sente obrigada a colaborar na vossa marcha para o progresso… É por isso que ela assinou com o governo do Québec, o do meu amigo Johnson, acordos para que os franceses de um e outro lado do Atlântico trabalhem em conjunto para um mesmo objectivo comum francês. E, para além disso, todos os esforços que a França, todos os dias um pouco mais, aqui irá desenvolver, ela própria sabe que lhos serão devolvidos, porque vós estais a constituir aqui elites, fábricas, empresas, laboratórios que provocarão a admiração de todos e que, um dia, tenho a certeza, permitir-vos-ão ajudar a França.

Eis o que vim dizer-vos esta tarde acrescentando que levo desta ocasião espantosa de Montreal uma recordação inesquecível! A França inteira sabe, vê, escuta o que aqui se passa e posso-vos dizer que beneficiará com isso!

Viva Montreal! Viva o Québec!... Viva o Québec… livre!!!
Viva o Canadá francês! E viva a França!!!***

A França e o Canadá eram aliados antigos, os dois países faziam parte da NATO, mas para o governo federal canadiano a visita presidencial de Charles de Gaulle terminou ali… Foi o episódio que mais se aproximou, compreendendo as civilidades e cortesias excessivas características da diplomacia, com a expulsão pura e simples pelo país anfitrião de um chefe de estado estrangeiro na situação de visitante oficial…

*O pai de Johnson era de origem irlandesa e a mãe de origem canadiana francófona. Era bilingue, mas a sua formação académica fizera-se em francês.
** Estava, obviamente, a referir-se à libertação de França em 1944.
*** Versão definitiva, revista por quem sabe, com os meus profundos agradecimentos.

3 comentários:

  1. O Québec teve a oportunidade de conseguir a independência em 1970, ocasião perdida nas urnas...
    Esse momento da História só me soou aos ouvidos através das canções de Félix Leclerc, o “Georges Brassens” do Québec.
    E ainda há quem não goste de música!!!

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  2. Fiquei a aprender Impaciente, que nunca havia ouvido falar de Félix Leclerc...

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  3. A confiança dos “independentistas” nesse referendo era tanta que Félix Leclerc tinha sido escolhido como “porta-voz” da vitória.
    A derrota do projecto teve consequências graves para o Québec. “Nasceu” Toronto, para onde fugiram os capitais antes investidos na “Belle Province” e o estilo “modernoso” (moderno horroroso) que classifica o gosto norte-americano, levou a melhor sobre o requinte que tinha conseguido Montreal, a mais europeia das cidades do norte da América!!!

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